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CAPÍTULO 1. MARCO TEÓRICO

1.3. Um outro olhar sobre a alimentação

O alimentar-se é uma prática que ultrapassa a idéia simplista do comer num viés meramente biológico, articulando-se com outras dimensões do campo sócio-cultural. Para Maciel (2002), na alimentação humana, natureza e cultura se encontram, pois “se comer é uma necessidade vital, o quê, quando e com quem comer são aspectos que fazem parte de um sistema que implica atribuição de significados ao ato alimentar”.

Todavia, antes de adentrar na terminologia alimento, é importante ressaltar a distinção entre alimentar-se, comer e nutrir-se, já que está é fundamental para compreender os diferentes significados e sentidos que a sociedade atribui a estas práticas. Segundo Garcia (2005), as terminologias ‘alimentação’ e ‘nutrição’ condizem, principalmente este último, com o enfoque da ‘norma’, da dieta regulada. Ao contrário, ao referir-se à comida, a idéia predominante é de uma forma isenta de valores nutricionais, mas retratando percepções que dizem respeito à alimentação.

No primeiro caso, por ser um termo de caráter técnico, embute na palavra uma matriz que recupera representações com conteúdo envernizado tecnicamente. Já a palavra ‘comida’, termo usual na linguagem informal, recupera principalmente elementos presentes na experiência pessoal e social (op. cit. p. 215).

Percebe-se que a terminologia nutrir-se se ancora numa via racional, fragmentando o alimento em termos dos seus nutrientes e sua função no organismo, através da objetivação de um saber com vistas a intervenções no campo da saúde. Esta percepção alimentar baseada na biomedicina ganhou legitimação nos últimos tempos principalmente com a acentuação das doenças crônicas no cenário mundial, em que a alimentação passou a protagonizar o papel de risco para o desenvolvimento de algumas enfermidades.

Desta forma, pressões de caráter sanitário sobre a alimentação passaram a ser difundidas em diferentes instâncias. Alguns autores apontam para a apropriação, pela mídia, dos discursos técnico-científico, utilizando-o para adicionar aos produtos alimentícios vantagens de caráter terapêutico, fazendo com que conceitos de alimentação vinculados à saúde estejam amplamente difundidos e terminologias como ômega 3, ácidos graxos, probióticos, antioxidantes, carboidratos, que antes eram termos utilizados apenas pelos discursos médico-científicos, tornaram-se familiares em diversas esferas da sociedade (SANTOS, 2008; GARCIA, 2005; ARNAIZ, 2005).

A noção do risco associado ao alimento passou a nortear as escolhas do que comer, sempre mediadas por múltiplas ansiedades, que vão desde a busca da saúde, da longevidade, da estética, da corporalidade, dentre outras (SOARES, 2011). Cabe destacar, porém, que as noções de risco se apresentam multiversas, o que significa dizer que essa idéia não deve ser generalizada ou universalizada, já que depende da maneira que cada sujeito significa este risco (ARNAIZ, 1996). Independente da maneira que o risco é significado e interpretado para cada sujeito ou cultura, esta idéia trouxe consigo a emergência da dieta, que encontra respaldo na ciência médica, sendo a saúde física, pautada no controle, o seu grande objetivo. Trata-se, assim, como aponta Garcia (2005), de uma concepção farmacológica em que os cientistas e técnicos em nutrição constroem um conceito de alimento como remédio ou droga usado para o tratamento e prevenção de doenças.

O risco pode ser percebido no sistema alimentar a partir de três principais forças competitivas. A primeira delas é construída a partir do discurso de nutricionistas e do governo sobre o que seja uma dieta saudável. A segunda consiste das práticas alimentares e crenças originadas da cultura culinária tradicional, e que sobrevivem às modernas sociedades. A terceira seria a característica principal dos padrões de consumo das sociedades atuais: o sabor da novidade. Cada uma dessas forças exerceria grande influência na atitude e na prática dos consumidores. As contradições entre elas são vistas como um reforço para incertezas associadas ao consumo de alimentos (ARNAIZ, 2005; HERNÁNDEZ, 2005).

Somando a estas forças, a mídia, a família e as indústrias alimentícias também merecem destaque neste cenário multivocal, exacerbando sentimentos conflitantes entre o que se pode comer, o que se deve comer e o que deseja comer. Isto porque, a escolha do alimento perpassa uma necessidade fisiológica, adquirindo uma conotação simbólica, em que o hábito e a cultura são os

dois pilares de sustentação do querer. Para Claude Fischler (1995), o homem nutre-se também de

imaginário e de significados, partilhando representações coletivas.

Partindo do pressuposto da alimentação como fenômeno cultural, esta deixa de ter um significado de nutriente passando a denominar-se comida. Assim, ela não se restringe a um “comer para viver” 5

pois mesmo que os homens necessitem sobreviver (e, para isso, nutrir-se através do alimento), eles também “vivem para comer”, sendo a comida neste caso “temperada” de aspectos morais e simbólicos que refletem a pluralidade de fatores culturalmente marcados (DAMATTA, 1987; MACIEL, 2002).

Cabe ressaltar o caráter identitário associado ao alimento. A busca e escolha do que comer é

revertida de uma autenticidade que marca o indivíduo, como expresso na fala de DaMatta (1986) em que “comer define não só aquilo que é ingerido como também aquele que o ingere” (op. cit. p. 56). Desta forma, o alimento vai revelando identidades tanto individuais como coletivas, em que o sujeito, a partir da escolha alimentar, vai se posicionando, registrando seu pertencimento a uma cultura ou a um grupo seja pela afirmação de sua especificidade alimentar ou pela diferença em relação aos outros (SANTOS, 2008). Assim, para entender o indivíduo e seus comportamentos, deve-se tomar como ponto de partida a sua história em coletivo e, assim, perceber que a comida não define apenas as identidades, mas as relações que os indivíduos mantêm entre si.

No caso das gestantes diabéticas, alguns estudos têm demonstrado que é frequente o descuido alimentar em momentos de estresse ou, paradoxalmente, de melhor compensação. Isto se deve em medida porque, muitas vezes “come-se” simbolicamente o nervosismo, a ansiedade e as frustrações do cotidiano. Há um sistema de valores, de símbolos e significados que estão associados à dimensão do comer e que precisam ser compreendidos pelos profissionais de saúde, para maior eficácia das ações com gestantes submetidas a rigoroso controle alimentar (PERES, FRANCO, SANTOS, 2006). Assim, sentimentos de ambivalência passam a predominar no que tange ao ato e escolha alimentar destas mulheres, dificultando o percurso gravídico e exigindo estratégias para enfrentar esta situação.

5 Expressão utilizada por DaMatta para referir-se ao comer levando-se em conta os aspectos universais da alimentação (sustentar o corpo, obter energias e proteínas)