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da igualdade: lacunas a fechar, caminhos a abrir” (2010), “Mudança estrutural para a Igualdade” (2012) e “Pactos para a igualdade: para um futuro sustentável” (2014), todos publicados pela CEPAL e elaborados por diversos contribuintes da CEPAL, mas assinados por Alícia Bárcena e Antonio Prado, secretários executivos da CEPAL.

Esses documentos evidenciam a necessidade de se incorporar a igualdade como um princípio ético, normativo e como o próprio objetivo do desenvolvimento (BÁRCENA, PRADO, 2010). A inclusão social é compreendida em seu sentido amplo, a partir de elementos que melhoram as capacidades humanas, igualam as oportunidades, geram coesão e combatem a reprodução da exclusão. Neste aspecto, essas elaborações estendem os enfoques da década de 2000 e da própria TPE (transformação produtiva com equidade), mas, diferencia-se da TPE ao passo em que foca de forma mais expressiva na necessidade de fortalecimento do papel do Estado frente a distribuição de renda e na manutenção de mecanismos de proteção social com foco universalista (BIANCARELLI, VERGNHANINI, 2020).

Outro ponto da década de 2000 que é aprofundado nos documentos da década de 2010 é no enfoque na relação entre o econômico e o social, e na concepção que a complementariedade entre esses dois âmbitos é o que caracteriza o desenvolvimento atual:

Nesse sentido, a análise apresentada neste documento adere plenamente à ideia de que a igualdade social e o dinamismo econômico que transformam a estrutura produtiva não estão em desacordo entre si e que o grande desafio é encontrar as sinergias entre os dois elementos. A proposta aqui formulada vai nessa direção e nos leva ao próximo ponto:

quando falamos de igualdade, o fazemos sabendo que devemos crescer para igualar e igualar para crescer. Por isso, em nenhum caso propomos sacrificar o valor do dinamismo econômico e produtivo no altar da igualdade. No horizonte estratégico de longo prazo, igualdade, crescimento econômico e sustentabilidade ambiental devem andar de mãos dadas, apoiar-se mutuamente e reforçar-se mutuamente em uma dialética virtuosa10

Neste cenário, é proposta uma visão integrada por parte da CEPAL, que compreende a sinergia entre quatro dimensões do desenvolvimento: macroeconômica,

10 BÁRCENA, PRADO (CEPAL), 2010, p. 12)

produtiva, ambiental e social/trabalhista. O Estado deveria, sob essa perspectiva, ter papel central em garantir esse fluxo. Se o caminho para a inclusão social é o emprego e a qualidade da remuneração, seria papel do Estado reduzir as brechas salariais e garantir uma apropriação mais justa do aumento da produtividade, sendo assim, o Estado deve zelar por uma institucionalidade trabalhista que propicie essa apropriação mais justa dos ganhos do aumento da produtividade. Para além, no contexto do subdesenvolvimento onde há grande segmentação do mercado de trabalho e uma alta informalidade de empregos, o Estado deveria se apropriar de parte dos incrementos de produtividade para conseguir financiar sistemas robustos de proteção social (BIANCARELLI, VERGNHANINI, 2020).

Essa nova agenda da CEPAL a partir de 2010 resgata o potencial do mercado interno como fonte de crescimento, assim como elaborado na década de 1990, mas de forma menos enfática, e com a transição para uma concepção de que a dimensão social possui potencial em afetar positivamente o dinamismo econômico, ao passo em que permitiria uma elevação na produtividade e com o foco em capacitação e educação manteria os níveis necessários de demanda interna para reativar a atividade econômica (BIANCARELLI, VERGNHANINI, 2020).

Na concepção da década de 1990 o enfoque dado à estratégia voltada às exportações e a participação nos mercados globais fez com que o mercado interno não fosse entendido como a principal fonte de dinamismo e progresso social, e a dimensão social era subordinada ao mercado externo, crescimento e a estrutura produtiva, onde os salários são vistos como custos, e não como uma fonte de demanda e mercado consumidor (BIANCARELLI, VERGNHANINI, 2020).

Essa é a principal mudança da nova agenda “social-desenvolvimentista” de 2000 e 2010, que coloca a questão social no centro das preocupações, sendo evidente elementos como cidadania, direitos à educação, saúde, transporte, e também elementos da dimensão econômica social, como a geração de empregos de qualidade e a distribuição de renda (BIANCARELLI, VERGNHANINI, 2020).

Em 2012, a publicação “Mudança Estrutural para a Igualdade: Uma visão integrada do desenvolvimento” da CEPAL marca a transição da TPE para a MEPI. Este documento surge com a intenção da CEPAL de:

oferecer uma visão mais integrada do desenvolvimento, com orientações claras para levar à frente componentes decisivos da dinâmica e da política do desenvolvimento,

além de círculos virtuosos entre o crescimento acelerado e o aumento da igualdade, sustentáveis tanto no curto prazo, como no prazo mais longo.11

A MEPI dá continuidade ao enfoque social proposto pela TPE, aprimorando essas elaborações, mas, existe uma diferenciação quanto a TPE em termos de “equidade” para

“igualdade”. A igualdade significa não apenas atuar nas lacunas de oportunidades para a população, mas também um compromisso firmado pelo Estado para redistribuir os frutos do desenvolvimento, buscar ampliar o equilíbrio na distribuição produtiva e no aproveitamento dos ganhos da produtividade por conta desses fatores. Em um contexto de igualdade, caberia também ao Estado prover marcos normativos de direitos sociais, para promover pactos fiscais em termos de prestação de serviços universais (BÁRCENA, PRADO, 2010).

Diante neste novo cenário, a CEPAL admite que a transformação produtiva não conseguiria obter os efeitos esperados na sociedade e na política se se mantivesse restrita à criação de ilhas de alta tecnologia e produtividade em meio à setores de subsistência e primários, que era justamente o objetivo da TPE, promover o avanço tecnológico em determinados setores ligados à bens de alto valor agregado. Este movimento foi evidenciado nas experiências de alguns países latino-americanos, onde há vários polos tecnológicos rodeados de áreas urbanas e rurais degradadas. É a partir deste ponto que a MEPI modifica os conceitos da TPE e dá mais enfoque às questões de igualdade e do meio ambiente (MORAES, et. al. 2020).

As políticas sociais e redistributivas são peças chave na MEPI, pois, segundo a CEPAL (BÁRCENA, PRADO, 2014), essas políticas evitam a concentração de renda e propagam os ganhos ao longo de toda a sociedade. Para além, a MEPI é caracterizada pela CEPAL como uma visão de longo prazo para promover transformações sociais (MORAES, et. al. 2020). Neste ponto há uma diferença chave em relação às décadas anteriores. No início da CEPAL havia um foco em ajustes de longo prazo, que pudessem alterar as causas estruturais do subdesenvolvimento, mas posteriormente, nas décadas de 1980 e 1990, o foco da Comissão desloca-se para ações de curto prazo. Portanto, é possível observar uma retomada, só em 2010, das características da CEPAL estruturalista, focada em ajustes de longo prazo.

11 BÁRCENA, PRADO (CEPAL), 2014, p. 15)

As políticas públicas sociais também são um elemento central nessa nova fase da Comissão ao passo da ênfase na importância das instituições democráticas e do investimento em capacidade humana em detrimento do capital humano (MORAES, et.

al. 2020). A diferenciação entre capital humano e capacidade humana é feita no documento de 2010, onde capital humano é entendido como um ajuste meritocrático baseado no valor dos indivíduos no mercado, e, desta forma, é substituído pela concepção da capacidade humana, que compreende a igualdade de direitos e acesso à educação e conhecimento, sob a qual o Estado deve exercer seu papel redistributivo (MORAES, et.

al., 2020).

É importante destacar a questão da integração regional na década de 2010. Nos documentos da década de 2000 há uma ênfase na integração regional latino-americana como um meio para se alcançar um melhor posicionamento do bloco na economia global.

Neste sentido, a CEPAL reflete as dinâmicas dos governos latino-americanos, de fato houve uma movimentação em torno da integração regional, não só entre a América Latina, mas iniciativas de integração Sul-Sul também são presentes, como a criação do Mercosul e da UNASUL, não explorados na presente pesquisa pelo recorte dado exclusivamente à América Latina, mas importantes de serem mencionados devido aos esforços da região em alternativas de integração regional. O Brasil teve papel primordial em iniciativas de integração no Cone Sul, muito devido à diplomacia de Rio Branco e o governo de Lula no Brasil.

Essa integração regional é reforçada no início da década de 2010. No ano de 2010 houve a criação da CELAC (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos) durante a II Cúpula da Unidade da América Latina e Caribe no México. A CELAC foi instituída como um mecanismo intergovernamental de diálogo e consultas políticas, incluindo os 33 países da América Latina e Caribe. O seu objetivo é servir como um espaço de convergência da região, para impulsionar uma agenda política integrada (ARROYO, 2017).

A integração latino-americana deste momento objetivava uma posição mais autônoma dos Estados da região em relação ao intervencionismo norte-americanos e instituições internacionais como a OMC. Diversas foram as iniciativas no início da década de 2010 neste sentido, para promover maior aproximação das nações latino-americanas nos âmbitos econômicos, sociais e políticos, além de uma coordenação e cooperação em áreas como educação, cultura, infraestrutura, energia, finanças e ciências.

Essa integração foi possível devida à uma sintonia ideológica e política entre a maioria

dos governos da região, que objetivavam maior autonomia no sistema internacional (ARROYO, 2017).

Entretanto, diversos são os problemas da região neste recorte temporal. Um dos principais problemas foi a reprimarização da economia, promovida na década de 2000 que ecoa na década de 2010. Essa reprimarização envolveu uma ampliação no extrativismo e mineração, que ampliaram os impactos ambientais deste modelo produtivo (ARROYO, 2017), o que dialoga com o diagnóstico da CEPAL acerca da necessidade de se promover o desenvolvimento sustentável, que seja atrelado à maiores níveis de consciência ambiental nos países latino-americanos.

No gráfico 2 abaixo é possível ver a ampliação na produção de grãos na América Latina na década de 2000, demonstrando essa reprimarização da economia experienciada pela região na década de 2000, e, ainda, a constante ampliação dessa produção até 2015:

Gráfico 2 – Produção de Grãos na América Latina (Toneladas, Milhões)

Fonte: Banco Mundial (https://data.worldbank.org )

A reprimarização da economia reforça a inserção da região em uma divisão internacional do trabalho, retomando o diagnóstico feito por Priebisch (1949), onde a América Latina ocupa uma função de “abastecedora”, com exportações de baixo valor agregado e baixos níveis de inovação tecnológica. Essa reprimarização vai contra toda a evolução promovida pela CEPAL em suas primeiras décadas, retoma um cenário amplamente discutido pela CEPAL, e reforça até mesmo a perda de influência da

comissão sobre os governos nacionais, uma vez que sua prática não está alinhada aos preceitos cepalinos.

Para além, durante a década de 2010 observa-se uma conjuntura internacional desfavorável a região, devido à exaustão do boom de preços das commodities e a desaceleração econômica da China no comércio global. Há também diversas transformações políticas. O cenário de governos de esquerda é deixado pra trás, em um momento conturbado em países como Argentina e Brasil, que apresentaram um avanço conservador à direita e uma retomada das experiências neoliberais da década de 1980 e 1990, com posições favoráveis à assinatura de acordos de livre comércio com os Estados Unidos em detrimento da integração regional (ARROYO, 2017), representando um retrocesso em relação à integração latino-americana promovida no início da década.

Este afastamento dos governos de iniciativas de integração regional fica explícito principalmente após 2015. Com a mudança nos contextos políticos da região, surgem diversos discursos contrários ao caminho percorrido na última década de integração. Em 2016 o Mercosul sofre diversas críticas devido à presença da Venezuela no bloco, e países como a Argentina e Brasil passam a objetivar tratados bilaterais e multilaterais com o norte global, em detrimento do sul-global (ARROYO, 2017).

O lema da CEPAL a partir de 2010 passou a ser “igualar para crescer e crescer para igualar”, que se refere ao crescimento produtivo agora com a igualdade, onde a proteção social e o investimento social devem estar conectados para promover a igualdade e o dinamismo produtivo (BÁRCENA, PRADO, 2010).

Uma dinâmica virtuosa entre crescimento e igualdade dependeria de melhores instituições e estruturas que sejam propícias ao desenvolvimento sustentável e a igualdade social. Seria necessário criar um ambiente capaz de elaborar novos pactos sociais para construir marcos regulatórios na direção do desenvolvimento sustentável e igualdade social (BÁRCENA, PRADO, 2010). Esses marcos regulatórios são explorados no documento “Pactos para a Igualdade: rumo a um futuro sustentável” de 2014, onde diversos pactos são enumerados para que seja possível alcançar o desenvolvimento sustentável, como pactos no sentido de investimento e mudança estrutural, acordos fiscais por um melhor equilíbrio entre o setor privado e o setor público, uma governança dos recursos naturais, a preservação do meio ambiente e um pacto social trabalhista que potencialize a capacidade de redistribuição do Estado.

É evidente a incorporação do desenvolvimento sustentável nos esforços teóricos da CEPAL. A primeira menção ao conceito se dá na década de 1990, mas é a partir de

2010 que as publicações de CEPAL dão foco ao desenvolvimento sustentável nos moldes da ONU. A publicação de 2014 acerca dos pactos para a igualdade descreve, ainda, ações para cada pacto elencado, com grande ênfase nas ações de sustentabilidade. Há, inclusive, um capítulo dedicado aos padrões de consumo e de desenvolvimento, que traça um paralelo sob a forma de desenvolvimento capitalista altamente nociva ao meio ambiente e aos recursos naturais das décadas passadas:

Há evidências suficientes para indicar que os limites de risco foram atingidos, o que exige um novo rumo a ser seguido, especialmente em questões energéticas. Esse desafio está relacionado aos padrões de produção dependentes de fontes de energia fóssil que geram grandes emissões de carbono. As mudanças climáticas vão impor limites e forçar uma reorientação do paradigma produtivo e dos padrões de consumo.12

Essa incorporação do desenvolvimento sustentável nas publicações da CEPAL demonstra uma preocupação da Comissão em estar alinhada com os discursos e referenciais teóricos de outras comissões das Nações Unidas (MORARES, et. al. 2020).

E evidencia uma mudança de posição da Comissão quanto uma escola de pensamento, agora para uma agência multilateral da ONU, profundamente institucionalizada e normativa.

Neste mesmo sentido, em 2016 é lançado o documento “Horizontes 2030: a igualdade no centro do desenvolvimento sustentável”, que aprofunda as reflexões quanto ao desenvolvimento sustentável e os conceitos trabalhados no texto de 2014. Este relatório evidencia uma mudança histórica na humanidade, onde o crescimento econômico cede espaço para a preocupação do desenvolvimento sustentável, ao passo em que os modelos de organização produtiva e o capitalismo promoveram uma degradação ambiental sistemática através do esgotamento dos recursos naturais não renováveis, além da poluição generalizada. O antigo modelo de desenvolvimento econômico que visava exclusivamente o crescimento não embarcava a preocupação com a sustentabilidade, pois entende a eficiência como a extração máxima dos recursos naturais e a transformação destes para se obter crescimento econômico (MORAES, et. al. 2020).

12 BÁRCENA, PRADO (CEPAL), 2014, p. 247)

O processo de produção no capitalismo envolve uma produção de valor de uso e um processo de valorização, este processo é materializado através do uso da energia e dos recursos naturais. A competição dentro do capitalismo implica em um movimento de mecanização, visando o aumento da produtividade. A necessidade capitalista de explorar o trabalho na produção pode ser satisfeita por essa mecanização crescente, esta, implica em uma necessidade crescente de energia e recursos e também implica em um rendimento máximo dos recursos materiais com força de trabalho mínima (LIODAKIS, 2010).

Foram essas dinâmicas que levaram à atual crise ambiental, e são fatores reconhecidos pela CEPAL em suas publicações. Para além, é evidente o alinhamento da Comissão às diretrizes de desenvolvimento empregadas pelas agências da ONU, os documentos oficiais da ONU que tratam o desenvolvimento sustentável, como o

“Transformando Nosso Mundo: a Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável” e

“Os 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável” são referenciados no documento de 2016 da CEPAL, e este tem um papel de complementariedade aos demais documentos da ONU sobre a Agenda 2030 (MORAES, et. al. 2020).

O documento de 2016 caracteriza o desenvolvimento sustentável como um “novo estilo de desenvolvimento” (BÁRCENA, PRADO, 2016, p.13). E, para a concepção neoestruturalista, este novo estilo de desenvolvimento deve ser baseado em uma mudança estrutural progressiva, caracterizada por um processo de transformação em atividades e processos produtivos que apresentem três principais características de eficiência:

intensiva aprendizagem e inovação tecnológica; associação à mercados de rápida expansão que permitam o aumento na produtividade e nos empregos; proteção ao meio ambiente e desassociação entre crescimento econômico e emissões de carbono. Para além, seria necessário obter uma estrutura produtiva que contemple esses três tipos de eficiência, através de um novo conjunto de instituições e coalizões políticas em níveis globais, regionais, nacionais e locais (BÁRCENA, PRADO, 2016).

De acordo com o documento de 2016, a América Latina e o Caribe teriam dois desafios em andamento: a busca pela acumulação de capital para que seja viável o desenvolvimento, e a nova preocupação com a proteção ambiental. Neste contexto, a MEPI seria a forma pela qual os países da região conseguiriam abandonar sua estratégia do passado, preocupada com o crescimento a qualquer custo, mas sem se assentar nos preceitos da ortodoxia convencional (MORAES, et. al. 2020).

O fato é que durante toda a década de 2010 a CEPAL se empenhou em manter os preceitos cepalinos das duas décadas anteriores e em reformular estratégias para a

aplicação de conceitos que não puramente alinhados ao neoliberalismo. Mas suas elaborações parecem ter se distanciado do campo prático de políticas desenvolvimentistas próprias da América Latina e se aproximado à uma narrativa conformista e congruente quanto às novas dinâmicas internacionais, como fica evidente nos documentos da década de 2000 que destacam a impossibilidade do Estado de atuar frente às dinâmicas da globalização, que estas determinam as “regras do jogo”.

Além disso, a CEPAL não incorpora as reais dinâmicas políticas e econômicas embarcadas na década de 2010. Se em um primeiro momento a CEPAL possuía influência sobre as dinâmicas dos governos latino-americanos, a partir da década de 1980 passa a refletir mais o contexto do que influenciá-lo de fato, e na década de 2010 parece desconexa das dinâmicas políticas, isso porque em suas publicações o foco nas questões sociais e sustentáveis se afasta do que é praticado pelos governos, que parecem caminhar em um sentido oposto de tudo elaborado pela CEPAL no período. E as publicações da CEPAL se aproximam muito mais da narrativa das Nações Unidas, e se afastam das questões estruturais e as interpretações críticas das relações entre centro e periferia por quase toda a década de 2010.

No documento “A ineficiência da desigualdade” publicado em 2018 no âmbito da CEPAL, é sintetizado as ideias do neoestruturalismo cepalino e finalmente alguns conceitos são resgatados para a concretização da MEPI na região, só no final da década de 2010, mas de forma tímida e com pouca audiência da Comissão nos governos nacionais da região.

Um ponto importante é a retomada do conceito de “cultura do privilégio” para explicar as dinâmicas latino-americanas. A cultura do privilégio tem origem desde a colonização da região pelos países centrais, onde o conquistador, o colonizador, o fazendeiro e o político adotaram uma cultura de negação do outro. Sob o controle do Estado, a elite menosprezava os povos originais, os afrodescendentes, imigrantes, camponeses e analfabetos, criando uma cultura do privilégio, onde a hierarquia incorporada pelas instituições perpetuam os privilégios e a reprodução das desigualdades através das estruturas e instituições sociais (MORAES, et. al. 2020).

Este conceito de cultura do privilégio é revisitado na publicação de 2018 da CEPAL sobre a ineficiência da desigualdade, no sentido de que essa cultura se perpetua até hoje e impossibilita que o MEPI seja colocado em prática. Um exemplo é o sistema tributário latino-americano, onde as isenções e o baixo imposto sobre a renda na região geraram uma carga tributária regressiva, afetando o consumo e atingindo de forma mais

expressiva a classe média e pobre (MORAES, et. al. 2020). Em 2014 a carga tributária média dos países da América Latina era metade da média de um conjunto de 15 países da União Europeia, e a taxa efetiva de carga tributária sobre a renda alcançou 4,8%, em contraste com 21,3% nos 15 países da União Europeia avaliados (OCDE, 2016).

O documento de 2018 também pontua que o atual estilo de acumulação de capital se dá através da cultura do privilégio, e que a concentração de renda nos países latino-americanos divide a população com privilegiados, resultado no aparelhamento do Estado e suas instituições por essa divisão, naturalizando a desigualdade (MORAES, et. al, 2020).

É importante ressaltar o caráter otimista da CEPAL na década de 2010 quanto a capacidade dos Estados latino-americanos em implementar estratégias de desenvolvimento que mantenham o pleno emprego, estimule o crescimento da produtividade, corrija as distorções da estrutura tributária e oferte políticas sociais universais, focando no desenvolvimento inclusivo. Entretanto, a partir de 2015, as mudanças institucionais nos países latino-americanos tornaram mais difícil a formulação ou manutenção de uma estratégia com essas características (MATTOS, 2021), e evidenciam o afastamento da Comissão em relação às dinâmicas da região.

Em algumas nações latino-americanas há um descompromisso quanto a políticas e reformas que pudessem reduzir as desigualdades econômicas. Este processo provocou grande frustrações nas sociedades latino-americanas, uma vez que a região experimentou uma diminuição nas desigualdades no início da década de 2000 com a onda rosa, que parece se esvaziar. Esses movimentos são expressivos na Argentina, Bolívia, Brasil, Chile e Venezuela, onde houveram protestos sociais, que, em alguns casos, culminou em embates políticos violentos e evidenciou um acirramento na luta de classes (MATTOS, 2021).

Um exemplo foi o Brasil, que entre 2004 e 2014 apresentou melhoras na inclusão social, principalmente pela geração de empregos e a elevação dos salários, bem como as políticas sociais. Mas, com a crise econômica e política que eclode em 2015, frente a instabilidade política que levou ao impeachment de Dilma Rousseff, as demandas sobre o Estado se ampliaram e evidenciaram os interesses políticos divergentes em conflito.

“Neste contexto desfavorável, ficou nítido que as elites latino-americanas assumem posição contrária à agenda de desenvolvimento da CEPAL” (MATTOS, 2021, p.148).

Ao exemplo específico do Brasil, o impeachment de Dilma evidencia um ataque contra os interesses dos setores das classes trabalhadores em direção a frações da classe

dominante. Para além, após a deposição de Dilma, o Parlamento aprovou um teto para os gastos sociais do governo federal, uma reforma trabalhista e uma reforma da previdência, que promoveram reduções nos direitos trabalhistas e sociais, além da precarização dos empregos formais (MATTOS, 2021), evidenciando o distanciamento das ideias cepalinas e da atuação de fato dos governos.

Para além, as reformas neoliberais que ocorreram no Brasil neste período evidenciam a dificuldade cada vez maior de uma transformação política e social alinhada à igualdade (MATTOS, 2021). Este momento também é importante ao evidenciar o distanciamento dos governos latino-americanos das proposições e elaborações da CEPAL, e a sua perda de influência como um think tank na difusão de ideias e políticas.

Este movimento já estava presente na virada neoliberal do Consenso de Washington, mas se atenua ainda mais diante das diretrizes cepalinas atuais, muito alinhadas ao neoliberalismo e as proposições da ONU, e que, mesmo assim, não tem a influência necessária para influenciar os rumos políticos e sociais da região.

A agenda do desenvolvimento econômico inclusivo proposto pela CEPAL, portanto, não foi concretizada na América Latina. Seja pela perda de influência da instituição, ou pelas instabilidades políticas e econômicas das nações. No sentido oposto, o que foi vivenciado pela região foi um movimento de distanciamento do Estado quanto políticas de redistribuição de renda e melhora nos trabalhos e salários, e uma piora inclusive nos níveis de desemprego, evidenciados no Gráfico 3 abaixo.

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