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3 SERTÃO ERMO, SERTÃO REVELADO

3.2 Os indígenas do Sertão do Rio Piranhas

Os povos indígenas do Brasil estão classificados em quatro troncos linguísticos: Macro-Tupi, Macro-Jê, Arawak e Karib. Tal classificação toma como parâmetro, os estudos das linguagens indígenas. Existem hipóteses de que estes tinham ancestrais comuns, há tempos bastante remotos, e a dificuldade de seguir os métodos comparativos aplicados pela prática da pesquisa da linguística histórica, impede que se possam assumir posições conclusivas sobre as inter-relações entre os troncos linguísticos. Além desses, é mister chamar atenção para as chamadas “Famílias de Língua Isolada”, compostas por grupos indígenas, cujas raízes ainda não foram indicadas com certeza.

Os estudos de Greg Urban, em “História da cultura brasileira segundo as línguas nativas”, demonstram o quanto o estudo das línguas indígenas contribuíram para a compreensão da formação dos troncos e famílias indígenas, trazendo conhecimento sobre suas descendências, cronologia, especialização, dispersões e ambientação na natureza onde conviveram147.

Para o Sertão do Rio Piranhas, mais interessa a família Macro-Jê. Tronco linguístico mais amplo do qual saiu a família Jê, habitante dos sertões do atual Nordeste do Brasil e que também engloba um conjunto de outras famílias menores com seus dialetos. Segundo Greg Urban, os Kariri, possivelmente, pertenciam a esse tronco linguístico. E à medida que os Kariri encontram-se em “classificação ainda duvidosa”, denotando a antiguidade de sua dispersão, estes também estão inseridos, junto com os Tarairiu no agrupamento de indígenas de “língua isolada”.

Greg Urban, ao tratar da dispersão desses fluxos linguísticos, abre portas para se pensar no grau da importância que a mobilidade apresentava entre os povos que ocuparam a América, antecessores aos sujeitos que participaram da colonização ultramarina europeia.

147

Cf. URBAN, Greg. A história da cultura brasileira segundo as línguas nativas. In: CUNHA, Manuel Carneiro da. (org.). História dos Índios no Brasil. Tradução de Beatriz Perrone-Moisés. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 87-102.

Trata-se de um hábito milenar, de longuíssima perduração que, de alguma forma, poderia ter introjetado grandes marcas nas práticas na cultura indígenas voltadas para um costume de mobilidade geográfica, um “mover-se” contínuo, que atingiu o período do contato entre indígenas e não-indígenas durante o período colonial da América Lusa.

Segundo Greg Urban, quanto mais se diferenciavam os grupos, mais móveis geograficamente. Assim “as línguas e (se pudermos passar da língua para a cultura) as culturas se tornam cada vez mais móveis”148. Isto remete a uma noção da grande dispersão que envolvia os povos dos troncos linguísticos e famílias existentes na América Lusa e Espanhola entre os quais estão inseridos os Cariri e Tarairiu. Isto leva a crer em um quadro de mobilidades internas anteriores à chegada dos europeus, que gerava conflitos por territórios e misturas prévias entre povos indígenas. O que explica também a tessitura de alianças entre grupos como os Janduí e os Canindé, ambos da família Tarairiu149.

Também para Thomaz Pompeu Sobrinho150, as levas migratórias, em diferentes tempos remotos, contribuíram de forma direta para uma miscigenação entre os povos indígenas; e estas levas e misturas se transformaram nos grupos identificados nos troncos linguísticos já citados, cujas ramificações são incontáveis. Alguns grupos considerados isolados, como os que se ambientaram no Sertão do Rio Piranhas, que são os Tarairiu e Cariri. Sendo os primeiros, uma das famílias mais antigas que neles se instalaram, vieram depois, pelas brechas do Sertão do Rio Pajeú, os Cariri ou Quiriri, que se estabeleceram pelas Serras da Borborema, do Araripe e Riacho dos Porcos.

Buscando visualizar e compreender de forma mais clara a estruturação das nações indígenas do sertão nordestino, mais especificamente, das áreas dos rios Açú e Seridó, Olavo de Medeiros Filho151 apresentou uma divisão desses povos em duas categorias que vêm a ser Cariri e Tarairiu e que estavam distribuídos ao longo das margens do Rio Piranhas e seus afluentes que atravessavam, também, as fronteiras entre as Capitanias Paraíba e do Rio Grande (Tabela 2). Seguindo os mesmos princípios classificatórios, José Elias Borges, em artigo que, ainda hoje, é

148

Ibidem., p. 93.

149

Sobre a classificação dos indígenas Tarairiu e Cariri, cf. MEDEIROS FILHO, 2011 [1984].

150

POMPEU SOBRINHO, Thomaz. Pré-História Cearense. Fortaleza: Instituto do Ceará, 1955.

151

referência em estudos sobre os indígenas na Paraíba, intitulado, “Índios paraibanos: classificação preliminar”, apresentou uma distribuição desses indígenas, especificamente, para a Paraíba, envolvendo tanto índios do litoral como do sertão (Mapa 11).

Tabela 2 – Nações indígenas Tarairiu e Cariri segundo Olavo de Medeiros Filho.

Tarairiu Cariri

Javó Cariri

Paiacu, Pacaju ou Baiacu Corema ou Curema

Jenipapo Icó-Pequeno ou Quincu-Pequeno

Canindé Caicó

Sucuru

Ariá, Ariú, Uriú ou Pega Panati

Caratiú

Fonte: MEDEIROS FILHO, Olavo de. Índios do Açu e Seridó. Natal: Sebo Vermelho, 2011 [1984].

Mapa 11 – Distribuição aproximada das tribos indígenas da Paraíba, século XVII e XVIII.

Tais apresentações buscam compartimentar os indígenas em espaços, de modo bem delimitado, o que não condizia com a realidade de fluidez com que os indígenas se encontravam territorialmente no período colonial. Desse modo, as delimitações apresentadas não conseguem apresentar a dinamicidade da mobilidade dos indígenas dentro das terras do sertão do Rio Piranhas e ribeiras vizinhas. Algo que estará melhor vislumbrado no mapa produzido por Curt Nimuendajú (Mapa 12, p. 107).

Mesmo diante das classificações apresentadas, é necessário atentar para o fato de que durante o período colonial, na visão dos europeus, os indígenas estavam divididos em dois grupos: tupi e tapuia. Tal classificação usada pelos reinóis enfatizava a figura do tapuia (os de língua travada, os não-tupi), que não tinham tanto contanto com os europeus como os tupi considerados de “língua geral”152, a mais utilizada entre os indígenas do litoral que eram conhecidos como caboclos153. Assim, a designação tapuia estava atrelada ao indígena de postura resistente ao processo colonizador. Por consequência, esses indígenas deveriam ser eliminados.

Importante salientar que os indígenas não se viam assim tão dicotomizados em suas posições. Agrupar as diversas etnias presentes nos interiores da América Lusa, dentro da categoria “tapuia”, era também, uma forma de os de fora diluírem a complexidade étnica que se encontrava nos sertões, denotando um descaso para com o “outro”. Ao mesmo tempo, tal classificação deixa entrever o reconhecimento, por parte dos forasteiros, a complexidade da ação de nominar (classificar) de maneira mais aprofundada essas várias etnias que habitavam esses sertões.

Albert van den Eckhout, pintor neerlandês que compôs a comitiva artística e científica organizada pelo Conde Maurício de Nassau para registrar as novas terras

brasilis que administrava durante o domínio neerlandês no Brasil, representou

indígenas da região (Figura 2 e Figura 3). Ressalvadas as marcas ideológicas europeias que o artista carregava e que foram projetadas nas pinturas, a sua obra oferece indícios de traços físicos e culturais dos indígenas, como os Tarairiu, que habitavam os sertões, de modo que nas representações, os nativos surgem

152

Sobre Língua Geral, cf. VAINFAS, Ronaldo (org.). Dicionário do Brasil Colonial: 1500-1800.

Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. p. 346-348.

153

Caboclos era a designação dada aos indígenas que habitavam o litoral e tinham como língua o tupi. Cf. ANAIS DA BIBLIOTECA NACIONAL, v. 28, 1906. p. 483.

inseridos na natureza e com comportamentos que demonstravam um distanciamento dos hábitos europeus.

Figura 2 – Reprodução do quadro “Homem Tapuia”. Albert Eckhout. 1641.

Figura 3 – Reprodução do quadro “Mulher Tapuia”. Albert Eckhout. 1641

Herckman também oferece dados que tratam sobre as características físicas e culturais sobre esses indígenas e os descreveu como um “povo robusto e de grande estatura”. E continuou:

[...] os seus ossos são grossos e fortes, a cabeça e espessa; a sua côr natural é atrigueirada (bruynachtich), o cabelo preto, e de ordinario o trazem pendente sobre o pescoço, mas por deante até acima das orelhas cortam-no igualmente, o que faz parecer que trazem um bonnet sobre a cabeça. Comtudo [sic.] alguns deixam cortar todo o cabelo ao modo dos da nossa nação. Têm cabelo mui grosso e áspero.

Andam inteiramente nús, excepto em algumas ocasiões de festa, ou quando vão á guerra, porque então geralmente cobrem o corpo de penas de arara (que são os corvos das Indias Ocidentaes), de marganaus (maracanães?), papagaios e periquitos, que entre elles são mui formosos. Puxam a pele sôbre o membro viril, e o prendem com um atilho, de modo que fique todo metido no corpo. Esse liame é a folha de figueira com que encombrem as suas vergonhas, e soltando-se ou rompendo-se, é isso tão escandaloso para elles quanto seria entre nós descobrir alguém as suas partes pudendas. Não usam barba nem trazem cabelo em alguma parte do corpo. Tanto que algum cabello começa a aparecer, logo o arrancam, e assim impedem o seu ulterior crescimento154.

Herckman, na mesma descrição, mencionava esses povos indígenas como ligados ao interior e fazendo uma breve diferenciação entre os povos Cariri e Tarairiu, destacou os líderes de cada uma, além de deixar entreaberto uma aproximação ou, ao menos, um conhecimento mais próximo, das nações Tarairiu. Algo confirmado com os relatos de Roulox Baro já apresentados anteriormente.

Os Tapuyas formam um povo que habita no interior para o lado do occidente sôbre os montes e em sua vizinhança, em logares que são os limites mais afatados das Capitanias ora ocupadas pelos brancos, assim neerlandeses como portugueses. Dividem-se em várias nações. Alguns habitam transversalmente (dwers van) a Pernambuco, são os Carirys, cujo rei se chama Kerioukeiou. Uma outra nação reside um pouco mais longe, é a dos Caririwasys, e o seu rei é Karupoto. Ha uma terceira nação, cujos índios se chamam Careryjouws (Carijós?). Conhecemos particularmente a nação dos Tapuyas chamados Tarairyou; Janduwy é o rei de uma parte dela, e Caracara da outra155. 154 HERCKMAN, 1886 [1639]. p. 280. 155 Ibidem., p. 279.

Barléu, depois de falar do encontro entre Roulox Baro e os índios Waripeba e Caripató, descreve de forma mais detida os “tapuias” e menciona o “morubixaba Janduí” 156.

Mas para não escaparem os tapuias a quem trata do Brasil, merecem que deles se faça também uma descrição.

É célebre no Brasil holandês o nome dos tapuias, por causa do seu ódio aos portugueses, das guerras com os seus vizinhos e dos auxílios mais de uma vez prestados a nós. Habitam o sertão brasileiro, bastante longe do litoral, onde dominam os lusitanos ou os batavos. Distinguem-se por suas designações, línguas, costumes e territórios. São-nos mais conhecidos o que moram nas vizinhanças do Rio Grande e do Ceará e no Maranhão, onde impera Janduí ou João Wy. Difundem-se por grandes espaços, abrangidos por cinco rios: o Grande, o Quoauguho, o Ocioro, o Upanema e o Woiroguo157.

Os indígenas dos sertões, inclusive no Sertão do Rio Piranhas, passaram por grande mobilidade, inicialmente empreendidos dentro de uma ambiência típica de migração dos indígenas dos sertões, onde há uma forte alargamento da área dos Cariri nos interiores do que se entende, hoje, por Nordeste.

Marcos Galindo chama a atenção para esta dinâmica das mobilidades espaciais indígenas em processo de busca de novos territórios para a sua manutenção, quando afirma que

O senso comum nutria a idéia romântica de que as sociedades nativas do Brasil viviam, antes da chegada dos europeus, em uma perfeita ordem e equilíbrio. Este senso não levava em conta uma dinâmica natural pré-existente de extremada competição que fazia do estado de guerra uma condição, muitas vezes natural, para grande parte dos povos que disputavam entre si recursos naturais e espaços. Esta dinâmica, naturalmente impunha uma ordem reconhecível entre seus partilhantes, forçando-os a se adaptarem as mudanças e a desenvolverem complexas estratégias de sobrevivência 158.

De todo modo, com a chegada do colonizador e com o investimento na ação missionária voltado para os povos indígenas, intensificado pelo Diretório Pombalino159 e as Vilas de Índios, na segunda metade do século XVIII, pode-se 156 BARLÉU, 1974 [1647]. p. 259-260. 157 Ibidem., p. 260. 158

GALINDO, Marcos. O Governo das Almas: a expansão colonial no país dos tapuia, 1651-1798. Leinden, Holanda: Universidade de Leiden, 2004. p. 21.

159

Cf. Directório para as povoações dos índios do Pará e Maranhão. In: Suplemento à Collecção de Legislação [...] ano de 1750 a 1762. Lisboa: Typografia de Luiz Correa da Cunha, 1842. p. 526. Disponível em: <http://www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt/verlivro.php?id_parte=106&id_obra=73>. Acesso em: 12 mai. 2014. Lei régia que foi aprovada em 1757 e, depois, extendida por todo o

dizer que a configuração da territorialidade indígena passou por novas e fortes movimentações, de modo que, havia toda uma dinâmica de territorialização e reterritorialização dos povos, difícil de representar em algo mais estático.

Nesse desejo de representar, de forma cartográfica, o que era dinâmico, foi construído o Mapa “Etno-Histórico do Brasil e Regiões Adjacentes”, fruto do trabalho exaustivo de pesquisa dos territórios das nações indígenas de Curt Nimuendajú, que, também, traz forte contribuição para compreensão das espacialidades e territórios habitados pelas diferentes nações que fizeram parte da construção social do Sertão do Rio Piranhas (Mapa 12).

Brasil. Reconhecia os indígenas como vassalos da Coroa, mas considerava-os incapazes de se governar, de modo que repassava às autoridades administrativas colonizadoras o poder de indicar Diretores para as Vilas de Índios que foram criadas. O Diretório buscou secularizar a administração dos povos indígenas e, ao mesmo tempo, desarticula-los através da destruição de sua identidade.

Mapa 12 – Fragmento do Mapa Etno-Histórico do Brasil e Regiões Adjacentes 160.

Fonte: NIMUENDAJÚ, Curt. Museu Nacional, RJ, 1944. Publicado pelo IBGE, 1980.

Essas dinâmicas de desterritorialização e reterritorialização das nações indígenas e das aldeias nas quais vieram a se vincular, aponta o sentido da alta mobilidade dos sujeitos e grupos dentro dos espaços sertanejos (que englobavam, inclusive, o Sertão do Rio Piranhas e seus afluentes), que desencadeou outras mobilidades em diferentes domínios, como o econômico, o político, o cultural, o social e o ambiental.

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4 DESTERRITORIALIZAÇÃO E RETERRITORIALIZAÇÃO: EMBATES