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ENTRE A BUSCA DA SATISFAÇÃO DE NECESSIDADES E DE LUCRO

A maior parte dos inquiridos neste trabalho são pequenos agricultores cuja actividade se desenvolve sem recurso a mão-de-obra externa, nem a equipamento sofisticado. As parcelas que cultivam pertencem- lhes e, nalguns casos, também exploram uma ou outra parcela emprestada e, para as trabalharem, contam apenas com a ajuda dos elementos da família, especialmente quando estes residem na proximidade da exploração, embora, no caso específico das duas aldeias do concelho de Miranda do Douro, possam contar também com a ajuda de vizinhos.

As estratégias que utilizam para gerir os recursos que possuem (terra, água, força de trabalho, conhecimentos técnicos, equipamentos) sugerem uma procura de equilíbrio, por vezes difícil, entre penosidade do trabalho e necessidades de consumo. O facto de se tratarem, na sua maioria, de núcleos domésticos constituídos por apenas dois ou três familiares (ainda que contem, pontualmente, com o auxílio de vizinhos), obriga a um esforço de trabalho redobrado mesmo se existem outras fontes de rendimentos, como salários auferidos noutras actividades por elementos do núcleo doméstico ou pensões de reforma.

Salvaguardando as enormes diferenças que separam a vida camponesa do início do século XX na Rússia e a dos pequenos agricultores de hoje, a teoria de Tchayanov sobre a economia camponesa constituiu aqui uma referência para a análise das formas de gestão e preservação de recursos fitogenéticos pelos agricultores que desenvolvem a sua actividade no âmbito de uma agricultura familiar48.

Segundo Alexander Tchayanov (1924), o modo de produção camponesa, caracterizado pelo seu carácter familiar e de subsistência, não pode ser analisado com base nos postulados da economia capitalista uma vez que, em termos gerais, não há assalariados,

48

Entendida aqui como u ma categoria genérica, “e m que a família, ao mesmo tempo em que é proprietária dos meios de produção, assume o trabalho no estabelecimento produt ivo”, uma vez que contém e m si g rande diversidade de formas sociais (Wanderley, 1996).

23 nem se trabalha tendo por único propósito a obtenção de lucro.

“Em economia natural”, explica o autor, “a actividade económica humana é dominada pela satisfação das necessidades de cada unidade de produção isolada — a qual é, ao mesmo tempo, uma unidade de consumo. Assim, a preparação de um orçamento é aqui, em larga medida, qualitativa: para cada necessidade da família tem de ser fornecido, em cada unidade económica, o produto qualitativamente correspondente em géneros”49. O mesmo se aplica, na sua opinião, à agricultura familiar sem recurso a trabalho assalariado, uma vez que “o fenómeno social do salário não existe, também não existe o fenómeno social do lucro líquido”50.

Para o autor, a unidade de produção familiar não produz para acumular ou para lucrar mas sim para satisfazer as necessidades do consumo familiar.

A explicação de Tchayanov para a chamada “passividade económica camponesa”51

reside, assim, na procura do estado de equilíbrio entre a satisfação das necessidades de consumo e a fadiga e dureza do tipo de trabalho.

Ainda que o autor faça depender, principalmente, a importância do produto do trabalho do “número de pessoas da família capazes de trabalhar pela produtividade da exploração”, o que actualmente pode ser considerado ultrapassado52, parece continuar válida essa procura de equilíbrio penosidade do trabalho-consumo.

Para uma análise da problemática que me propus investigar, importa, ainda, reter outros

49 Tchayanov (1924): 481. 50 Ide m: 482. 51

Conceito introduzido por Willia m Thomas e Florian Znaniechi e m The Polish Peasant in Europe and America (1918-1920).

52 Teodor Shanin, no texto introdutório à 2ª ed ição da obra de Tchayanov, Teoria da Economia Camponesa, (editado em 1986, e m inglês, pela Wisconsin University Press), intitulado “El mensaje de Chayanov: aclarac iones, faltas de co mprensión y la «teoría del desarrollo» contemporánea”, afirma que uma das princ ipais sugestões de Tchayanov, o índice das necessidades de consumo/trabalhos penosos (que relac ionava o funcionamento das explorações familia res com o consumo, o trabalho e os padrões demográficos fa miliares) foi, ao contrário de outras, pouco utilizada, u ma vez que os dados (da Rússia do princípio do século XX ou das actuais sociedades em desenvolvimento) não lhe davam ra zão. Por outro lado, a “creciente complejidad, heterogeneidad y el cambiante carácter de la ag ricultura contemporánea y de las formas en que los campesinos estiran sus presupuestos harían muy limitado este modelo relacionado con la demografia en relación con los factores que no contempla, como políticas estatales y mercados de productos y trabajo (hoy mundiales), nuevas técnicas agrícolas, la cartelización de la oferta, la demanda y el crédito ajenas a los núcleos de población rurales, o la estructura social de nuevas necesidades. Lo que para Chayanov era «no el único determinante», pasó a ser casi ni siquiera un determinante, a menos a corto plazo.”

24 conceitos que se relacionam com a caracterização das sociedades camponesas, como o do carácter da colectividade local definido por Robert Redfie ld [1897-1958] e aqui recordado pelo sociólogo francês Henri Mendras: “Il cherchait les caractéristiques structurelles d'une collectivité de format restreint, pour l'essentiel autarcique sur les différents plans, démographique, économique, culturel, avec ses différenciations hiérarchiques propres et son homogénéité culturelle, mais en même temps plongée dans une société plus large qui lui imposait ses règles et son pouvoir et prélevait une partie de ses richesses”53. Marcel Maget viria a definir a colectividade local ou, melhor, a aldeia, como uma «sociedade de interconhecimento» em que toda a gente conhece toda a gente, em todos os aspectos.

Como sublinha Mendras, os dois construíram uma teoria segundo a qual o campesinato é uma part society que faz parte de uma sociedade mais ampla, à qual os camponeses estão submetidos de diversas formas, sem perderem a sua autonomia.54

Henri Mendras [1927-2003] propõe um modelo para a sociedade camponesa55 que reúne contributos de diversos autores (como Redfield e Tchayanov, entre outros), e cujos traços gerais são os seguintes: autonomia relativa da colectividade local face à sociedade em que se insere (que a domina e respeita a sua originalidade); o grupo doméstico estrutura a vida económica e social ; autarcia económica orientada para o consumo familiar que não distingue produção e consumo ; relações de «interconhecimento» (dentro da comunidade, todos se conhecem e identificam todos os aspectos da personalidade e da posição social dos outros); papel de mediação dos «notáveis» que asseguram todas as relações políticas, económicas, culturais e religiosas com a sociedade envolvente56.

Na opinião de Henri Mendras, este modelo (por ele utilizado na análise dos mecanismos de transformação das sociedades camponesas até ao que considera ter sido o

53

Mendras, Henri (2000): 540. 54

Sublinhe-se, poré m, que na acepção de Redfield, “tant qu'il n'y a pas de ville ou de féodalité, il n'y a pas de paysans, mais des sociétés agraires ou «primitives» ” [Mendras, Henri (2000): 541].

55

Inspirado no modelo (ou t ipo ideal) de sociedade industrial (capitalista) de Ray mond Aron (filósofo, sociólogo, politico e jornalista francês).

56

Mendras, Henri (2000): 550.

Um prime iro esboço deste modelo foi apresentado po r Henri Mendras em 1974 no livro, dirig ido por Marcel Jo llivet, Sociétés paysannes ou lutte des classes au village sendo, ma is tarde, cla ra mente formulado e m Sociétés paysannes, éléments pour une théorie de la paysannerie de Mendras, publicado pela primeira ve z e m 1976.

25 desaparecimento do campesinato em França) perdeu rapidamente o seu valor analítico no que respeita à Europa Ocidental, uma vez “qui n'a plus toléré en son sein des collectivités relativement autonomes, et a transformé chaque paysan en un citoyen et un producteur”57, muito embora permaneça válido no estudo do campesinato noutros continentes.

No caso presente, poder-se-á acrescentar que se o referido modelo continua a fornecer referências importantes no caso das aldeias de Miranda do Douro onde ainda se sentem claramente os vestígios da sociedade camponesa nos termos em que a definiu Mendras – nomeadamente no que toca às relações de interconhecimento, a uma relativa autossuficiência ao nível alimentar, à importância dos grupos domésticos (agora francamente mais reduzidos que no passado) –, o mesmo não sucede relativamente aos outros espaços de observação escolhidos.

NOVAS FORMAS DE AGRICULTURA FAMILIAR

A agricultura camponesa tradicional, baseada na relação propriedade-trabalho- família, é vista por Wanderley58 como uma forma particular de agricultura familiar.

A autora, retomando as características gerais das sociedades camponesas apontadas por Mendras, considera que a autonomia económica se manifesta “pela capacidade de prover a subsistência do grupo familiar, em dois níveis complementares: a subsistência imediata [...] e a reprodução da família pelas gerações subsequentes”, e que é da conjugação destes dois propósitos que resulta “a especificidade do seu sistema de produção e a centralidade do patrimônio familiar”59.

De acordo com Wanderley, nas sociedades modernas, em resultado do esforço de adaptação perante “o impacto das transformações de caráter mais geral”, como a “importância da cidade e da cultura urbana, centralidade do mercado, [...] globalização da economia”60, multiplicaram-se outras formas de agricultura familiar, não camponesas, como o pequeno produtor mercantil61. Ao mesmo tempo, as colectividades rurais sofreram uma crescente perda de autonomia, passando de um

57 Mendras, Henri (2000): 550. 58 Wanderley (1996). 59 Ide m: 3. 60 Ibide m: 8.

26 modelo de comunidades de interconhecimento para colectividades diferenciadas, próximas do modelo urbano.

No entanto, estas novas formas de agricultura familiar, mais próximas do modelo capitalista, preservam, ainda, – como sucede no Brasil – “muito dos seus traços camponeses”62.

Harff e Lamarche63 (1998), num artigo sobre as novas tendências do trabalho na agricultura, defendem, por exemplo, que a modernização da agricultura familiar (ou a sua industrialização), concretizada no desaparecimento do modo de produção camponês e na instalação de um modelo empresarial, não se traduziu, em termos de organização do trabalho, numa grande mudança da relação trabalho familiar/trabalho assalariado na exploração, que continua a funcionar essencialmente com base na família.

As opções dos agricultores resultam da articulação de diversos factores como o meio físico (solos, recursos hídricos, condições climáticas, etc.), as oportunidades de mercado para os produtos das suas colheitas, a influência da comunidade e/ou da família, os conhecimentos técnicos, os afectos, entre outros. Sendo que, como escreve Luciano de Almeida, postos perante “diversas informações, necessidades práticas cotidianas, oportunidades e restrições, os agricultores reservam para si um campo de autonomia, onde desenvolvem processos de elaboração e filtragem ”64, gerando respostas diversificadas. É, assim, por exemplo, que a busca de maximização da produtividade e do lucro, que caracteriza a lógica de mercado, convive, muitas vezes, com a necessidade de preservar a segurança e a autonomia, valores habitualmente associados à agricultura familiar.

É a razão prática, nos termos em que a define P. Bourdieu, que orienta as escolhas dos agricultores e que está na base dos conhecimentos práticos por estes produzidos.

Como sublinha Isac Chiva (2008:25), o homem, enquanto produtor de significações (de sentidos, de representações) e, particularmente, o homem do campo, transporta em si lógicas distintas, por vezes contraditórias, forjadas no contacto com outros homens, com 62 Wanderley (1996): 18. 63 Ha rff, Y. e La marche, H. (1998): 3. 64 Almeida, L. de (2006): 33.

27 a natureza, a história. A pluralidade dessas lógicas, das quais na maioria das vezes não está consciente, exprime-se nas diferentes ordens das coisas que realiza, seja no plano da natureza, das técnicas ou da vida social.

AS ESTRATÉGIAS DOS PEQUENOS AGRICULTORES À LUZ DO

HABITUS

É Marcel Mauss, quem sublinha a natureza social do habitus que tem a sua origem na noção aristotélica de hexis, i.e. de “um estado adquirido e firmemente estabelecido do carácter moral que orienta os nossos sentimentos e desejos numa situação e, como tal, a nossa conduta”65. Para Mauss, no seu ensaio sobre "As técnicas do corpo" (1936), o habitus, variável sobretudo “com as sociedades, as educações, as conveniências e as modas, os prestígios”66, consiste na elaboração da razão prática colectiva e individual. Pierre Bourdieu renova o conceito de habitus, definindo-o como “um sistema de disposições duradouras e transponíveis que, integrando todas as experiências passadas, funciona a cada momento como uma matriz de percepções, de apreciações e de acções, e torna possível efectuar [...] tarefas infinitamente diferenciadas, graças às transferências analógicas de esquemas que permitem resolver os problemas da mesma forma e graças às mesmas correcções incessantes dos resultados obtidos, dialecticamente prod uzidas por esses mesmos resultados”67

.

Já no texto “O sentido da honra”, de 1960 68

, sobre o sentimento da honra na sociedade

65

Wacquant, L. (2004): 35.

No século XIII, o conceito é reelaborado por To más de Aquino, para que m habitus (tradução latina de hexis) significa, a inda, uma “disposição durável suspensa a meio caminho entre potência e acção propositada”. Émile Durkhe im, irá reto má-lo, a ludindo a u ma d isposição geral do espírito e da vontade (de uma certa atitude da alma ) que fa z ver as coisas de uma certa maneira.

66 Mauss, M. (2003): 404. “Quando se fala de corpo em antropologia ”, escreve Miguel Vale de Alme ida, “é incontornável o legado de Marcel Mauss, para quem toda a expressão corporal era aprendida, uma afirmação entendível no quadro da sua preocupação em demonstrar a interdependência entre os domínios físico, psicossocial e social. Tanto Mauss como Van Genn ep mostraram que as técnicas do corpo correspondem a mapeamentos socioculturais do tempo e do espaço. Mauss argumentou que o corpo é ao mesmo tempo a ferramenta original com que os humanos moldam o seu mundo e a substância original a partir da qual o mundo humano é moldado. O famoso ensaio sobre as técnicas do corpo […] abordava os modos como o corpo é a matéria -prima que a cultura molda e inscreve de modo a criar diferenças sociais” [Almeida, M.V. (2004): 52].

67 Bourdieu (2002):167. 68

Datado de Janeiro de 1960 e publicado e m 1966 co m o título “The sentiment of honour in Kabyle Society” [em Honour and Shame, J.Peristiany (org.). Ch icago, The University of Chicago Press/

28 cabila, Bourdieu salientava que o sistema de valores de honra “é mais agido do que pensado e a gramática da honra pode informar os actos sem ter de ser formulada”69. O conceito de habitus, aqui esboçado, é um conceito mediador, na medida em que estabelece uma relação (dialéctica) entre disposições duráveis (“capacidades treinadas e propensões estruturadas para pensar, sentir e agir de modos determinados”70), depositadas nas pessoas pela sociedade e as suas respostas criativas a estes constrangimentos.

No mesmo texto acima referido, e a propósito das regras do jogo do desafio e da resposta (ou, daquilo que designa por dialéctica do desafio e da resposta), Bourdieu insiste nesta ideia de que o habitus, como disposição cultivada, não implica uma mesma resposta ritualmente repetida, pelo contrário, as respostas serão diferentes consoante os interesses e a estratégia dos jogadores.

Aquele que recebe o dom (o que pressupõe o seu reconhecimento por parte de quem o dá) e que é, assim, “apanhado na engrenagem da troca”, poderá escolher entre “prolongar a troca ou rompê-la”, se obedecer ao ponto de honra (o nif) e “optar pela troca, [...]; aceita entrar no jogo, que pode continuar até ao infinito”71.

Os habitus, “esquemas clasificatorios, principios de clasificación, principios de visión y de división, aficiones, diferentes”, estabelecem diferenças entre o que é/está bom e o que é/está mau, entre o que é distinto e o que é vulgar, mas as diferenças não são as mesmas para uns e para outros, daí que, por exemplo, um mesmo comportamento possa ser avaliado de formas muito diversas:“el mismo comportamiento o el mismo bien puede parecerle distinguido a uno, pretencioso u ostentoso a otro, vulgar a un tercero”72. São, portanto, também, princípios geradores de práticas distintas e distintivas: “lo que come el obrero y sobre todo su forma de comerlo, el deporte que practica y su manera de practicarlo, sus opiniones políticas y su manera de expresarlas difieren sistemáticamente de lo que consume o de las actividades correspondientes del empresario industrial”73.

Londres, Weidenfeld and Nicholson].

69 Bourdieu, P. (2002):33. 70 Wacquant, L. (2004): 36. 71 Bourdieu, P. (2002):14. 72 Bourdieu, Pierre (1997): 20. 73 Ide m.

29 Na construção deste conceito de habitus, Bourdieu introduz as noções de reconhecimento, prestígio, capital simbólico74 e interesse75.

Na obra Razões Práticas, sobre a Teoria da Acção, Bourdieu afirma que “a troca de dons […], concebida como paradigma da economia dos bens simbólicos ” se opõe “à troca por troca da economia económica na medida em que tem por origem não um sujeito calculador, mas um agente socialmente predisposto a entrar, sem intenção, nem cálculo, no jogo da troca” e que é, nessa qualidade, que “ignora ou denega a sua verdade objectiva de troca económica”76.

Este conceito de habitus, pelo seu carácter mediador (relacional) entre condições estruturais objectivas (em que é produzido e incorporado) e práticas e representações que tende a estruturar; caracterizado pela sua durabilidade e interioridade (no sentido em que não é percebido enquanto tal) e, simultaneamente, pela dimensão do interesse/ estratégia e, ainda, por ser acumulativo77 e capaz de assimilar o novo; revela-se muito útil na abordagem do tema, uma vez que é a lógica prática que está na base das opções quotidianas dos agricultores (e da produção constante, pelos mesmos, de novos conhecimentos práticos), resultantes de estratégias que visam a produção e reprodução de condições de vida e de uma ordem social específicas.

Estas estratégias, como produto do sentido prático (sentido de jogo ou sentido de um certo jogo social) ou habitus (sistema de disposições durável mas não imutável, ‘incor- porado’ num contínuo processo de socialização), são condicionadas pelo meio social em que são produzidas.

74 “O capital simbólico pode ser qualquer propriedade (qualquer espécie de capital, físico, económico, cultural, social) que seja percebida pelos agentes sociais cujas ca tegorias de percepção são tais que eles são capazes de a conhecer (de se aperceberem dela) e de a reconhecer, concedendo -lhe valor”(Bourdieu, (1997):80].

75

“ Interesse é «ser de», fa zer parte, portanto, ad mit ir que o jogo merece ser jogado e que os objecto s em jogo engendrados no e pelo facto de se jogar o jogo merece m que os busquemos; é reconhecer o jogo e reconhecer os objectos em jogo”. Bourdieu chama-lhe também illusio (investimento ou libido) na med ida em que “é essa relação encantada com um jogo que é o produto de uma relação de cumplicidade ontológica entre as estruturas mentais e as estruturas objectivas do espaço social” [Bourdieu, (1997):106-107).

76

Bourdieu (1997): 126. 77

Uma cu mulat ividade que resulta do próprio processo de socialização (desde o meio socia l da fa mília de orige m, passando pela escola, etc.).

30 Assim, para compreender, por exemplo, as estratégias (geradoras de certas modalidades de conduta) subjacentes às opções dos agricultores, é necessário conhecer, por um lado, o sistema de disposições (o habitus) em que se apoiam e, por outro, o contexto em que são produzidas.

A constatação feita por Bourdieu relativamente à sociedade cabila, em que “o sagrado […] só existe pelo sentido de honra (nif) que o defende” e o “sentimento de honra [o habitus] encontra a sua razão de ser no sentido do sagrado ”, ilustra bem a ideia de uma realidade relacional em que se jogam, permanentemente, disputas simbólicas e em que o poder (e a luta por este poder) simbólico – “esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem” – é determinante.

É através dos sistemas simbólicos, instrumentos de conhecimento e de comunicação, que se constrói esse “sentido imediato do mundo” ou aquilo a que Durkheim chama o conformismo lógico, “uma concepção homogénea do tempo, do espaço, do número, da causa, que torna possível a concordância entre inteligências ”78. Os sistemas simbólicos cumprem, assim, “a sua função política de instrumentos de imposição ou de legitimação de dominação”, contribuindo para assegurar a dominação de uma classe sobre outra e para a «domesticação dos dominados»79. Como tal, as diferentes classes tentam impor as suas próprias definições do mundo social, “mais conforme aos seus interesses”, assumindo-se o campo da produção simbólica como “microcosmos da luta simbólica entre as classes”. Nesta disputa, que se verifica tanto de forma directa como por procuração, através “da luta travada pelos especialistas da produção simbólica”80

, está em jogo “o monopólio da violência simbólica legítima”, ou seja, o poder de impor “instrumentos de conhecimento e de expressão (taxinomias) arbitrários – embora ignorados como tal – da realidade social”.

A questão do exercício do poder simbólico remete- nos, no caso específico do tema de pesquisa em apreço, para a oposição entre distintos modelos de percepção da Natureza e, designadamente, das sementes e das práticas agrícolas, materializados, por exemplo, 78 Bourdieu, (1989):9. 79 Ide m: 11. 80 Ibide m.

31 em conflitos que opõem grandes companhias de produção de sementes híbridas e/ou transgénicas e camponeses na Índia ou noutras partes do mundo.