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REMONTANDO HISTÓRIAS E (RE) CRIANDO VIDAS “( ) a importância de uma coisa não se mede com fita métrica

3.4. Entre a luz e a escuridão: Júlia e seu percurso solitário

Eu fui apresentada a Júlia por uma gestante que estava internada no mesmo quarto que ela. Quando a vi, com uma touca na cabeça, de roupão verde, um leve sorriso no rosto com as mãos apoiadas sobre a cama na qual estava sentada, conversando com as outras gestantes do quarto, pensei: “O tom com que falava e a espontaneidade dos gestos me revelavam muita simpatia e alegria” (Diário de campo. Anotações de 13 de Setembro). Essas foram as primeiras impressões que tive de Júlia, uma mulher negra, 33 anos, residente de Jacobina, casada, mãe de uma menina de seis anos e com pouco estudo formal.

Há quatro anos começou a sentir umas mudanças no seu corpo. Primeiro muita sede: “eu acordava várias vezes na noite para tomar água, tomava água demais.”. Depois passou a sentir uma dor forte nas pernas “parecendo que tinha passado a noite em pé”, ai ela começou a achar

estranho e foi procurar o médico. Quando chegou ao posto, o médico solicitou uns exames de sangue, dentre eles a glicemia de jejum e quando o resultado saiu ele disse: “Olha, você está com diabetes”.

Na hora eu nem assim, com calma perguntei se não tinha sido uma coisa na dieta, ele disse que não, que quando descobri estava mesmo diabética [...] Iai eu não tinha o que fazer não, a gente não tinha muita informação do problema.

Júlia disse que o diabetes não mudou muita coisa na sua vida, que ela seguia “uma vida normal”, talvez pela falta de informação ou pela invisibilidade dos sintomas, já que ela não se sentia doente. Em janeiro de 2012 ela percebeu que sua menstruação não veio mas imaginou que era “alguma coisa com o meu açúcar alto” porque ela fazia uso de pílulas contraceptivas. Passaram- se mais dois meses e Júlia ficou preocupada e, ao se consultar com a médica descobriu que estava grávida:

Eu já sabia que era diabética há quatro anos, então já não pensava em ter outro filho porque eu já sabia que seria de risco, mas mesmo tomando o anticoncepcional quando descobri já estava grávida.

Esse novo cenário que se descortinou no mundo de Júlia trouxe muita aflição, tanto pelo fato de ser uma gravidez de risco, e o próprio nome risco refere-se a uma vigilância e um cuidado preventivo, quanto pela solidão em que se encontrava:

[...] e ai que eu viajo muito sozinha, venho pra cá sozinha sempre, pra fazer meus exames, pra ficar internada, sem ter ninguém, sem ter visita, sem ter alguém pra conversar... Ai a dificuldade é bem mais difícil.

O marido de Júlia é caminhoneiro e estava sempre viajando, então ela já estava acostumada com a ausência dele. Mas a família, tanto a mãe quanto os irmãos, moravam muito perto dela, então ela sempre ia pra casa da mãe quando a saudade apertava. “Agora eu me sinto... ai... eu me sinto carente, sabe?”. A necessidade de estar viajando para fazer as consultas de pré-natal e consequentemente as internações para traçar o perfil glicêmico a privavam da companhia dos seus familiares e ela sentia que lhe faltava apoio. Essa situação a deixava muito angustiada e triste e, como as emoções interferiam na glicemia, os três dias de internação previstas se triplicavam, o que a deixava mais sensível, e esse ciclo se repetia constantemente sendo que a menor internação dela foi de 10 dias.

As restrições que passaram a vigorar no seu cotidiano tornava aquele momento muito difícil: Não posso comer coisa assim doce, mas fora isso fica mais difícil mesmo, é restrição demais. Eu acho... eu não consigo, de jeito nenhum. É bem complicado, viu?

Júlia falava que os médicos e a nutricionista chegavam pra ela e diziam o que ela podia comer e o que deveria ser retirado da dieta: “você não deve comer isso aqui e aquilo outro”. Mas pra ela conviver com essas proibições era muito difícil, “não vou mentir que eu não fazia, não fazia mesmo”. Depois de um tempo a médica conversou com ela e explicou sobre a importância de retirar alguns alimentos para controlar o açúcar e evitar complicações tanto pra ela quanto para o bebê: “Foi ai que eu passei a ter mais esse cuidado”.

Daí a coisa que eu fico com mais medo é isso, eu fico pensando que as vezes tem crianças que já nascem com o açúcar alto, porque pra uma pessoa adulta perceber que não pode, que não deve já é quase impossível, uma criança? Pior ainda! Ai eu fico com muito medo.

Esse medo que Júlia tinha de que seu filho nascesse diabético gerava nela um compromisso em seguir a dieta, já que ela era a responsável pela saúde do bebê. Assim ela tentava se cuidar, mesmo que pra ela fosse muito difícil. Todavia, em alguns momentos quando os desejos passaram a visitar o corpo e a mente dela, toda essa firmeza foi suspensa e a vontade incontrolável pelo alimento proibido era justificada como “coisa do bebê, parecia que ele queria”. É como eu tava dizendo, não como doce, e não é fácil não porque as vezes você até sabe dos riscos daqueles desejos que você tem, eu mesmo tenho tantos desejos...

Antes da gravidez, Júlia nunca tinha tido um desejo, inclusive ela achava que isso era “coisa de mulher assim, que gosta de ter um caprichinho e usa a gravidez pra conseguir o que quer, sabe?”. Quando ela começou a senti-lo que foi revelado o verdadeiro sentido do desejar algo, no caso dela mesclado com uma proibição, o que tornava aquela vontade muito mais arriscada e, para ela, necessária.

Eu tinha de qualquer forma que comer aquele mingau, iai eu cheguei a chorar mesmo porque a menina não podia, ela ficou com pena, coitada, ai ela disse: ‘eu não posso dar porque não tá com adoçante’. Ai ela trouxe um com adoçante porque ela não podia se prejudicar por causa de mim e eu entendia [...] Ai minha colega de cama pegou o mingau dela e trocou comigo porque eu queria porque queria o açúcar mesmo. Ai fui e tomei.

Após esse episódio, a repreensão da equipe de saúde foi generalizada e o sentimento de culpa e de irresponsabilidade se tornaram muito fortes para Júlia, reforçando o medo de prejudicar seu bebê e a angústia por mais dias internadas, devido à alteração do perfil glicêmico, “Eu só vou sossegar quando ver o meu filho, saber que ele tá bem que eu consegui me cuidar né? Mas eu tento não prejudicá-lo de jeito nenhum, mas é muito difícil...”.

Como Júlia já estava pra ter bebê, faltando apenas duas semanas para a data prevista do parto, ela se sentia aliviada, porque as restrições iam acabar já que “o pior já passou, de tá vivendo com aquela vida sempre limitada”. Isso porque ela sabia que estava seguindo a terapia proposta com a finalidade de cuidar do seu filho e não dela, porque pra ela sozinha, a única proibição era o açúcar:

Eu acho que depois que meu filho nascer eu vou fazer as mesmas coisas, evitando o açúcar, mas as outras coisas num vou exagerar mas... não vai ser tão fácil não, porque é difícil.

Júlia estava ansiosa pela chegada do filho e com um grande sorriso disse que estava contando os dias que faltavam:

Mas ai é isso, eu acho que eu não fiz tudo tanto tempo mas assim, eu acho que o que eu fiz eu contribui com minha parte e agora é esperar meu filho e ver o resultado.

Aprendendo a lidar com a solidão

Quando Júlia começou a falar sobre a sua vida, sobre como estava experienciando este momento, ficou claro que a ausência de seus familiares a deixava muito triste e que isto estava interferindo na sua trajetória gestacional. Quando ia chegando a data prevista para a consulta do pré-natal ela já ficava chorando em casa, pensando nos dias que estaria sozinha, já que a internação já era certa.

Ela conta que a primeira vez foi muito difícil, primeiro porque ela não fazia uso de nenhuma medicação para controlar o diabetes, apenas retirou o açúcar e às vezes usava um hipoglicemiante “quando minha cabeça ficava doendo, que eu já sabia que o açúcar tava alto”; e também porque ela nunca imaginou que precisaria ficar internada tantos dias:

Ai da primeira vez que eu vim ela (a médica) falou preu ficar internada cinco dias pra fazer o perfil ai eu descobri que tinha que usar insulina, que eu não tomava insulina, tomava só medicação oral às vezes. Ai a médica disse que tinha que tomar insulina, dai

os cinco dias que ela falou preu ficar internada acabei ficando 15 dias. Ai fiquei no desespero e tive que ir pra psicóloga pra poder me acalmar porque a glicose dava alterada e não podia me liberar sem que a taxa se insulina ficasse boa pra alguém me levar em casa.

Júlia não queria saber de nada, só queria ir pra casa logo. A sua angústia era traduzida em alteração glicídica e o desespero, o desamparo e a tristeza passaram a conviver diariamente com ela. Um médico a encontrou sentada na entrada da enfermaria e conversou com ela sobre a importância dela ficar, do cuidado com seu bebê e aos poucos ela foi aceitando a ideia, conseguiu relaxar, permitiu a aplicação da insulina e foi melhorando, até que retornou para casa.

Porém toda vez que ela ia para a maternidade fazer o pré-natal e se internava a solidão não a deixava tranquila. Ela se sentia muito sensível, carente e sozinha devido à falta de sua família e de seu marido, “mas eu entendo a distância e tem minha mãe que me dá bastante força, meu irmão, meu marido. Mas é porque eles não estão aqui comigo, ai eu sinto falta...”. No caso de seu marido, a saudade era muito mais sentida e expressa em tristeza, porque ela dizia que estava passando por um momento difícil, internada e a presença dele a confortaria:

Meu marido mesmo trabalha sempre viajando, hoje numa cidade, amanhã em outra, iai eu to sempre sozinha, até em casa eu to sempre sozinha, sem ele. Ai assim, minha mãe e meu irmão que me dá todo apoio mas nunca é a mesma coisa, né? Mas como eu to lhe dizendo, eu não estou sozinha porque ele não quer tá comigo mas é o trabalho dele, ai vou fazer o quê? Tem dias que eu falo mais, que eu choro, me desespero, a gente sente, mas depois passa, é só um momento.

A vontade de que essa gestação terminasse logo e ela pudesse “voltar a sua vida normal” era o que dava força para ela seguir, sozinha, mas na espera de seu filho, quem ela depositava toda a esperança de mudança, seja porque refletiria o seu empenho e dedicação ao cuidado dele, ou porque ele se tornaria sua companhia futura, já que sua filha fica mais na casa da avó do que na sua.

E eu espero que as coisas melhorem porque o tempo que eu tiver meu filho acho que as coisas vão melhorar mais ainda, essa situação, mas assim, é bem difícil, é difícil mesmo.

Enquanto este filho ainda não veio, ela vai encontrando formas de driblar a saudade e a ausência de casa e cada vez mais ela se permite acessar, no caso as outras gestantes, desenvolvendo

amizades que fortalecem a sua tranquilidade e o período de internamento, “eu percebi que o pessoal daqui é muito legal”. Mesmo com esta abertura e com a vontade de criar novos laços, ela ainda sente-se frágil, mas busca encontrar formas de normalizar a sua situação:

Mas no mais eu acho que eu consegui, tá com tudo encarando de uma forma quase normal, as vezes uma mulher grávida fica com muito cuidado com o filho e com o açúcar alto fica mais ainda, fica com mais atenção, tem mais apoio em tudo e eu to conseguindo levar muito bem, sozinha mesmo.