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8 RESULTADOS E DISCUSSÃO

8.2 Significações da morte

8.2.6 Entre a vida e a morte: a doença

Esta categoria foi identificada nas três ILPIs e os conteúdos aqui organizados tratam da associação entre doença e morte. Na realidade, a doença faz parte das relações estabelecidas entre a vida e a morte, já que adoecem apenas os vivos, mas a doença em certa medida pode nos colocar também em relação próxima com a morte. Pitanga (2017) sugere que a doença traz em seu bojo muito mais do que a exposição da fragilidade e da vulnerabilidade do corpo, ela apresenta-nos a possibilidade iminente da morte.

A fronteira entre a doença e a morte parece ser sutil, de modo que nem sempre os grupos consideram importantes ou lhes são visíveis os limites entre o começo da agonia e as consequências desta. Em algumas culturas existem práticas nas quais os mortos/doentes são enterrados antes dos últimos suspiros. No Ocidente, por exemplo, algumas doenças (como a lepra) em determinado momento levavam as pessoas por elas acometidas a serem banidas da sociedade, sendo consideradas mortas socialmente antes mesmo que viessem a falecer. No Brasil, o dialeto aché-guayaki utiliza a palavra mano para referir-se tanto à noção de ‘estar acometido de uma doença grave’ como também ‘morrer’ (RODRIGUES, 2006).

Observamos em alguns depoimentos, como os de Gardênia e Celina que a as doenças aparecem como causas de morte, sendo, pois, diferente do que Rodrigues (2006) identificou ser chamada de morte natural, na qual nenhuma doença específica é atribuída como causa. Segundo o autor, para muitas pessoas em contextos brasileiros, a morte natural consiste em morrer quando se atinge um determinado momento do desenvolvimento, não sendo necessário um culpado. Talvez, a mais típica das mortes naturais seja morrer de “velhice”.

Aí passou, a minha irmã morreu, a do meio, morreu, teve aneurisma, aí morreu. (Gardênia, 89 anos, ILPI privada).

Vai fazer, vai fazer dois meses. Foi dois meses? É, uns dois meses, que faleceu uma, infartou (Celina, 81 anos, ILPI filantrópica).

Bernadete, residente da ILPI pública, também faz uma relação muito direta entre doença e morte, afirmando que “(…) quando a morte vem, a pessoa tá doente ao mesmo tempo que morre (...)”, como se ambas viessem juntas, a doença praticamente é sinônimo de morte. Porém, para Foucault (1998, p. 177) “não é porque caiu doente que o homem morre; é fundamentalmente porque pode morrer que o homem adoece”.

Em um estudo de Oliveira S. (2008) sobre representações sociais de morte com idosos do interior de Pernambuco, as doenças foram consideradas limitantes no cotidiano ao mesmo

tempo em que aproximam os sujeitos da morte. Para os participantes da pesquisa, as doenças tornam as pessoas mais propensas a morrerem e acreditam que são os idosos quem mais são acometidos de doenças e mais morrem, estabelecendo uma relação entre doença, velhice e morte.

Na ILPI pública, identificamos também a representação de morte como desfecho infeliz, decorrente de procedimentos cirúrgicos que não tiveram sucesso. O processo de adoecimento que culminou numa intervenção malsucedida de cura dá ênfase a um caráter acidental da morte. Pode-se observar esse aspecto nos depoimentos de Benedito e Bernadete, quando relatam que as pessoas acometidas de alguma enfermidade se submeteram a cirurgias que, no entanto, deram fim às suas vidas. As expressões “foi infeliz por último” e “já ficou pronto” são eufemismos e consistem em formas de amenizar o impacto da palavra morte ou morrer.

Ah, eu estava aqui quando ele foi internado, mas ele queria fazer a operação de hérnia e a vista. Ele fez, mas ele foi infeliz por último (Benedito, 65 anos, ILPI pública).

O meu futuro noivo que já se foi há muitos anos, que eu fui noiva em 70... Faltando 1 mês para o casamento, ele veio a falecer de uma operação de vesícula que ele foi fazer, ele levou anestesia na coluna, ele não resistiu, ali mesmo já ficou pronto (Bernadete, 69 anos, ILPI pública).

O caráter acidental da morte é, segundo Kovács (1992), comum na sociedade ocidental, que insiste em atribuir causas à morte como acidentes, doenças, infecções, velhice adiantada, de forma que lhe é tomado seu caráter de necessidade no processo da vida. Ela é vista como uma invasão no real.

A ideia de que a doença viria juntamente com a morte, faz desta última uma espécie de solução para o sofrimento acarretado pela doença, expressa na ideia de que ela traria descanso, como veremos também na categoria ‘morte como descanso’. Assim, é comum encontrar na literatura discussões sobre morte e doença diante de quadros de pessoas em processo de morte e morrer (ABRÃO et al., 2013; BARBIERI, MACHADO, FIGUEIREDO, 2005; GÓIS, ABRÃO, 2015; BOTH et al., 2013).

Barbiere, Machado e Figueiredo (2005), por exemplo, pontuam que diante do limiar do sofrimento acarretado pelo processo de adoecimento, a morte pode ser vivenciada como um alívio da dor, trazendo descanso para o paciente e para os familiares. Inclusive, o desejo de morrer pode ser expresso por pessoas com doenças degenerativas ou múltiplos sintomas (KOVÁCS, 2014).

Nestes casos, vemos que a ênfase não está na relação de causalidade entre doença e morte, mas que o estado de adoecimento pode aproximar os sujeitos de uma visão de morte não necessariamente como vilã, mas como a possibilidade de ser uma solução, implicando, inclusive, no desejo de que ela ocorra.

Nota-se, pois, que diante da necessidade de representar a morte, recorre-se às suas causas, e a doença aparece como uma das explicações mais concretas. Explicar a morte pela doença é também uma forma de a colocar em um campo de sentido mais familiar. A morte é um objeto que é em sua essência desconhecido, ninguém que está vivo pode experienciá-la, assim pode ser objetivada através da imagem do doente, que muito se aproxima em alguns casos do moribundo.