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P ENSAMENTO FORMAL ABSTRATO : O SUBSÍDIO PARA UM EXERCÍCIO PROFISSIONAL P AUTADO NA S UPERFICIALIDADE DO

transformadas para a construção histórica de uma sociedade não antagônica

C OTIDIANO DO E XERCÍCIO P ROFISSIONAL

1. P ENSAMENTO FORMAL ABSTRATO : O SUBSÍDIO PARA UM EXERCÍCIO PROFISSIONAL P AUTADO NA S UPERFICIALIDADE DO

REAL

Enquanto trabalhador da burocracia estatal, submetido ao mesmo processo de alienação e estranhamento que todo trabalhador, no cotidiano profissional do assistente social, ao implementar as políticas sociais em suas esferas terminais e viabilizar os direitos sociais da população, no geral, atém-se a uma leitura superficial deste contexto, restringindo-se a apreensão dos fenômenos em sua aparência, ao conhecimento das leis, resoluções, orientações técnicas e outros instrumentos normativos que envolvem o serviço no qual está atuando profissionalmente, deixando intocada, ou para segundo plano a compreensão do universo que envolve seu exercício profissional: a natureza do Estado, das políticas sociais e do direito e o motivo pelo qual ele vê diante dos seus olhos a reprodução do infortúnio da vida dos usuários. Desta maneira, o exercício profissional nesta forma de compreender e pensar o trabalho restringe-se a uma visão em conformidade com as ciências sociais, por meio de conceptualizações formais: o Estado de direito parlamentar-democrático, suas formas e procedimentos. (LENHARDT; OFFE, 1984).

Esta leitura limitada ao terreno jurídico-formal fecha os olhos para a diferença entre o que está “posto no papel” e o que existe na realidade e obscurece a luta de classe. Parte do entendimento da sociedade dentro dos marcos burgueses, como um agregado de indivíduos formalmente iguais portadores dos mesmos direitos, na qual cabe que o Estado – entendido enquanto representante universal da humanidade – efetivá-los por meio de suas ações e instituições, dentre elas, as políticas sociais, garantindo direitos dos cidadãos no interior do regime democrático.

Reivindicamos uma prática profissional que tenha visão mais ampla que isso. Não podemos mais prosseguir acreditando na neutralidade do Estado e sua capacidade de emancipação do homem; precisamos questionar que democracia é esta em que o povo nada decide e o que está por trás da pobreza e desumanização da humanidade, cada vez mais aguda. Compreender o fenômeno da pobreza, da violência, da loucura, dentre tantos outros sobre os quais o assistente social é chamado a intervir limitado a sua aparência não torna o profissional apto a compreender o ser humano constituído historicamente e suas questões que requerem intervenção profissional. Se por um lado não compreende o trabalhador e sua família, tampouco compreende os meios

institucionais de resposta, posto que esta leitura desconexa da historicidade, não consegue enxergar a verdadeira natureza do Estado e das políticas sociais, já que não considera a sociedade capitalista como tal, e leva a intervenções profissionais improfícuas para um exercício profissional crítico, como o reivindicado pelo projeto ético-político da profissão.

Apesar de ser consensual dentro da profissão que o assistente social atua no enfrentamento das refrações da “questão social”, tal afirmação está esvaziada de sentido e faz com que o seu exercício profissional seja pautado numa compreensão do Estado e da democracia enquanto categorias de procedimentos técnicos, que perdura e progride desde a Primeira Guerra Mundial, entendendo serem as políticas sociais o instrumento pelo qual o Estado – via intervenção dos “especialistas” - efetiva a cidadania do usuário.

Nestas abordagens formalistas no campo da política social científica, no entanto, as abordagens normativistas fecham os olhos para a dualidade inconciliável das esferas formal e real, facilmente observável na realidade social que o assistente social é chamado a intervir: regras e procedimentos se confrontam com as reais necessidades, fatos com valores, racionalidade formal com material e a responsabilidade pela reprodução da situação de penúria do usuário e sua família são debitadas a seu próprio fracasso, ou a algum problema técnico da gestão do Estado ou da rede de serviços.

Esta análise formalista obscurece a seguinte questão:

[...] como surge a política estatal (no caso da política social) a partir dos problemas específicos de uma estrutura econômica de classes, baseada na valorização privada do capital e no trabalho assalariado livre, e quais são as funções que lhe competem, considerando-se estas estruturas?” [...]” (LENHARDT;OFFE, 1984, p. 14).

Ignorando tal questão, os profissionais se apegam às legislações e seu conhecimento enquanto “especialistas” intervêm na vida do usuário buscando sua “integração social”, ou sua autonomia, comprando, sem se questionar, a ideia de que por meio de técnicas e tecnologias é possível superar as contradições do capital e gerar uma sociedade “mais igualitária”, fechando os olhos para a natureza das relações da sociedade capitalista, o que dá margem para, segundo Mandel (1985, p. 351)

A crença na onipotência da tecnologia [enquanto] forma mais específica burguesa no capitalismo tardio. Essa ideologia proclama a capacidade que tem a ordem social vigente de eliminar

gradualmente todas as possibilidades de crise, encontrar uma solução „técnica‟ para todas as suas contradições, integrar as classes sociais rebeldes e evitar explosões políticas [...]

Embora haja muitas versões desta ideologia, o autor cita que em todas elas se observa a crença de que o desenvolvimento técnico e científico condensou-se num poder autônomo de força invencível; que os problemas emergentes só podem ser resolvidos por meio de tratamento funcional feito por especialistas (e não via política pelo povo); e que a dominação tradicional “deu lugar”, aparentemente, à dominação anônima da tecnologia, ou a dominação burocrática de um Estado que é neutro em relação aos grupos e classes que se organizam por princípios técnicos (MANDEL, 1985).11

Como ressaltam Lenhardt e Offe (1984), a cientifização permite reduzir a carga política do sistema de decisão em dois sentidos: num primeiro, na medida em que a decisão fica para os cientistas que se legitimam socialmente como os aptos para tal; depois numa perspectiva temporal, já que entre a identificação do problema e a aprovação de soluções pode ser produzida uma zona temporal neutra. Quanto mais a política social estatal solicita para os fins de sua auto-realização os serviços do sistema científico, tanto maior parece ser a possibilidade de que conceitos teóricos mais descolados da realidade se desenvolvam.

Sob uma perspectiva de análise descolada da historicidade, o assistente social se vê e é visto enquanto o “especialista” que atua junto a direitos jurídico-formais instituídos, entendendo o Estado enquanto representante universal da humanidade a quem cabe efetivar os direitos mediante suas organizações (Abreu, 2008) e se não o faz, é por algum descaminho (erro técnico, corrupção, etc.).

Dentro desta visão que apreende o fenômeno social em sua aparência, descolado da realidade, não se questiona a reprodução no dia- a-dia da precariedade da vida do trabalhador vinculada a dinâmica societária; e não havendo a dinâmica societária que justifique a desigualdade entre os cidadãos (formalmente) iguais, só pode levar a conclusão de que o trabalhador que chega ao grau de precariedade de necessitá-las para suprir suas necessidades é um “cidadão fracassado” que requer ser “reeducado”, “ressocializado” para promover a sua

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Com isso não queremos dizer que no âmbito das políticas sociais não existam técnicos a quem é demandada resposta profissional eficiente, eficaz e efetiva. Queremos aqui denunciar a discurso tecnicista e burocrático que obscurecem por meio de relatórios, dados e planilhas a luta de classes.

“integração social”, geralmente entendida enquanto conquista de um emprego, ou qualquer trabalho mediante o qual supra suas necessidades, legitimando e naturalizando a exploração que sofre, entendendo por isso a suposta “autonomia”, em conformidade com a função das políticas sociais: autonomia de prover-se mediante o mercado.

Sem buscar a compreensão do Estado e das políticas sociais e da situação do usuário calcadas no solo histórico, o que requer profundo entendimento da dinâmica da sociedade capitalista, o binômio direito- cidadania também se torna turvo e tende a se restringir a uma concepção jurídico-formal que, argumentamos, ser uma forma de compreensão infrutífera do ponto de vista da classe trabalhadora, já que é absolutamente funcional ao atual estágio da sociedade capitalista: uma cidadania atomizada, muda e mediada pelo consumo.

Ocorre que a cidadania a qual os cidadãos do século XXI são propositalmente chamados a vivenciar é – tal como já apontava Marx (2004) - uma cidadania abstrata que não passa do reconhecimento jurídico-formal de uma série de direitos pelo Estado, mas que efetivamente, como bem presenciamos no nosso dia-a-dia profissional, deixa o cidadão desprovido de satisfação de suas necessidades mais elementares.

Este Estado – que reconhece um rol cada vez maior de direitos, contanto que não expurgue os demônios do capital (Abreu, 2008) – enfrenta na contemporaneidade uma crise estrutural do capital e busca protelá-la mediante altíssimos investimentos financeiros, o que enxuga ainda mais os investimentos em políticas sociais e as subsume aos interesses do capital.

Este contexto leva a classe trabalhadora a incessantes lutas individuais pela sobrevivência, numa sociedade que se multiplica a serviço dos interesses do capital e não dos humanos e que, por isso mesmo, leva grandes contingentes humanos a não conseguirem suprir suas necessidades básicas, sequer aquelas reconhecidas jurídico- formalmente. Dentro desta realidade, o assistente social se autorreconhece enquanto profissional que atua na garantia de direitos e promoção da cidadania. Apesar desta propalada identidade profissional, pouco se reflete no exercício profissional sobre a compreensão que se tem deste binômio cidadania-direito.

No geral, no cotidiano alienado a noção que pauta o trabalho do assistente social se restringe a uma concepção abstrata do mundo que, na medida em que não questiona o real, dá sustentabilidade a esta cidadania cada vez mais abstrata e esvaziada de efetividade. O assistente social desenvolve suas ações profissionais cotidianas cumprindo a rotina

institucional, implementando serviços e benefícios que atendam às necessidades do usuário em conformidade com o orçamento a disposição, faz atendimentos individuais ou em grupos coletando informações como cumprimento de uma necessidade formal-burocrática – e não no intuito de conhecer o real, os mecanismos da realidade que produzem aquela expressão peculiar da “questão social” para nela intervir no cotidiano profissional.

O insucesso de nossas ações geralmente atribuímos à incompetência profissional – ao “especialista” que falhou na correção de falhas do sistema - ou ao descompromisso do usuário com sua emancipação, justamente por deslocar todo este processo de seu contexto histórico-concreto. Segundo Lenhardt e Offe (1984, p. 48), o conflito teórico-político que emerge da cientificização da política social pode ser resumida da seguinte forma:

[...] continuará a política social acadêmica ignorando a evidencia dos fatos e seguindo [...] a sustentar a concepção de que a política estatal é capaz, graças a seu saber, de gerar políticas „mais eficientes‟, „mais efetivas‟, „mais adequadas‟, „mais corretas‟ ou mesmo „socialmente mais justas‟? ou poderia ela libertar-se desse equivoco tecnocrático, operando em vez disso com base na evidencia de que não são em absoluto os „policy outputs‟ , com suas estruturas institucionais e legais, que definem o „impacto‟ da política social, mas que são as relações sociais de poder, de coerção e de ameaça, legal e politicamente sancionadas, bem como as oportunidades correspondentes de realização de interesses, que determinam o grau de „justiça social‟ que a política estatal tem condições de produzir? Sendo que os interesses de classe e as leis econômicas de desenvolvimento da ordem social vigente governam as decisões acima da tecnologia. Esta suposta “integração” da classe operária a sociedade capitalista tardia por meio de técnicas e conhecimento científico depara- se, no entanto, com uma barreira intransponível: a incapacidade de integrar o trabalhador e proporcionar-lhe trabalho criativo em vez de um alienado.

Para superarmos a concepção abstrata da vida social, do usuário, do Estado, das políticas sociais e do direito, e chegarmos às relações sociais concretas; a real condição vivida, convidamos o leitor a entrar conosco nas esferas mediatas da realidade, no conjunto de causalidades

sociais nas quais incide o exercício profissional do assistente social e que requerem árduo esforço reflexivo e disponibilidade para exercitar o pensamento crítico.