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Enfrentamento e defesa de territórios entre indígenas e colonizadores no

4 DESTERRITORIALIZAÇÃO E RETERRITORIALIZAÇÃO: EMBATES

4.1 Enfrentamento e defesa de territórios entre indígenas e colonizadores no

Percebe-se que, a partir de meados do século XVII, os sertões ganharam a conotação de lugar de fronteiras, por conseguinte, o lugar de dualidade, no qual, a civilização e a barbárie, a norma e o conflito instalavam-se e faziam parte de sua tessitura. Portanto, para os de fora, “conquistar o interior [era] conquistar a natureza e dominar a barbárie, ganhar e vencer espaços para o conhecimento e a civilização, desbravar fronteiras”170.

169

HERCKMAN, Elias. Descrição geral da Capitania da Parahyba. Revista do Instituto

Arqueológico e Geográfico Pernambucano, Recife, Tomo V, n. 31, 1886 [1639]. p. 279.

170

NAXARA, Márcia. R. C. "Encantos" e "Conquistas" do Oeste: desvendar fronteiras e construir um lugar político. In: GUTIÉRREZ, Horacio; NAXARA, Márcia. R. C.; LOPES, Maria Aparecida de (Org.). Fronteiras: paisagens, personagens, identidades. Franca: Unesp; São Paulo: Olho

As ações militares anti-indígenas e as ações indígenas anticolonizadores tornaram-se dois lados da mesma moeda, entrelaçando controle e burla como parte do mesmo processo. E os sertões passaram a ser o lugar distante e, simultaneamente, conectado ao corpo do aparato administrativo e cultural da Coroa, passando por uma reestruturação dos poderes sobre eles edificados, impulsionando uma dinâmica de reterritorialização de seus espaços e de seus grupos étnicos e culturais.

Nesse sentido, naquelas fronteiras, a construção do espaço por parte de seus viventes implicava a tessitura de uma malha de relações que objetivavam a configuração de um poder sobre o lugar e, portanto, o engendramento de um território enquanto “espaço de relações” multilaterais, imergido em um conjunto de códigos com seus significados e, ao mesmo tempo, como um “instrumento de poder”. Sendo assim, cada grupo formado por indígenas e não-indígenas buscou transformar o sertão em seu território, ou seja, um espaço submetido ao seu poder171.

Para a produção desta análise, foram utilizados documentos produzidos pelo aparato régio. Inquiridos à contrapelo, deixam transparecer a presença indígena e sua participação ativa no desenrolar das questões territoriais e étnicas da colônia. Destarte, o exercício de pesquisar por meio de fontes escritas, cujos conteúdos foram transpassados pelas mediações e ideias de autoridades ou sujeitos ligados ao poder colonial, é uma tarefa difícil e que exige a busca de uma sensibilidade capaz de perceber as agruras pelas quais, principalmente, os indígenas passaram no momento de luta contra a usurpação de seus territórios e ataques desferidos contra as suas raízes.

Na passagem do século XVII para o XVIII, os sertões vastos do Rio Piranhas começavam a ser ocupados de forma mais efetiva pelas forças lusas. Desse modo, embates pelo domínio sobre a terra iniciaram com mais intensidade, dado que os indígenas que a habitavam e dominavam a paisagem local, saíram em defesa de seus territórios. Nessa temporalidade, instaurara-se um período marcado pela radicalização dos conflitos entre indígenas e os novos colonizadores ligados às frentes de expansão pastoril que ficou conhecido como “Guerra dos Bárbaros”.

171

Sobre território e poder, cf. RAFFESTIN, Claude. O que é território? In: ______. Por uma geografia do poder. Tradução de Maria Cecília Franca. São Paulo: Ática, 2011. p. 128-134.

Apesar de muito ser remetido a uma Guerra do Rio Grande ou usar-se a denominação Confederação dos Cariri, estas guerras eclodiram nos sertões do Siará Grande, da Paraíba do Norte e Rio Grande, fazendo parte de um contexto de outras resistências indígenas que tocavam outros lugares como os sertões do Rio São Francisco.

Segundo Francisco Borges de Barros172, o conflito envolveu indígenas “ ‘Sacurús ou sacuriús, panatis, icós, icosinhos, coremas, bulbuis, ariús ou areás, pegas, paiacùs, caracós, janduys, bruscarás, canindés e cariris’ localizados no Ceará, Rio Grande do Norte, Pernambuco e Alagôas”.

As estratégias de ação dos forasteiros, diante desses indígenas, continham conflitos de interesses por poder. Puntoni173 argumenta que de um lado estariam os pernambucanos que apoiavam os moradores do sertão em uma conduta de “guerra defensiva”, pautada na fundação de aldeias indígenas, formando uma frente de contensão aos indígenas de corso. Em contrapartida, os baianos queriam interferir mais nas capitanias que eram conduzidas pelo Pernambuco e defendiam a “guerra ofensiva”, utilizando a força dos paulistas que cobrariam mercês em forma de terras nos lugares de batalha para compensar seus esforços. Desse modo, os pernambucanos temiam perder terras em formas de sesmarias, com a chegada de homens forasteiros adeptos da segunda estratégia.

Segundo Puntoni,

Em suma, duas possibilidades se apresentavam para uma ‘definitiva solução’ da guerra no Rio Grande: ou a paz com os índios, que seria garantida pelo povoamento do sertão – fosse com este ‘cordão de aldeias’, fosse pelo incentivo a novos moradores -, ou a guerra continuada, estruturada em novas e mais poderosas bases militares174.

Por isso, a Guerra dos Bárbaros, enquanto um complexo de batalhas travadas entre conquistadores e indígenas, sendo os primeiros alinhados pela ação estratégica da Coroa, era um todo composto por diferentes eventos de combates, portanto, um conjunto de ações em mobilidade que se interinfluenciavam. E o Sertão do Rio Piranhas estava envolvido nesse intricado de eventos, pois a mobilidade de

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BARROS, Francisco Borges de. Bandeirantes e sertanistas baianos. Bahia: Imprensa Oficial do Estado, 1919. p. 156-157.

173

PUNTONI, Pedro. A Guerra dos Bárbaros: Povos Indígenas e a Colonização do Sertão Nordeste do Brasil, 1650-1720. São Paulo: Hucitec; Usp; Fapesp, 2002. p. 169.

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seus sujeitos, nos seus espaços, e as batalhas travadas em seus limites, faziam parte do todo que compõe o jogo de reterritorialização do espaço que motivava a citada guerra.

Nessa dinâmica de guerra, a mobilidade dos sujeitos, no tempo e no espaço, gerava um estado de tensões, de modo que as ações territorialistas dentro do Sertão do Rio Piranhas, enquanto parte de um todo, permitem acessar uma compreensão sobre a Guerra dos Bárbaros.

Isto faz lembrar Milton Santos quando afirma que

o nível global e o nível local do acontecer são conjuntamente essenciais ao entendimento do Mundo e do Lugar. [...] O acontecimento é a cristalização de um momento da totalidade em processo de totalização. Isso quer dizer que outros acontecimentos, levados pelo mesmo movimento, se inserem em outros objetos no mesmo momento. Em conjunto, esses aconteimentos reproduzem a totalidade; por isso, são complementares e se explicam entre si. Cada evento é um fruto do Mundo e do Lugar ao mesmo tempo175. O Sertão do Rio Piranhas foi palco da Guerra dos Bárbaros com muitas mortes, tanto de colonos, como indígenas, e as batalhas sobre ele travadas envolveram conquistadores como Dominigos Jorge Velho, Teodósio de Oliveira Ledo e Manuel Araújo de Carvalho.

Para essa trama, Domingos Jorge Velho foi convocado em 1688. Ele havia participado das conquistas do Piauí e fora chamado para somar forças na Guerra de Palmares, mas quando estava a caminho, à frente dos “Aroás" e “Cupinharões”, foi convocado a ter com os sertões das Capitanias da Paraíba e Rio Grande, atendendo a ordem do Governador Geral do Brasil, Matias da Cunha176.

Sei que está Vossa Mercê com a sua gente de caminho para os Palmares; e porque ora me chegou um aviso do Capitão-Mor, e Câmara da Capitania do Rio Grande, e juntamente carta do Governador de Pernambuco em que me dá conta do mau sucesso que teve o Coronel Antonio de Albuquerque da Câmara na entrada que fez aos bárbaros pela destruição antecedente que haviam feito aos moradores brancos, escravos, e curraes, pelejando um dia inteiro até não poder resistir, e é evidente o perigo em que fica a

175

SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço: técnica e tempo, razão e emoção. São Paulo: EdUSP, 2002. p. 164.

176

Cf. NUNES, Odilon. Domingos Jorge Velho e o assentamento de bases econômicas no Piauí. Estudos Históricos, Marília, SP, 10, n. 9, 1971. p. 70. Cf. MELLO, Alexandre; MELLO, Nilva A. Paulistas nas lutas coloniais do Nordeste. São Paulo: [s.n.], 1986. p. 202. Cf. BEZERRA, Antônio. Algumas origens do Ceará: defesa ao Desembargador Suares Reimão à vista dos

mesma Capitania a que devo acudir por todos os meios possíveis: e o mais prompto é marchar Vossa Mercê dahi com todas as forças que tiver sobre aquelle bárbaro, e fazer-lhe todo o damno que puder, porque nisto faz Vossa Mercê mais importante serviço a Sua Magestade, que na jornada dos Palmares de que Vossa Mercê se suspenda, e assim lh'o ordeno177.

Os bandeirantes tiveram as suas ações reconhecidas pela Coroa, ao receberem títulos e terras. A ação belicosa dos mesmos foi de grande importância no momento em que os indígenas apresentavam-se resistentes no sertão, já que os bandeirantes possuíam grande experiência, tanto nas táticas de guerra indígenas, como na sobrevivência em matas hostis.

A atmosfera era de guerra, onde os indígenas resistentes estavam apresentando vantagem sobre as milícias que combatiam nos interiores dos sertões da Paraíba do Norte, Rio Grande e Siará Grande. As nações agiam em suas áreas, causando atordoamento entre os colonos e aqueles que estavam investidos de poder. Assim, as forças do Governo Geral do Estado do Brasil, com base na Bahia, e da Capitania do Pernambuco se articulavam no intuito de municiar as forças militares. Em carta de dezembro de 1688, o governador do Estado do Brasil escreve ao Bispo D. Matias de Figueiredo e Melo, Governador do Pernambuco:

resolvi a mandar-lhe formar qua[re?]nta arrobas de pólvora fina, e cento e vinte de chumbo, que vão nesta sumaca de João Alvares a entregar nesse Recife á ordem do Provedor da Fazenda João do Rego Barros, para elle remeter dahi a Parahiba, em outra embarcação por esta em que vão não ter Pratico: e o Capitão-Mor Amaro Velho mandar comboiar por terra pela distancia ser mais breve dos quartéis das Piranhas, a entregar tudo aos ditos dous Cabos para entre si o dividirem igualmente e por terra mando dous troços de gente um de cento e cincoenta homens brancos, e até trezentos índios reconduzidos das Aldeias, e vizinhanças de uma, e outra banda do Rio de São Francisco pela parte do sertão, a entregar ao Mestre de Campo dos Paulistas Domingos Jorge Velho, e outro das Aldeias, e Ribeiras do mesmo Rio de duzentos brancos, e trezentos índios juntos na Villa do Penedo para Antonio de Albuquerque da Câmara, [...]178.

A convocação dos bandeirantes para fazer parte do processo de submissão dos indígenas no Sertão do Rio Piranhas, faz notar a importância da conquista

177

Cf. ANAIS DA BIBLIOTECA NACIONAL. Rio de Janeiro: Officinas de Artes Graphicas da Biblioteca Nacional, v. 10, 1929. p. 262.

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desse sertão para a Coroa, dado que, aos paulistas eram entregues missões importantes como foi o caso de Palmares.

Manuel Alvares de Moraes Navarro179, um dos homens aliados de Domingos Jorge Velho e que atuava no arraial do Açú, descreve as dificuldades enfrentadas pelos conquistadores na luta contra os indígenas resistentes.

Primeiramente por serem estas paragens das Piranhas, Assú, Jaguaripe incapazes de planta é de necessidade lhe mandar mantimentos de fora, e de bem longe; e as paragens de donde or hir os mantimentos hé do Siãra grande para o arraial de Jaguaripe, que são 30 leguas e esta Capitania he tão mizeravel, que de Pernambuco lhe vai todos os annos farinha para o prezidio que nella tem: O arraial do Assú he distante do Rio Grande pouco menos de 30 leguas; é esta capitania como mais infestada do Inimigo mal se pode sustentar salvo se lhe fôr de Pernambuco que são noventa legoas ao Assú e para o arraiayal das Piranhas fica-lhe mais de oitenta legoa de distancia do Rio S. Francisco, que he donde lhe poderá hir farinha. E para guardar de cada comboyo hé necessario ao menos 150 homens de armas [...]180.

No transporte de tais comboios morriam muitos homens, chegando a ter um ocorrido, no qual, a tropa do Coronel Antônio de Albuquerque, chegando com 300 homens à ribeira do Assú, a vista dos inimigos, teve de bater em retirada para não perder todos os homens. De sorte que, para a citada ribeira, vieram reforços da Paraíba, Pernambuco e do Rio Grande para presidir o lugar181.

O próprio Domingos Jorge Velho, buscando seguir caminho para Alagoas, com 400 homens ao seu comando, teve de guerrear durante “3 dias e 3 noites a fogo vivo, e como lhe faltando pólvora se veyo retirando p.a o seu arrayal” nas Piranhas. Nesse mesmo tempo, estavam em arraiais vizinhos ao seu, Constantino de Oliveira Ledo que, também, enfrentava dificuldades para se manter182.

No ano de 1692, os Janduí assinaram um acordo de paz envolvendo o Rei Canidé e mais principais da nação com as autoridades da Coroa, indo ter com o Governador Geral do Estado do Brasil, Antônio Luís Gonçalves da Câmara

179

NAVARRO, Manuel Alvares de Moraes. Discurso sobre os incovenitenes que tem a informação que se deu a S. Magestade que Deus guarde para mandar por nas Piranhas, Assú, Jaguaripe, seis Aldeias, duas de cem cazaes, e vinte cinco homens brancos, para segurança da Capitaniado Rio Grande faselitando as pazes que se podem fazer com os barbaros que tivessem cuidado dellas. Apud BARROS, 1919. p. 173ss.

180 Ibidem., p. 173. 181 Ibidem., p. 174. 182 Ibidem., p. 172.

Coutinho183. “Uma paz perpertua para viver sua nação [Janduí], e a Portuguesa como amigas” 184.

Ficava acordado que

Primeiramente, o dito Rey Canindé, e os tres Mayoraes Joseph de Abreu Vidal, Miguel Pereira, e Neongugê em seu nome, reconheciam ao S.or Rey de Portugal Dom Pedro Nosso Senhor, por seu Rey natural, o senhor de todo o Brasil, e das terras q. as ditas vinte, e duas Aldeas accupavão: e lhe prometem humildemente vassalagem, e obediência para sempre [...]; 2ª Que o dito s.or Rey D. Pedro, e seus sucessores seram obrigados aguarda-lhe, e faserlhe guardar por seus Governadores, e Capitaens geraes, a liberdade natural em q. naceram, e em que por direito das gentes devem ser mantidos, como os mais vassalos Portugueses [...]; 3ª Que elle dito Rey Canindé, e todos os Principaes de sua naçam, e gente de todas as ditas Aldeaz, desejam ser baptisados, e seguir a ley christam dos Portugueses; sendo para esse fim tratados como gente Livre, e nam oprimidos contra sua vontade.; 4ª Que o dito seu Rey Canindé, e os ditos Mayoraes, e todos os mais Principaes das outras Aldeas, se obrigão a guardar toda a fidelidade ao S.or Rey de Portugal, e sucessores de sua coroa [...]. E q. sendo Caso, q. algûa Armada inimiga venha invadir esta praça da Bahya, ou de Pernambuco, Itamaracã, Parahyba, ou Rio Grande, poram em defensa dos Portugueses sinco mil homens de armas [...] 5ª Que do mesmo modo se obrigão a fazer guerra a todo o Gentil de qualquer nação que seja, a quem os Portugueses afiserem por ordem de Gov.or g.l do Estado [...]; 6ª Que tabbem se obrigam, a que aparecendo nos Serros das terras que possuem, algua mina, ou minas de ouro, prata, ferro, pedras preciosas [...], ou noticia de haver, daram logo conta ao Gov.or [...]. 7ª Que todos os curraes que estavão na Capitania do Rio Grande nas terras que elles possuhião até o tempo da guerra, elle , os ditos Principaes, sam contentes que se tornem a povoar. [...]. 8ª Que nenhum Gov.or Capitão Mor, nem justiças lhes poderam fazer violência algûa, este os Conservem sempre na sua liberdade [...]. sendo necessario aos moradores daquelas partes algús Indios Janduins para suas lavouras, curraes, pescarias, e Engenhos, os pediram a quem Governar a Aldea pagandolhe seu trabalho, conforme he usos, e costume naquelllas partes [...]. 9ª Que também se obrigão a que sendo necessario para reedificação da fortalesa do Rio Grande alguns Indios nas Aldeas dos Janduis, lhe dem os Principaes aquele numero de Indios q. o Capitão Mor lhes pedir alternativamente, por ser serviço DelRey [...]. 10ª E sobretudo, q nenhum Gov.or; ou cabo de Paulistas, os possam perturbar, inquietar, nem fazer guerra, e deles seja livre, e isenta geralmente toda a naçam dos Janduins, com as mais efficaes penas q. ao S.or Gov.or; e Cap.m g.l parecer, p.a q. vivam contentes, e estejam prompotos para o Serviço DelRey Nosso S.or185.

183

Cf. ENNES, Ernesto. As guerras dos Palmares: subsídios para sua história. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938. v. 1. p. 422-426.

184

Cf. Ibidem., p. 423.

185

Neste acordo, as obrigações imputadas aos indígenas eram evidentes e destaca-se o aspecto militar, a partir do qual, os janduí passariam a integrar as forças beligerantes lusas, pois estes indígenas representavam uma forte nação, que favorecia a ação dos conquistadores dentro da dinâmica de hostilidades contra os nativos inimigos da Coroa. Vale lembrar que, os janduí possuíam uma rede de aliados que, também, poderiam somar forças vantajosas para autoridades da Coroa. Da parte dos janduí, estava a preocupação com a manutenção da liberdade, já que aqueles eram tempos propensos à prática de escravização dos íncolas, não obstante às normas em que prevalecia a proibição da escravidão indígena. Então buscavam assegurar o reconhecimento da condição de vassalos e cristão, de modo a garantir o trabalho livre e os privilégios de um súdito “del Rey”.

A despeito do acordo de paz entre os poderes coloniais e os janduí, as contendas alastravam-se pelos sertões, envolvendo a ação dos indígenas resistentes contra as frentes de colonização.

Para fazer um relato sobre a Capitania do Pernambuco em sua obra intitulada “Desagravos do Brazil e Glorias de Pernambuco: discursos brasilicos, dogmaticos, belicos, apologeticos, moraes e históricos” 186, escrito em 1757, o Padre Domingos Loreto do Couto187 buscou fazer uma rememoração do passado, apresentando entre outras coisas, o processo de entrada dos colonizadores, no final do século XVII, nos sertões que eram orientados pela citada capitania.

No Capítulo V do Livro 1188, intitulado “Descripção e conquista da capitania do Pianco, Piranhas e Cariri no certão de Pernambuco”, o padre apresentou uma narrativa de como se deu, a partir de sua ótica, a luta pela conquista do Sertão do Rio Piranhas, Piancó e Cariri. E fez a seguinte descrição da situação de conflito entre indígenas e colonos nessa espacialidade.

Retirados os Topinambás das terras marítimas de Pernambuco, fizeram muitos delles assento em varias partes do certão. Desde a

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COUTO, [Pe.] Domingos Loreto do. Desagravos do Brazil e Glorias de Pernambuco: discursos brasilicos, dogmaticos, belicos, apologeticos, moraes e historicos. Anais da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, RJ, 1902 [1757].

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O Pe. Couto era presbítero professo da “Ordem do Principe dos Patriarchas S. Bento” e afirmou ter oferecido a sua obra ao Rei pelas mãos do “Excellentíssimo Senhor Sebastião de Carvalho e Mello”, conhecido como Marquês de Pombal, porque julgava aquelas linhas muito humildes.

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serra de Burburema athe o Rio do peixe, que comprehende setenta e oito legoas formarão muitas aldeas. He terra dilatada em fertilissimos campos, vistosos oiteros, e cortada de altissimas serras, e por isso, acomodada habitação para muitos milhares de homens. Sofrião mal que os Portuguezes cada dia fizessem entradas por aquellas terras, fazendo-se senhores do mesmo certão, em que hião fundando sítios, e fazendas de criar gados vacuns, e cavallares. Como conservavão o ódio contra os Portuguezes que lhes havião tomado os lugares marítimos, confederados com os Xucurús, Panatís, Icos, Icosinhos, e Coremas, levantarão se, e pondo se em armas Davao de repente em diversas partes, matando e roubando nellas, e pelos caminhos tudo quanto achavão, com confusão desordenada dos moradores, que em nenhum lugar se davão por seguros das hostilidades189.

O Pe. Couto apresentou elementos que são chaves para compreensão do grau de tensões que envolvia aquele sertão e a “confusão” que fazia parte das relações conflituosas ali tecidas. A presença invasora dos portugueses e do gado que ele impulsionava formando sítios que desalojavam os indígenas de seu lugar natural, fazia com que estes agissem com violência contra os colonizadores chegantes.

Os sertões ora aparecem como um lugar conhecido, sobre o qual surgem descrições ricas em detalhes, tratando de serras e toponímias; ora são lugares incontrolados que precisavam ser domados pelas forças de homens como o Coronel Manuel de Araújo de Carvalho, ao qual os representantes do poder régio podiam recorrer, pois, segundo o texto do Pe. Couto, a ele “os índios temião, e respeitavão pelas muitas occasioens em que havia mostrado ser hum fulminante rayo contra os