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4 CAPÍTULO III – ITINERÁRIO EMPÍRICO

4.1 A revista AnaMaria

4.1.4 Entre “aspas”

Qual o significado das aspas na construção de um texto? E quando se trata de um texto midiático? No Dicionário da Língua Portuguesa (FERREIRA, 1999, p. 210), aspas é um sinal de pontuação com que, em geral, se grafam alceados para abrir e fechar uma citação ou com o que se inicia e termina a tradução de uma palavra ou expressão estrangeira, ou seja, uma citação dentro de outra citação.

Entre aspas é a forma como as leitoras de AnaMaria aparecem na publicação. Nas revistas analisadas, esse recurso é utilizado nas subseções “Caiu na rede social”, “Pitacos” e “Bronca da semana”, dentro da coluna “Recadinho”. Na primeira, a revista seleciona as falas de leitoras na página da revista no Facebook. Nas demais, são selecionados comentários enviados por e-mail. Na revista mais antiga do corpus, de janeiro de 2013, essas subseções anteriormente eram chamadas respectivamente de: “Elogio”, “Bronca” e “Ponto de vista”. Nestes espaços, as leitoras são nomeadas – nome e sobrenome – e, em geral, as falas esboçam elogios à revista, criticam alguma coluna, sugerem temas etc.

Fonte: AnaMaria, nº 890, novembro de 2013 e nº 912, abril de 2014, p.50 e 4, respectivamente. A leitora também aparece em outro momento, na subseção “Conversa entre amigas”, também assinada por Karla Precioso, citada anteriormente, a partir de uma dúvida, uma demanda para Karlinha. Porém, aqui, seu nome é resumido às iniciais.

É nestes dois espaços e em Entre aspas que a leitora de AnaMaria exercita algum tipo de discurso. Gramaticalmente, pela forma como as leitoras se manifestam, o uso de aspas indica o proferimento de sentenças, ou seja, a ação realizada, o uso da sentença. Há, claramente, um serviço de edição nas falas: o nome da revista aparece sempre em negrito, as frases das leitoras terminam quase sempre com ponto de exclamação, além do uso constante de reticências, no meio ou final das frases: “‘A cada semana, amo ainda mais AnaMaria! Adoro especialmente as Mensagens da Karlinha...’” (AM, nº 890, novembro de 2013).

Examinando os aspectos semânticos dos discursos entre aspas, a análise revela o caráter afetivo da relação que as/os leitores mantêm com a publicação, ou pelo menos a tentativa de preservar essa ideia de afeto. Relações que, em alguns casos, remontam a longa data e fidelidade por parte do enunciatário, como no caso de Maria H. Gomes: “Já comprei a AnaMaria desta semana. Aliás, não perco uma edição. A revista faz parte da minha vida!”. Esse caráter afetivo também pode ser observado, sobretudo, por meio do exame do léxico utilizado pelos/pelas leitores(as) e de seus padrões de ocorrência, a exemplo do substantivo “parabéns”, empregado em três números das quatro revistas que compõem o corpus, e os substantivos “excelente” e “lindo”, empregados com sentido semelhante. Os verbos “amo”, “amei” para referir-se à revista como um todo ou a alguma matéria em especial: “Eu amo esta revista! As matérias são incríveis e as receitas maravilhosas. Parabéns a toda a equipe” (AM, nº 912, abril de 2014); “Amo a coluna animal! Sou defensora dos bichos, e o que estiver ao meu alcance faço para ajudá-los” (AM, nº 924, junho de 2014); “Adoro”: “Adoro a revista

AnaMaria! Sempre que o meu marido chega com a minha revista, me sinto amada e

muito feliz” (AM, nº 912, abril de 2014); “Adoro a revista do começo ao fim! Minha semana só está completa quando eu leio AnaMaria”.

As relações que as participantes dos discursos selecionados para aparecer em AnaMaria mantêm com a revista é uma relação de admiração que aponta novamente para a questão do afeto. A categoria das ordens de discurso (ou interdiscursividade) – ligada aos modos de representar aspectos do mundo em textos – pode revelar que discursos se encontram ali articulados, e como estão articulados (FAIRCLOUGH,

2003). De acordo com essa perspectiva, não podemos esquecer a própria história da publicação que se apresenta como A Amiga da mulher brasileira.

Além das afirmações avaliativas positivas presentes na coluna “Recadinho”, através de verbos de processo afetivo: amar, adorar etc., há também espaço para o posicionamento contrário do público leitor. Dos seis posicionamentos selecionados para aparecer na publicação, apenas no subitem “Bronca da semana” aparecem opiniões contrárias. O verbo “cansei”, o substantivo “absurdo”, as construções “fala sério!” e “coisas boas não podem ficar de fora, turma!”, são alguns exemplos de críticas ao conteúdo de colunas/matérias ou ausência de matérias sobre determinado assunto. Dentre as broncas, as leitoras sentiram falta das “Frases para melhorar sua vida”, destacaram o excesso de páginas com animais de estimação e dietas “mirabolantes” e ainda uma receita de “água de lagarta” para proteger o jardim.

No subitem “Conversa entre amigas”, temos o segundo momento em que a revista dá voz ao público leitor a partir de uma dúvida pessoal dirigida à jornalista Karlinha. Pelo conteúdo das dúvidas, entendemos que a questão sempre parte de mulheres, o que reforça o título do espaço “entre amigas”.

As dúvidas são, em geral, sobre questões da própria leitora. Há como exceção, o caso da fala de uma mãe e suas dúvidas em relação à proteção ao filho e o direito deste desfrutar sua privacidade. Porém, no geral, as questões são a respeito de habilidades pessoais ou sobre o melhor modo de encarar um problema. Resumidamente, as leitoras questionaram sobre o próprio jeito de ser “Será que tem a ver com o meu jeito de ser?”, “Isso é natural, ou será um fuga, um jeito de evitar a rejeição?”; ou sobre “como lidar com um problema: Será que isso é o melhor a fazer?” “O que eu faço?”. O mais interessante é que seja sobre filhos, hábitos, manias etc. Karlinha sabe sobre tudo. No final da resposta, ela assina: “Sua amiga, Karlinha”, ou seja, não é qualquer pessoa.

Fairclough (2003) trabalha com o conceito de suposição, isto é, uma característica implícita dos textos que nos ajudaria à compreensão daquilo que não necessariamente está expresso no discurso. Para ele, há três tipos de suposições: existenciais – atuam na construção de pressupostos sobre o que existe no mundo social; as proposicionais – relacionadas ao que é, pode ser ou vai ser – e as morais, que expressam aquilo que é bom ou ruim, desejável ou não.

A partir da subdivisão do autor, percebemos que as respostas de Karlinha às dúvidas das leitoras expressam suposições de tipo moral. Por exemplo, na Conversa:

“Gosto quando as coisas caminham de um jeito estável. Por isso, temo perder o emprego, o namorado... E esse medo me deixa tão insegura que não aproveito as coisas boas que alcancei. O que eu faço?”. Após certificar a leitora de que nada é para sempre, Karlinha diz que ela tem que aproveitar o agora: “Então, mostre seu talento profissional agora, declare seu amor nesse minuto, mude o corte de cabelo já... E viva sem receios” (AM, Nº 890, p. 50). A jornalista admite que pode haver medo do desconhecido, mas para ela esse medo existe também pela “limitada capacidade de perceber o quanto o novo pode ser estimulante e motivador” (AM, Nº 890, p. 50). As propostas de Karlinha são morais, na medida em que partem de um referencial X inadequado – medo de mudanças – para um ideal Y adequado – neste caso, deixar a insegurança de lado, pois enquanto a leitora não modificar X, não atingirá Y e não será alguém melhor, mais feliz e menos medrosa. Como os demais conselhos em AnaMaria, aqui também a revista procura estabelecer discursos sobre o comportamento das leitoras, julgando a melhor forma de gerir a própria vida e apresentando modalizações ideais de ser, seja no trabalho, seja no modo de relacionar-se com as outras pessoas, seja em lidar consigo mesma.

Voltando à função e ao significado das aspas, compreendemos que o modo de apropriação das falas das/dos leitoras/es é também um modo de determinar até onde o enunciatário pode ou não pode ir/ser. Por mais que se dirija ao enunciatário como “cara leitora”, “amiga leitora”, a relação de amizade se dá mais no plano do Discurso. Sobre este aspecto, Fairclough (2001) argumenta que as escolhas feitas pelas pessoas – neste caso, a revista – sobre o modelo e as estruturas de suas orações resultam em escolhas sobre o significado/construção de identidades sociais, relações sociais e crença. Percebemos, nas práticas discursivas de AnaMaria, um esforço para moldar e naturalizar o pressuposto: a mulher só conseguirá superar seus problemas na medida em que se engajar nos contratos, nas receitas, nos modos de ser e viver. Trata-se de uma prática discursiva dominante no corpus analisado, que consiste em permitir a perpetuação de um mesmo formato de enunciados, por meio da apresentação de uma situação transitória dada como permanente, como por exemplo, a matéria “Aceite-se como você é” (AM, ed. 890, p. 30), da coluna Espiritualidade, em que o enunciador ensina a leitora a dizer para si mesma “Eu me amo e eu me aceito” como um mantra e um modo de lidar com os problemas pessoais, uma fórmula para atrair felicidade. Aceitar-se como se é, é aceitar que temos uma essência, que o “si mesmo” é algo

permanente, enquanto a noção de identidade da qual partimos entende esse si mesmo como um constante se dando, em transformação.

Assim, observamos que os processos envoltos sobre os modos de identificação nas práticas discursivas analisadas é a constante fixação/estabilização da construção identitária de uma mulher-leitora de revistas populares, como aquela que precisa continuamente de instrução e apoio.