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ENTRAR NO RIO

No documento Cai Wen Yu - Lao Qi Gong, 2012 (páginas 41-48)

Fabio Fabregas

O treino de LaoQiGong não se limita a buscar a forma. Também é sabido que não adianta buscar imagens do ilimitado, algo tão falado nesse meio; buscar apenas a imagem do ilimitado é sonho, não é verdade. É preciso que o corpo experimente por dentro alguma coisa. Que

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experimente por dentro o ilimitado, caso contrário o praticante pode treinar durante dez anos e não mudar nada.

Vamos descrever neste capítulo algumas sensações esperadas como resultado do treino de LaoQiGong. Vale frisar que as sensações que experimentamos não são imagens produzidas pela mente, mas percepções, tanto aquelas detectadas por meio dos sentidos conhecidos como outras que, embora naturais, não costumam ser acessadas por vias comuns, de modo espontâneo.

Primeiramente precisamos saber que os exercícios da prática do LaoQiGong buscam a expansão do corpo, a abertura de todas as articulações, levando à separação entre os músculos e os ossos. Quando o osso se separa do músculo, a pele se abre, as células funcionam. Esse movimento de expansão que leva à abertura da pele é um excelente remédio para várias enfermidades, não somente as da pele.

No taoismo se diz que, quando o osso está fechado, o músculo abre. O músculo é uma força, o osso é uma força, a pele é uma força. No nosso treino é preciso sentir que entre o osso e o músculo existe espaço. Isso é o que chamamos de relaxar.

Relaxar é expandir. Conforme já disse em trabalho anterior2

, relaxar não é ausência de força. Relaxar não é ficar mole, não é ser fraco, é expandir. Em termos concretos, é preciso ganhar espaço nas articulações e entre os músculos e os ossos. Depois disso é possível se comunicar com o espaço

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‘fora’ dos limites do corpo. “Fora” não é você, mas quando você consegue abrir por dentro, “fora” também se expande e produz um efeito em você, muda o seu corpo.

Ganhar espaço é um dos efeitos da prática do LaoQiGong; pele, barriga, coração, tudo ganha espaço. E é também uma das condições para que, na sequência, seja possível sentir outras coisas.

Nas artes marciais, “ter esse espaço” tem sido equivalente a ter kung fu (ter energia). Nesse meio, tradicionalmente, é costume comparar as pessoas e dizer que fulano tem mais kung fu do que sicrano, referindo-se à pessoa que tem espaço maior, que conseguiu “conquistar” mais desse espaço no trabalho com o QiGong.

Nós também sempre dizemos que é preciso sentir o ilimitado. Nós queremos o ilimitado, mas nem sempre conseguimos sentir isso, não é fácil, sempre deparamos com os limites.

Já dissemos, no capítulo I, que QiGong é um sentir. Como? Não é sentir frio, sentir calor, sentir a água em contato com o corpo. Na verdade, é sentir muita coisa diferente daquilo a que estamos acostumados. Precisamos nos propor a sentir principalmente duas coisas: a força da Terra, aquela força da Terra que puxa as coisas, a chamada força centrípeta. E a força do ar que nos empurra. É isso que importa inicialmente. Quando aprendemos a expandir, somos capazes de sentir que o ar nos empurra. Queremos nos sentir leves, queremos sentir a força da Terra nos puxando, sentir o que é a vida humana na Terra, em contato com o ar. Assim como o peixe sente a água e a força da Terra,

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assim como os animais que, em seu ambiente natural, se orientam também por essas sensações.

O treino de QiGong tem três partes, costuma-se dizer. Primeiro é necessário experimentar o corpo inteiro ligado. A maioria das pessoas tem o corpo fragmentado, a cabeça, o tronco e as pernas parecem três partes distintas. Às vezes os alunos me perguntam se é possível existir a ligação apenas na forma, externamente, enquanto dentro não está ligado. É, no começo é só a forma, e é importante que a forma busque essa ligação, o todo do corpo. Depois, com o tempo, percebe-se que não é só a forma, que por dentro também está ligado. É isso o que nós queremos. Quando o corpo está ligado por dentro, aí existe a condição de sentir o ilimitado. Se a ligação se dá somente na forma, não existe a experiência do ilimitado, apenas a imagem dele. Quando eu sinto o ilimitado, muitas vezes ele se impõe a mim sem que eu o busque.

Então costumamos dizer que o ligar pode ser experimentado de duas maneiras: na forma mesmo, em que se pode ver o corpo como uma coisa só; e por dentro, e aí, sim, é possível verdadeiramente experimentar o ilimitado.

Em segundo lugar, é possível experimentar o que chamamos de mola. Para essa modalidade de treino é preciso considerar a existência da cabeça, da coluna e da cauda como uma coisa só. Essa estrutura unificada então fará o movimento de expansão e contração, concomitantemente com todas as articulações do corpo, de modo que tudo abre e fecha, como uma mola. Quando o praticante vivencia a mola, podemos dizer que já tem conteúdo, é a segunda ligação.

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Em terceiro lugar, é possível experimentar o que chamamos de ondas. Essa é uma parte mais complicada. As ondas acontecem em qualquer direção. Aí, sim, a essa altura do treino, o praticante pode, de fato, experimentar o ilimitado. A rigor, já a partir da mola é possível sentir o ilimitado. Sem a experiência da mola, ou das ondas, consideramos que a experiência do ilimitado é só imagem, é apenas sonho. A experiência de ligar e de sentir o ilimitado possibilita a percepção de ondas dentro do corpo. Ondas são um efeito, são a energia do QiGong trabalhando, fazendo você se sentir maior, expandindo o seu corpo, os membros parecem compridos, tudo comprido. Se o corpo tem ondas, dentro tem fervor.Quando se chega lá, o corpo já sabe o que é QiGong.

A experiência de ligar o corpo é mais fácil de alcançar. O praticante disciplinado pode conseguir esse resultado em pouco tempo. A experiência de ligar por dentro é mais difícil, às vezes liga, às vezes não. O mesmo acontece com as ondas: às vezes são percebidas em uma região do corpo, outras não.

Ao chegar a esse ponto, você já entende o que é QiGong. Não é adquirir poderes, ser imortal, querer voar, ficar dias sem precisar comer. O LaoQiGong se preocupa com o ser humano; quer saber como o corpo funciona; como se podem aumentar as habilidades, é só isso. É preciso sentir como expandir, como funciona, qual é o limite para sentir o ilimitado do nosso corpo. Isso é o aumento da sensibilidade, não é filosofia. O corpo pode ter isso, todo mundo tem isso, só não sabe que tem.

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A experiência da mola vem antes das ondas. É preciso usar a mola para chegar às ondas. A mola dá aumento da força, dá impulso, e a forma precisa mexer. Na experiência das ondas, a forma praticamente não mexe.Depois de muito treino você não sabe diferenciar o que é mola do que é onda.

Na experiência da onda, primeiro se percebe a onda por dentro do corpo. Principalmente dos pés para as mãos. Depois para cima e para trás, como um tigre pronto para pular.

Depois se percebe a onda lá fora, como se um grande mar fosse as ondas. Equivale a dizer que, quando se tem energia, não se deve guardar na barriga – como professa o taoismo, deve-se guardar fora. Como quando se ganha dinheiro, não se deve guardar no banco, mas fazer negócio. Quando as ondas são sentidas lá fora, a região do corpo que detecta essa percepção é a debaixo dos braços, nas axilas.

Ao conseguir treinar as três possibilidades: ligar a forma, ligar por dentro na experiência da mola e vivenciar as ondas, o praticante conseguiu vivenciar o que se chama de entrar no rio.

Ao experimentar entrar no rio, sente-se que todos os músculos querem expandir, querem abrir. Creio que a ciência diz que a possibilidade dos músculos de cada pessoa, quando ligados, soma toneladas de força, não me lembro bem. O músculo sozinho não pode muito, pois há forças contrárias à ação que ele executa. Mas, ao conseguir somar essa força toda, pela experiência de entrar no rio, é possível alinhar essas forças e conseguir uma força maior.

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Por fim, depois de vários anos de treino percebemos que a experiência de acertar a forma que levará a entrar no rio são pontes necessárias para atingir um estado em que se percebe que dentro e fora são uma coisa só. Para chegar até isso, precisamos praticar todos os dias.

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CAPÍTULO IV

No documento Cai Wen Yu - Lao Qi Gong, 2012 (páginas 41-48)

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