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PARTE I: CONTEXTUALIZAÇÃO DAS MISSÕES DE PAZ

1.2. Enquadramento das Operações de Paz

O final da Guerra Fria e o período que se seguiu contribuíram inequivocamente para as profundas mudanças operadas na ONU. A ausência de uma competição nuclear entre os dois blocos (NATO e Pacto de Varsóvia) alterou a nossa percepção e o paradigma da segurança global em que os conflitos no interior dos estados dão lugar a atores não-estatais.

Em consequência do novo contexto internacional, e uma vez que a ONU não dispõe de Forças Armadas próprias, passa a partilhar as OP com organizações regionais, e desta forma, a garantir apoio para as suas acções, conforme se encontra previsto no capítulo VII da CNU. Neste sentido, as OP, ditas de segunda e terceira geração, vieram inaugurar uma nova era, sofrem também uma evolução, tornando-se mais complexas e multifuncionais ou multidisciplinares, pois, para além das funções tradicionais, passam a incorporar tarefas militares e de carácter mais abrangente, civil e humanitário.

As OP da ONU fazem parte dum processo de constituição de mecanismos de

governança, ao nível global, principalmente através dos conceitos difundidos em 1992, com a

publicação de referência para a doutrina das OP da ONU - “Agenda para a Paz”, lançada pelo então Secretário-Geral, Boutros-Ghali. Neste documento foram definidos conceitos fundamentais para os diferentes tipos de actuação das OP para a resolução de conflitos. A partir desta data, a ONU compromete-se pela primeira vez, formalmente num domínio conceptual, no que viria a denominar-se por OP.

A “Agenda para a Paz” resulta dos desafios colocados à ONU pelo novo contexto internacional resultante do final da Guerra-Fria, da queda do Muro de Berlim, em 1989, e do desmoronamento do Império Soviético (ex. URSS). Estes acontecimentos podem ser vistos como referência para o aparecimento de uma nova conjectura que fez emergir novas ameaças à paz e segurança internacional e também uma nova tipologia de OP que impõem novas formas de actuação, particularmente aos militares envolvidos nestas missões.

A “Agenda para a Paz” revela os novos domínios de intervenção da ONU no âmbito da manutenção da paz e segurança internacionais, e define a intervenção da ONU em quatro áreas: a diplomacia preventiva, o peacemaking, a manutenção de paz (peacekeeping), e a consolidação da paz pós-conflito (peacebuilding). A ONU passou a intervir num conceito mais abrangente, incluindo outras actividades, intervindo não apenas para gerir a violência, mas também para impedir que ela deflagrasse ou se reacendesse, ou seja, alargando a sua intervenção ao antes e depois do conflito deflagrar (Branco, 2004, citado por FMS, 2006).

Estes conceitos foram actualizados, em 1995, no “Suplemento da Agenda para a Paz”, em consequência da análise aos fracassos de algumas missões (Angola, Somália e particularmente o genocídio no Ruanda,) e das lições aprendidas pela ONU ao participar nestas primeiras missões de paz dos anos noventa, o que permitiu reformular conceitos que necessitavam de adaptação após terem sido testados. Em 1999, Monteiro e Guimarães referem que esta reformulação e adaptação espelham um processo de autocrítica relativamente ao envolvimento da ONU em missões de paz sem uma devida preparação prévia.

Mais tarde, através do “Relatório Brahimi”, em 2001, cerca de oito anos depois e muitas experiências traumáticas, a ONU faz o “balanço” das actividades relacionadas com as OP e a segurança internacional. O quadro obtido, no entanto, é desalentador, em comparação com as esperanças e expectativas suscitadas em 1992. A própria credibilidade da ONU foi colocada em causa pelo menos em duas situações importantes: Ruanda e Bósnia (com destaque para o funesto episódio de Srebrenica). Essas tragédias e acontecimentos traumáticos suscitaram extensa actividade de autocrítica. Era necessário, pois, “reformar a reforma

proposta” para as OP da ONU. Paz e Segurança são os referenciais para julgar a performance da ONU e, nesse requisito, o desempenho foi bastante frágil, entre 1992-2000.

O surgimento de novos problemas resultantes de conflitos étnicos, religiosos e económicos, levou à implementação de novas formas de actuação, com um maior envolvimento civil, preocupações de segurança nas missões militares e na coordenação das acções humanitárias.

O “Relatório de Brahimi” passa a ser uma referência ao identificar as insuficiências da ONU nas OP, ao indicar recomendações explícitas para o Secretário-Geral das Nações Unidas, Conselho de Segurança (CS) e Estados Membros, nomeadamente a necessidade de se introduzir nas OP uma nova concepção de legítima defesa. A partir de 2003, este novo conceito passou a fazer parte integrante da actuação das OP, cujos mandatos passaram a ser legitimados pelo capítulo VII da CNU, ultrapassando os limites da prévia anuência dos Estados, imperativo das OP ao abrigo do capítulo VI.

Portanto, verificamos que em determinadas circunstâncias em que se impõe o uso da força, depois de terem falhado os meios diplomáticos e pacíficos para atingir tal finalidade, o CS, ao abrigo do capítulo VII da CNU e do art.º 42º, pode utilizar o uso da força para restabelecerem a manutenção da paz e segurança internacionais, ficam os Estados-membros, ao abrigo do art.º 43º, vinculados a ceder as forças necessárias, não apenas as unidades militares, mas também as facilidades indispensáveis à sua concretização.

Também em 2003 o DPKO da ONU, reconhece que o seu empenhamento foi “tímido” em fornecer dados concretos para “melhores práticas” das OP e nesse sentido cria o

Handbook on United Nations Multidimensional Peacekeeping Operations, em que passa a

referir-se às OP como sendo multidimensionais, designando colectivamente todo e qualquer envolvimento militar, independentemente do tipo de operação. Aquele documento descreve exaustivamente as possíveis tarefas dos militares nos diferentes tipos de missões de paz, pelo que o conceito considerado no presente estudo para OP, refere-se sempre a qualquer missão de paz internacional que envolva a componente militar.

O enquadramento das OP não está claramente definido na CNU, o que tem levantado alguma discussão em relação à sua legitimidade. Tradicionalmente, o conceito de missões de paz enquadra-se no capítulo VI da CNU, sendo alargado ao capítulo VII da Carta para passar a envolver directamente outras organizações regionais de segurança como a NATO. Assim, a CNU, refere no capítulo VI “resolução pacífica dos conflitos”, e no capítulo VII “resoluções relativas a acções em defesa da paz, quebras ou ruptura de acordos de paz, e actos de agressão”, sendo este o enquadramento legal para as missões de paz internacionais.

Para Bruno Simma (2002, citado por FMS, 2006), o poder das NU para implementar as OP, apesar de não estar previsto na Carta, foi reconhecido pelo Tribunal Internacional de Justiça (TIJ) e não foi questionado por nenhum Estado, membro ou não, ou por outras organizações. O reconhecimento do TIJ confirmou a legalidade das OP como instrumento legal de que as NU dispõem para resolver os conflitos armados.

Assim, uma OP é, por princípio, constituída por um mandato que determina o seu período de vigência, bem como as funções e poderes que lhe são atribuídas, e é normalmente aprovado através de uma resolução do CS. O mandato define, em termos gerais, a aplicação do uso da força e em que condições. Em regra, operações aprovadas no âmbito do capítulo VI (resolução pacífica de disputas) não podem usar a força senão em legítima defesa, no entanto as operações autorizadas ao abrigo do capítulo VII (acção de ameaças à paz, quebras de paz e actos de agressão) podem usá-la em circunstâncias mais alargadas. Mesmo quando aprovadas no âmbito do capítulo VII, estas operações mantém as suas características essenciais de neutralidade, imparcialidade e consentimento do estado anfitrião.

Dada a complexidade de muitas das operações estabelecidas nos últimos anos e o contexto de segurança instável em que estas, muitas vezes, operam, tem-se verificado um alargamento do conceito de uso da força em legítima defesae, ao tempo, uma maior tendência para aprovar as operações sob o capítulo VII da Carta, para que estas possam responder a desenvolvimentos no terreno e usar a força em caso de necessidade (Findlay 2002, citado por FMS, 2006). As intervenções no Afeganistão e no Iraque estariam enquadradas entre o capítulo VI e VII. Por princípio, as OP cujo mandato preveja o emprego de forças militares devem ser sempre sancionadas pelo CSNU.

O facto da “Agenda para a Paz” e do Suplemento serem referências conceptuais incontornáveis sempre que se fala de conceitos relacionados com as OP, não invalidou que as organizações regionais, como a NATO, revissem e adaptassem alguns dos conceitos propostos, sobretudo quando se trata do uso da força, e os adaptassem às suas necessidades. Numa primeira fase, através dos meios pacíficos previstos no capítulo VI da CNU, ou seja, a projecção de forças da ONU num determinado território com o consentimento das partes envolvidas. Esta fase envolve normalmente forças militares e/ou policiais e também civis, e numa segunda fase, a consolidação da paz, acções destinadas a apoiar a construção de estruturas e reforçar a paz e evitar o reacender das hostilidades.

A ONU continua a ser a única organização global dotada da legitimidade necessária para levar a bom termo intervenções no âmbito das várias actividades das OP. E é com base nos artigos dos capítulos VI e VII que o Conselho de Segurança determina ou aconselha as

acções a desenvolver pelos Estados em conflito ou pela Comunidade Internacional em geral, para a resolução de conflitos que sejam avaliados como constituindo ameaça à paz e segurança internacionais. É neste contexto que os militares portugueses têm participado em OP, demonstrando a sua actuação decisiva para a estabilização e solução de conflitos.

Um dos instrumentos orientadores da actuação das forças militares são as Regras de Empenhamento (ROE) que determinam quando e em que condições as tropas de uma OP podem ou não usar a força. O mandato de uma operação determina, em geral, se a força pode ou não ser usada. No entanto, não é claro sobre as condições e medida precisa do seu uso, mesmo no caso de uso da força apenas em legítima defesa. O próprio conceito de legítima defesa tem sofrido adaptações sendo a sua aplicação complexa (McCoubrey & White, 1993, citado por FMS, 2006).

As ROE são normas e regulamentos que os militares têm que seguir com rigidez, limitando o uso da força a situações letais de “último recurso”. Neste sentido, a sua aplicação pode tornar-se numa condicionante criando um acréscimo de stresse nos militares na medida em que existem acontecimentos que colocam a sua vida em perigo, por não poderem responder a actos de agressões ou ameaças provocadas pelos insurgentes, sob risco da população civil se virar contra os militares (Franke, 2003; Litz, 2007).

Segundo o Relatório da FMS (2006), as ROE são elaboradas na ONU, antes das tropas se deslocarem para o terreno e após consulta com os Países contribuintes com forças. A divulgação da informação respeitante às ROE é feita no terreno e é da responsabilidade do comandante da força. Apesar de existir um modelo de listagem de ROE, estas variam em função do mandato de cada missão específica e respectiva autorização para o uso da força, bem como o seu enquadramento político e de segurança.

A aplicação das ROE é da responsabilidade do comando operacional da força e pode constituir uma fonte de problemas entre o comandante e os diferentes contingentes, pois podem ter diferentes interpretações do próprio conceito, conteúdo ou estatuto das ROE. Na prática, quando existem dúvidas sobre a interpretação de uma determinada regra ou sobre a forma e que regra a aplicar em determinada situação, a tendência natural do militar é recorrer às regras nacionais a que está habituado, implicando o risco de haver militares de uma mesma força da ONU que seguem orientações diferentes quando reagem a situações críticas envolvendo o uso de armas de fogo.

O empenhamento das Forças Armadas nas OP internacionais é realçado na 4ª revisão Constitucional, especificamente na concretização dos compromissos assumidos a nível internacional no âmbito das organizações de que Portugal faz parte. O enquadramento das

missões internacionais das Forças Armadas é definido pelo Conselho Superior da Defesa Nacional, tendo por base a revisão do Conceito Estratégico de Defesa Nacional (CEDN) de 20035 e o Conceito Estratégico Militar, sendo da responsabilidade do Governo e do Presidente da República deliberar sobre o emprego de forças no exterior. Este Conceito vem realçar a importância da participação de Portugal no quadro das intervenções multinacionais.

Dentro das missões específicas das Forças Armadas (FA), enquadram-se aquelas que têm por objectivo os compromissos assumidos no âmbito das Organizações Internacionais da qual Portugal faz parte, (e.g. ONU e NATO), em que a finalidade é preservar a paz e segurança internacionais. Neste sentido, foi necessário, em 1997, introduzir uma revisão ao art.º 275 da Constituição, que incumbe às Forças Armadas, nos termos da lei, “satisfazer os compromissos internacionais do Estado Português no âmbito militar e participar em missões humanitárias e de paz assumidas pelas organizações internacionais de que Portugal faz parte”. Esta alteração constitucional foi um instrumento para a legitimação de intervenções das FA, numa variedade de missões e nas mais diversas regiões do globo.

Em síntese: são essenciais os princípios do consentimento, no que se refere ao respeito pela soberania dos Estados onde se desenrola a operação, o emprego da força militar apenas em situações de autodefesa, o uso mínimo da força, e um comportamento da força imparcial. No entanto, o General Avelar de Sousa (2013), com larga experiência na participação em missões de paz da ONU e NATO, refere três características importantes e fundamentais para o sucesso das missões: imparcialidade, firmeza, e sensibilidade humana.

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