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Em Juazeiro, os locais são sujeitos da História. Eles corporificam uma continuidade da duração. São úteis para a fixação afetiva da presença de Padre Cícero. Como um deus das religiões politeístas, tudo indica que o sacerdote quer ser procurado e adorado em seu lugar. As primeiras romarias a Juazeiro após a morte dele, inclusive, já não tinham como destino apenas sua casa, mas também seu túmulo. O Padrinho havia morrido, mas continuava ligado àquela terra, agora eternamente.

A piedade é o sentimento fundamental diante do morto. Ela obriga os vivos a celebrarem sua memória através de preces e visitas ao túmulo. Todos os defuntos têm direito a esses momentos de reverência e rememoração, não somente aqueles que adquiriram fama ao longo da vida. A tradição católica diz que os familiares devem velar seus mortos, orar pelas almas e visitar os falecidos pelo menos uma vez por ano. No caso do Padre Cícero, no entanto, essa piedade cresce e se renova diariamente. Sua vida e seu desaparecimento são celebrados e relembrados por devotos e afilhados.

De acordo com Aleida Assmann, “[...] a memoração dos mortos tem uma dimensão religiosa e outra mundana, que se opõem entre si como pietas e fama”318. O

Padrinho de Juazeiro consegue unir essas duas facetas da memoração: a recordação de

sua morte possui sentido de devoção, mas a fama política que construiu ao longo da vida também está ligada à sua santidade e às visitas que seu corpo atraiu e atrai até os dias atuais. Em Padre Cícero, pietas e fama se conectam, se comunicam e se confundem.

A Fama, contudo, não se constitui sozinha. Atos grandiosos, fenômenos misteriosos, milagres, batalhas, vitórias, perseguições, execução de importantes papéis políticos: nada disso garante imortalidade. Para que um nome seja lembrado, é necessário que existam meios de recordar. Assmann propõe o estudo de cinco diferentes meios: metáforas, escrita, imagem, corpo e locais. A autora lembra que, quando se trata de uma cultura não letrada, a escrita pode ser substituída pela oralidade. No caso do fenômeno de Juazeiro, por exemplo, os cordéis, lidos em voz alta e recitados por cantadores e

318 ASSMANN, Aleida. Espaços da recordação. Formas e transformações da memória cultural. Campinas:

apreciadores da arte, cumpriram a função de levar o nome do Padre Cícero para distantes fronteiras. A imprensa nacional também trabalhou nesse sentido, produzindo notícias e veiculando telegramas, cartas e outros documentos ligados à atuação do Padrinho. Os membros da cultura letrada tiveram ainda uma importante participação nesse processo, produzindo e disseminando representações elogiosas ou reprovadoras de Juazeiro e de seu patriarca.

Com Padre Cícero, portanto, ocorre o contrário daquilo que acontece com os homens comuns e públicos em geral, que podem ter relativa fama durante a vida, mas são esquecidos quando mortos, restando apenas monumentos desprezados e uma memória que é preservada brevemente por seus familiares. Ele teve certa fama (dessacralizada e contraposta à sua presumida santidade) durante a vida, principalmente no que diz respeito à carreira política que desenvolveu. Com sua morte, contudo, cresceu a piedade popular que acompanha seu nome. Um morto não pode mais pecar. Assim, o desencarne do sacerdote o arrebatou da convivência com os fiéis, mas também o santificou. Trata-se de um culto ao grande padrinho morto, portanto, de um culto à vida eterna de um homem santo.

Em Juazeiro, Padre Cícero foi sepultado, mas nunca repousou. Permanece ativo e presente. Por isso tanto se fala, tanto se escreve e tanto se crê nele. A fama de Padre Cícero, no entanto, não é como a dos grandes homens políticos: não precisa ser armazenada em museus, monumentos ou memoriais para existir. Vive internalizada em cada um de seus seguidores. Os meios de recordar existem, mas não se constituem apenas como lugares de memória319. São complementos da recordação.

Os heróis costumam ser eternizados pelos poetas, mas os poetas também podem ser eternizados por cantarem grandes feitos e heróis. Desse modo, muitos escritores, jornalistas, pesquisadores, cordelistas e artistas plásticos se tornaram populares graças às histórias que envolviam o querido santo nordestino. Odísio é um deles: sua trajetória no Ceará ganhou projeção graças às imagens de Padre Cícero que elaborou, tanto no gesso quanto no papel.

No período em que Odísio escreveu seu caderno, estudos sociológicos a respeito do sertão nordestino eram frequentes. Ele é herdeiro dessa tradição e também pretendeu fazer, através da própria experiência, uma análise da cidade de Juazeiro. À

319 Lugares de Memória, segundo Pierre Nora, são suportes externos da memória, geralmente construídos

com o objetivo de abrigar conhecimento sobre acontecimentos ou sujeitos que seriam esquecidos caso tais memórias não fossem arquivadas. Cf. NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo, n.10, dez. 1993, p.7-28.

página quarenta e seis, mais ou menos no meio de seu calhamaço, Odísio declarou que “[...] explicar o fenomeno que fez surgir Juazeiro e dissecar a figura psicologica do seu fundador, é tarefa par(a) um [h]istoriador psico analítico”320, dando a entender que não

era esse seu propósito. Esse parece um momento de modéstia do autor, que não pretendia encerrar o assunto sobre o qual escreveu. Mas, ao mesmo tempo em que afirmou não ser capaz de realizar tal análise, apresentou a estrutura de seu caderno: na primeira parte, abordaria o fenômeno de Juazeiro, embora sem a pretensão de explicá-lo. Na segunda, passaria a descrever “o lugar, seu povo e seu meio”321. Desse modo, é revelada certa

composição previamente organizada, o que leva a crer que o manuscrito pode não ter sido, necessariamente, produzido ao correr da pena, como o autor afirmara anteriormente. Ao final de seu caderno, dedicou a obra aos seus filhos “[...] para que dela tirem proveito, aquilatando quanto vale a instrução e a cultura na vida do homem, de um núcleo, de uma nação”322. Há certa função moral atribuída às suas memórias: ao mesmo

tempo em que analisou Juazeiro e correlacionou a miséria local à carência de instrução, Odísio ensinou a seus filhos que o saber letrado deveria ser valorizado. O tema apareceu à página 60:

Eis a situação triste deste lugar a respeito do problema maximo por um povo, a instrucção, a qual aqui é quase nulla, sendo os analfabetos completos, o noventa por cento, e não só os velhos, mas moços de vinte anos que não conhecem siquer os números, completamente brocos, conhecendo em dinheiro só os niqueis nem as horas do relógio, só sabem o nome de baptismo e quase nunca o sobrenome, nem a edade certa e ficam espantados a qualquer pergunta respondendo o infalível = sei não! = [...]323.

Como homem ilustrado que era, tendo vivido na Itália e numa região mais escolarizada do Brasil, Odísio parecia se espantar com a falta de instrução dos juazeirenses. Embora a estatística alardeada seja hiperbólica, é preciso mencionar que nesse trecho o escultor tocou num ponto importante de sua própria trajetória: a valorização da cultura erudita. Ele mesmo escreveu ensaios e peças teatrais. Fez parte de um círculo de homens cultos — ou que assim se consideravam. Provavelmente, também conheceu os relatos de viajantes que circularam pela Europa em fins do século XIX e início do século XX. Seu próprio caderno, aliás, assemelha-se a um registro de viajante.

320 ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do

Ceará, 2006. p. 46.

321 Op. cit., p. 26. 322 Op. cit., p. 125. 323 Op. cit., p. 60.

Odísio afirmou que a escrita de seu calhamaço ajudou a passar o tempo e a atenuar a saudade que sentia dos seus, “[...] saudade que continuamente me morde a alma”324. Teceu também elogios à esposa, possível leitora, quando falou sobre sua relação

com os alimentos de Juazeiro: “Quantas vezes falei com esta gente que si estivesse aqui a minha Dosolina eles iam ver quantos pratos bons e variados saiam das suas mãos [...]”325. Odísio possuía consciência, contudo, de que aquilo que chamou de “mais que

humilde obra” era, na verdade, um livro, com pretensões de descrição e interpretação de Juazeiro326. O escultor, inclusive, abriu seu manuscrito afirmando:

Estas memorias [...] não tem valor literário, porque nelas falta forma, língua e gramatica. Quem aqui escreveu é um simples trabalhador o qual só procuro[u] fixar impressões e verdades. Quem quer leia e não proteste depois, porque lealmente avisei. O autor, ilustre desconhecido.327

A ausência de caráter literário em sua obra, portanto, apareceria relacionada à falta de conhecimento do idioma. O conteúdo, em si, não é mencionado nesse aviso. Talvez, à vista disso, a análise da cidade e de sua relação com Padre Cícero seja a maior contribuição do escrito, segundo o esquema de valoração proposto pelo próprio autor. Odísio imaginava a possibilidade de que seu texto fosse desfrutado por pessoas de fora do seu círculo familiar. Essa perspectiva fica mais ou menos evidente ao assinar o manuscrito como um “ilustre desconhecido”. Ora, se a obra se destinava a pessoas próximas, quem seriam os que não o conheciam?

O fato de Odísio ignorar a norma culta da língua portuguesa não o impediu, inclusive, de criticar aqueles que cometiam tropeços no âmbito da oralidade. Seu ajudante Romualdo foi, com frequência, vítima de tais censuras pouco veladas. O escultor comentou, por exemplo, que certo dia lhe fez um pedido não muito complexo:

[...] que depois do almoço tinha que levar um filme no photographo para revelar; obediente, depois de ter religiosamente lambido as marmitas, veio e me disse todo lampeiro: = Seu Gustinho, são horas de eu ir dechá o fio para melá no phrotogo, vou num raio que nem cachorro da moléstia (cão idrophobo) e falo com o homem para melá logo que o sr está = vexado = (apressado)328.

324 ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do

Ceará, 2006. p. 125.

325 Op. cit., p. 81. 326 Op. cit., p. 125. 327 Op. cit., s/p. 328 Op. cit., p. 85.

Após escrever essa passagem, Odísio colou uma fotografia de seu ajudante no canto da página. Esse é um indício de que o texto foi escrito antes e passado a limpo posteriormente, pois as fotos são dispostas de maneira organizada, sempre representando o conteúdo de um texto que, aliás, não possui rasuras. Ao reproduzir a hipotética fala de alguém que sabia menos que ele, que chamava o filme de “fio” e confundia o ato de revelar com o verbo “melar”, Odísio afirmou a própria superioridade. O autor fez questão até mesmo de reproduzir em seu manuscrito as peculiaridades e os percalços da linguagem oral, acrescentando “traduções” quando acreditava que o conteúdo de tais palavras seria irreconhecível para os leitores desabituados ao falar popular. Tal ato indica que o escultor, ao mesmo tempo em que admitia não ter o conhecimento da língua portuguesa adequado a um literato, sabia também que conhecia a língua melhor que muitos nativos. Além disso, fornece pistas para a existência de leitores que deveriam ser informados da significação dos termos desconhecidos presentes em sua obra. O caderno se configura como uma espécie de diário de viagem, sendo iniciado justamente com a chegada do escultor em Juazeiro:

Em outubro de 1934, eu e o meu companheiro Paulino, causa imprevistos da vida, deixamos o nosso Juiz de Fora de Minas, com rumo ao Ceará. O vapor = Comte Ripper do Loid = nos levou do Rio de Janeiro a Fortaleza, e num trenzinho algo primitivo vencemos as cem léguas que separam a bela capital do Ceará ao Joaseiro, nosso ponto de destino, numa viagem estafante devido ao calor e a poeira que em nuvens invadia o carro.329

Ao descer do comboio, Odísio buscou a “sopa” que o dono da pensão Guarany havia prometido quando o trem passava ainda pela cidade de Missão Velha. O escultor conta que, ao ser abordado pelo sujeito que lhe oferecia hospedagem em Juazeiro, perguntou se a hospedaria ficava muito distante do local em que o trem aportaria, recebendo de Olegário Brasileiro a resposta de que não era necessário se preocupar com isso, pois a sopa os esperaria pronta na estação. Estranhando o fato, Odísio começou a refletir: “[...] é verdade que estávamos no Ceará, a clássica terra da fome e da sede, mas nunca teria imaginado que tal flagelo chegasse ao ponto [...] de fazer encontrar a sopa na estação para logo alimentar os passageiros”330.

329 ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do

Ceará, 2006. p. 1.

Ao ser conduzido a uma jardineira que os levaria até o hotel, Odísio perguntou pelo alimento, sendo informado de que já estava nela. A “SOPA” era o meio de transporte utilizado entre a estação e o centro da cidade. O veículo público, apelidado dessa forma pelos juazeirenses, foi associado a uma série de elementos que, para Odísio, caracterizavam o Ceará: “fome, sede, flagelo”. Havia em torno da nova terra um léxico de palavras que imediatamente era acionado. Palavras que não indicavam a paz e a prosperidade que o escultor fora buscar.

Figura 22 – A “Sopa”

Fonte: ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do Ceará, 2006. p. 3.

Odísio era duplamente estrangeiro: vinha de um país do Hemisfério Norte, a Itália, e, ao mesmo tempo, do Sudeste brasileiro, um ambiente em quase tudo diferente daquele lugar em que agora iria habitar. O impacto da sua chegada ao Brasil não foi registrado em escritos, mas algo diferente ocorreu quando aportou em Juazeiro. A necessidade de aprisionar as recordações o fez escrever. Talvez houvesse, entre Turim e Juiz de Fora, menos distância que entre Juiz de Fora e Juazeiro:

Quem, como nos, vem do sul do paiz, estranha a diferencia da paisagem, pois não encontra a luxuriante vegetação das nossas verdes campinas e dos nossos ubérrimos montes, mas sim poucas arvores raquíticas, matto sem verde, e rios sem agua em cujo leito pastam magras rezez, procurando minguados fios derva.331

A paisagem é o primeiro choque da viagem. Nada lembrava fartura ou fortuna. A vegetação e os rios secos só remetiam ao sofrimento e à morte, opostos daquilo que se procura numa mudança de vida. O verde de uma região sempre fértil e razoavelmente fria já era familiar ao escultor italiano, que falava das “nossas verdes campinas e ubérrimos montes” como se brasileiro fosse.

Odísio retirou-se para Juazeiro graças à morte de Padre Cícero. Em outubro de 1934, quando chegou ao Nordeste, já eram celebrados três meses da partida do

Padrinho. Seu caderno, contudo, incluiu numerosas menções ao sacerdote. Quanto a isso,

é preciso lembrar que o manuscrito se propõe a registrar memórias, e não recordações. Segundo Friedrich Jünger, os conteúdos da memória podem ser adquiridos sozinhos ou aprendidos, “[...] mas as recordações, não posso nem aprender por mim mesmo nem ninguém pode me ensinar”332. Memórias podem ser armazenadas numa máquina ou num

caderno, mas só aos homens é reservado o privilégio de recordar. Muitas das supostas lembranças de Odísio foram, no entanto, aprendidas. Suas opiniões sobre Padre Cícero, sobre a Guerra de 14 e sobre o cangaço não são opiniões de quem viveu e conheceu, mas de quem escutou, julgou e estudou.

Ao chegar em Juazeiro, ele foi acomodado num quarto escuro de pensão que continha a típica mobília sertaneja: duas redes e um tamborete. O escultor solicitou um cabide para dependurar as roupas e rapidamente foi atendido com “uns pedaços de paus desconjuntados”333. Também foi apresentado ao banheiro do estabelecimento, que

descreveu como “um rancho com uma lata dagua turva e uma cuia”334. A pensão era,

como tantas outras, destinada aos romeiros. O escasso conjunto de móveis chegava a lembrar a mobília descoberta por Euclides da Cunha em visita às residências de Canudos:

Quando o olhar se acomodava à penumbra daqueles cômodos exíguos, lobrigava, invariavelmente, trastes raros e grosseiros: um banco tosco; dois ou

331 ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do

Ceará, 2006. p. 1.

332JÜNGER apud ASSMANN, Aleida. Espaços da Recordação. Formas e transformações da memória

cultural. Campinas: Editora Unicamp, 2011. p. 33.

333 ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do

Ceará, 2006. p. 4.

três banquinhos com a forma de escabelos; igual úmero de caixas de cedro, ou canastras; um jirau pendido do teto; e as redes. Eram toda a mobília. Nem camas, nem mesas [...].335

Em Juazeiro existiam muitas hospedarias semelhantes àquela que abrigou Odísio. Funcionavam como lojas de santos, ranchos para romeiros, restaurantes para os visitantes. Ofereciam um pouso não muito requintado, e assim ganhavam consumidores, que adquiriam as peças ali vendidas e pagavam pela alimentação. Geralmente, os dormitórios eram compartilhados. O escultor italiano parece ter encontrado, pelo menos, a opção de uma hospedagem com quarto individual. Odísio apresenta tais pensões da seguinte maneira:

Toda a hierarquia de santos é encontrada nestas casas, as quais tem ranchos de propósito para fornecer pouso aos romeiros, os quais são esperados e disputados por agenciadores de negócio pagos pelos santeiros para ir cercar os romeiros de fora, até dez léguas antes de chegar à cidade. Nestas casas tudo é vendido; santos, comida, flores murchadas sobre o túmulo do padre, relíquias, orações e até fios das barbas do padre, vendidas ou ‘trocadas’ aos romeiros, que tem a obrigação de comprar em virtude de ter recebido o pouso grátis.336

Outra opção para os visitantes era garantir pouso na residência de um bom e hospitaleiro juazeirense ou alugar um domicílio temporariamente. Odísio elegeu a segunda opção. O escultor havia sido recomendado ao prefeito de Juazeiro pelo major Juarez Távora337. Após um breve descanso, teve a oportunidade de sair sob o sol

causticante para conhecer a cidade. Sua primeira impressão não foi boa. Graças à amizade influente, contudo, o chefe do Poder Executivo Municipal lhe ofereceu um guia que, em apenas um dia, encontrou lugar para o escultor morar e trabalhar. Ao mencionar esse fato, Odísio afixou ao caderno uma fotografia sua junto à nova residência. No retrato, vestia calça, terno e chapéu brancos que contrastavam com a parede de taipa e as rústicas portas de madeira do edifício. A casa era de pau a pique, o forro não existia, havia muitos buracos nas paredes e o chão era de terra batida. As portas não tinham fechaduras ou escoras. O escultor explicou que todos os domicílios disponíveis para aluguel eram desse tipo, enquanto os melhores, de tijolos, seriam reservados aos proprietários. Após improvisar a mobília juntamente com seu ajudante, Paulino, chegou a hora da mudança:

335 CUNHA, Euclides da. Os Sertões. São Paulo: Editora Três, 1984 [1902]. p. 82.

336 ODÍSIO, Agostinho Balmes. Memórias sobre Juazeiro do Padre Cícero - 1935. Fortaleza: Museu do

Ceará, 2006. p. 20.

337 Militar cearense ligado ao Tenentismo. Em 1934, quando recomendou Odísio às lideranças locais, era

Assim, as nove e meia da noite deixamos a pensão e afundando no escuro e no areião, carregando as nossas malas de mãos, marchamos rumo ao nosso ‘chateaux’ onde dois enormes sapos, convidados de honra, nos esperavam a porta de casa, fidalgamente recebidos por mim a valentes pontapez; primeiro cuidado, depois de se iluminar feericamente a casa por poder do nosso magico candeeiro, foi revistar todos os cantos e atraz das malas por se acertar se não havia novidades e cobras que aqui são muitas e venenosas e entram a vontade nas casas a procura de fresco e agua; quantas delas não matamos depois, encontradas passeando em casa ou escondidas atraz do pote da agua!338

A descrição de sua mudança apresenta a visão de mundo de um homem citadino, de classe média, acostumado às comodidades modernas, agora confrontado com o sertão que se revelava uma selva: ali não existia água encanada, não era possível acender a luz elétrica, não se encontrava calçamento; o conforto urbano não existia, sendo comum descobrir sapos e cobras. Além disso, era necessário enfrentar os perigos da natureza mesmo dentro do próprio lar.

Odísio registrou que a primeira noite após a mudança foi passada em branco graças às fortes emoções do longo deslocamento e aos cantos de animais — sapos e jegues

— existentes nas proximidades. E assim começou a trajetória do escultor italiano na terra de Padre Cícero. Suas impressões iniciais são as seguintes: