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No documento Marcelo Neves - Entre Hidra e Hercules (páginas 101-148)

Não cabe aqui uma análise abrangente do chamado "neocons- titucionalismo" no Brasil. As críticas no sentido de que o significa do teórico e prático do debate em torno de jurisdição constitucio nal, força normativa da Constituição e princípios constitucionais já se desenvolve desde o início do século XIX17, embora sirvam

para desnudar o caráter retórico de assertivas peremptórias, não são suficientes para o que se pretende no presente estudo. Ávila vai além e, a partir de quatro pretensões que atribui a alguns auto res18, procura fazer uma crítica mais abrangente ao "neoconstiíu-

cionalismo" em geral, atribuindo-lhe os seguintes traços básicos, em termos de mudança do foco: da regra ao princípio no que concerne ao fundamento normativo; da subsunção à ponderação relativamente ao fundamento metodológico; da justiça geral à justiça particular no referente ao fundamento axiológico; do po

der legislativo (ou executivo) ao poder judiciário no tocante ao fundamento organizacional19. A partir dessa caracterização, Ávila

apresenta suas restrições respectivas: o "neoconstitucionalismo", ao desprezar as regras em nome da ênfase nos princípios consti tucionais, não levaria em conta o próprio caráter da Constituição brasileira, que seria antes "regulatória" ("composta basicamente de regras") do que "principiológica"20; ao valorizar o paradigma

da ponderação em detrimento da subsunção, não só conduziria ao "antiescalonamento da ordem jurídica" e aniquilaria com "as regras e com o exercício regular do princípio democrático", mas,

17 Nesse sentido, ver, Dimoulis, 2009, pp. 214-22, em crítica a Barroso, 2007a. Nes

se contexto, Dimoulis tenta definir o "neoconstitucionalismo" como um tipo de constitucionalismo vinculado ao moralismo jurídico (2009, pp. 222-4), ma s a pró

pria diversidade de posições que se desenvolvem sob esse rótulo torna difícil apos tar em uma definição abrangente.

18 Carbonell, 2007b; Ferrajoli, 2003; Sanctus Pietro, 2000; Moreira, 2008. 19 Ávila, 2009.

20 Ávila, 2009, pp. 3, 5 e 18.

USO E ABUSO DE PRINCÍPIOS • 1J~ sobretudo, levaria a "um subjetivismo e, com isso, à eliminação do caráter heterolegitimador do Direito" por não oferecer "crité rios intersubjetivamente controláveis para a execução" da ponde ração21; ao dar prevalência à "justiça geral" em prejuízo da "justi

ça particular", promoveria "incerteza" e "arbitrariedade"22; por

fim, ao atribuir proeminência do judiciário em relação ao legisla tivo (ou executivo), não consideraria adequadamente as exigên cias do "Estado de Direito, vigente numa sociedade complexa e plural", nem as características de um "ordenamento jurídico que privilegia a participação democrática"23. Com base nessas críti

cas, Ávila conclui que o "neoconstitucionalismo", no Brasil, "está mais para o que se poderia denominar, provocativamente, uma espécie enrustida de 'não constitucionalismo': um movimento ou uma ideologia que barulhentamente proclama a supervaloriza- ção da Constituição enquanto silenciosamente promove a sua desvalorização"24.

Essa crítica, embora aponte para problemas teóricos e práti cos relevantes do modelo principialista de interpretação-aplica- ção constitucional, merece algumas objeções. Inicialmente cabe observar que, ao tomar estrategicamente alguns autores de uma vertente formada por diversas tendências da teoria e dogmática constitucional para atribuir peremptoriamente algumas de suas assertivas à recepção dessa vertente no Brasil, como se houvesse unidade tão precisa na respectiva corrente e na correspondente recepção, pode causar "injustiças". Por exemplo, autores classifi cados por Carbonell como pertencentes ao(s) chamado(s) ' neo constitucionalismo^)" talvez não aceitem nenhuma das asserti-

21 Ávila, 2009, pp. 7-10. 22 Ávila, 2009, pp. 15 e 18. 23 Ávila, 2009, pp. 16 e 18. 24 Ávila, 2009, p. 19.

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vas peremptórias que Ávila atribui a essa vasta corrente 25. Autores

que se autointituiam "neoconstitucionalistas" também poderiam

rejeitar alguma dessas assertivas26

, Portanto, as objeções a alguns autores (três estrangeiros e um brasileiro) não podem servir de mo delo para a crítica de toda uma tendência da doutrina constitu cional recente no Brasil.

Mas essa questão é secundária para os fins do presente estu do. Relevantes são, antes, os fundamentos da crítica de Ávila. No que interessa diretamente a este trabalho, a relação entre princí

pios e regras constitucionais, não me parece adequa da a saturada

distinção entre "Constituição principiológica" e "Constituição re- gulatória" como parâmetro para a crítica de uma teoria e dogmá tica constitucional que superestima os princípios constitucionais em detr iment o das regras. Essa distinção fi ca muito presa ao tex

to constitucional27. Não se trata aqui de negar o significado dos

textos constitucionais, pois a interpretação é produção de textos

com base em textos28 e não pode romper com "a função do texto

de construir unidade" 29. Não obstante, o relevante para o direito

não é a textualização em si, mas sim as normas que se atribuem ao texto. A rigor, os textos em si (significantes) ainda não consti tuem direito, cuja formação depende das normas vinculantes que 25 Carbonell (org. 2003) incluiu, na primeira coletânea que organizou sobre o tema, artigo de Alexy, que dificilmente concordaria com suas assertivas peremptó rias, objeto da crítica de Ávila.

26 Cf., por exemplo, Barcellos, 2005, apontando para a prevalência das regras em relação aos princípios.

27 Além disso, pode-se supor que a noção de "Constituição regulatória" está rela cionada com a ideia de "Constituição dirigente" (Canotilho, 1994), que se afigura altamente discutível no contexto de uma sociedade complexa.

28 Ver supra p. 153.

29 Luhmann, 1993, p. 364. Sobre a exigência de levar o texto a sério, cf. Alexy, 1986, pp. 121 'trad. bras. 2008, p. 140]. Por sua vez, Müller, F. (1995, p. 99) fala em "vinculação de todas as funções jurídicas ao texto normativo".

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lhes são atribuídas na relaçã o entre instância de produç ão institu cional e instância de sua construção hermenêutica. A partir de um mesmo texto constitucional podem-se desenvolver doutrinas e práticas constitucionais as mais diversas. Além do mais, a distin ção entre princípios e regras constitucionais só tem significado na argumentação em torno de controvérsias cons titucionai s com plexas, sendo irrelevante na aplicação rotineira e na observância

cotidiana das normas constitucionais 30

. Portanto, a questão de uma crítica a uma doutrina constitucional excessivamente prin- cipialista não pode apegar-se e fundar-se em uma diferença clás sica, de caráter eminen temente textual, entre "Constituição prin cipiológica" e "Constituição regulatória", que, em última instância, diz respeito basicamente a uma distinção quantitativa com base no núm ero e na extensão de dispositivos constituci onais.

A essa limitação decisiva associa-se a fragilidade dos outros fundamentos da crítica de Ávila ao chamado "neoconstiíuciona- lismo". A afirmação de que o paradigma da ponderação (em de triment o da subsunção) conduz ao. subjeti vismo, não fornecendo critérios intersubjetivos para a função heterolimitadora do direi to, parte de distinção também saturada, inadequada para a aná lise de modelos referentes à concretização constitucional. Pon deração e subsunção ocorrem dentro de processos complexos de comunicação. O que se passa na mente dos juízes antes da ar gumentação e da interpretação (como produção de texto) é in controlável tanto na subsunção quanto na ponderação. O que é controlável social e juridicamente é o comunicado. A alternativa, controle intersubjetivo, nesse contexto, não diz nada. O modelo da inter subjetividade tem se apresentado antes como uma alter nativa à pretensão de legitimação monológica de um juiz como

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sujeito (ideal) capaz de decidir corretamente a partir de uma po sição privilegiada de observação. Em todo caso, tern que haver decisão como comunicação suscetível de crítica. Em nenhum dos casos trata-se de uma discussão sobre subjetivismo, mas sim das condições de possibilidade da crítica de decisões. Enfim, o recur so a essa alternativa desconhece o significado de conexões comu nicacionais complexas, marcadas tanto peia pluralidade sistêmica de pontos de observação quant o pela dupla contingência de qual quer episódio de comunicação.

Além do mais, recorrer, no contexto, à distinção entre "justi ça geral" e "justiça particular", sugerindo uma associação (predo minant e) da primei ra às regras e da se gunda aos princípios, pare ce-me problemático. Não se pode negar, em primeiro lugar, que há regras orientadas mais para o concreto e o particular (especial mente quando são construídas pela jurisprudência), assim como nada indica que os princípios, muito além de sua ponderação em casos concretos, não possam servir às chamadas exigências nor mativas gerais. Em segundo lugar, a dicotomia "justiça geral/jus tiça particular" é discutível. A esse respeito, há uma interação per manente entre o abstrato e concreto na satisfação de expectativas normativa. A justiça diz respeito ao processamento do paradoxo da decisão que seja, ao mesmo tempo, juridicamente consistente e socialmente adequada, envolvendo simultaneamente o abstrato e o concreto, o geral e o individual.

Por fim, a crítica ao excesso de ênfase no judiciário por parte do "neoconstimcionalismo", embora seja relevante, é posta de for ma um tanto simplista por Ávila. Segundo ele, o legislativo, vin culado ao processo democrático , teria condições de construir regras destina das a "estabilizar conflitos morais" e "reduzir a incerteza e a

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arbitrariedade" em uma sociedade complexa 31

, cabendo ao judi ciário aplicá-las. De fato, a produção legislativa de (texto de) re gras é fundamental para a redução da complexidade e a estabili zação de expectativas normativas na sociedade moderna. Isso

decorre da própria positivação do direito 32. Mas a introdução de

regras a partir do poder legislativo é apenas um momento do processo de sel eção da norma peran te uma multidão de expecta tivas normativas contraditórias existentes na sociedade. Pode ser que a introdução de regra legal a partir do processo legislativo ainda crie mais conflitos do que os existentes antes da entrada em vigor da respectiva lei. A própria questão da diversidade de com preensões de uma mesma regra legal - seu sentido, seu âmbito de incidência e aplicação etc. - exige a atividade judicial de estabili zação e reorientação das expectativas normativas conflitantes em torno do respectivo texto legal. E essa atividade só poderá ter su cesso, em alguns casos, se houver recurso a princípios adequados à solução da respectiva controvérsia jurídico-constitucional. Por conseguinte, tanto o legislativo e as regras quanto o judiciário e os princípios têm um papel determinante e desempenham funções decisivas na estabilização de expectativas normativas no âmbito de uma sociedade hipercomplexa e conflituosa. Essa estabiliza ção depende da forma como vai se desenvolver'a relação reflexiva circular entre legislador (especialmente o constituinte) e juízes ou

tribunais ( particularmente os constitucionais) na dinâmica jurídi

ca e entre princípios e regras na estática jurídica.

Aos fins do presente trabalho parece-me mais op ortuno, par a

uma consideração crítica da adoção de modelos principiológicos na recente doutrina constitucional brasileira, uma análise mais

A Ávila, 2009, P- 16. 31 Ver supra Cap. III.2.

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abrangente de tendências do que a concentração em uma verten te cujos contornos são de difícil demarcação, sobretudo porque pretende englobar teorias e autores muito diferentes. No sentido de uma crítica mais ampla da recorrência ao modelo de princí pios na dogmática constitucional dos anos 1990 e 2000, vale con siderar a crítica de Virgílio Afonso da Silva. Em geral, Silva apon ta para um sincretismo metodológico que tornaria inconsistente as diversas formulações da teoria constitucional em torno de te mas como princípios e regras, ponderação ou sopesamento, pro

porcionalidade e razoabilidade, entre outros 33. No âmbito dessa

crítica, ele põe o foco na forma de adoção de catálogos de princí pios e métodos de interpretação, propostos em circunstâncias de terminadas do desenvolvimento da doutrina e prática constitu cional de um país, especialmente na Alemanha, e transplantados para o Brasil como se constituíssem algo universal. Assim, enfati za que o catálogo de princípios da interpretação constitucional apresentado por Konrad Hesse em um manual publicado srcina riamente em 1967, que nem sequer teria encontrado ampla acei tação dogmática e jurisprudencial no âmbito da ordem constitu cional alemã, a que se dirigiu, passou a ser disseminado, a partir dos anos 1990, no Brasil, como uma exigência intrínseca de todo e qualquer Estado constitucional: princ ípios do efeit o integrador, da unidade da Constituição, da concordância prática, da confor midade funcional e da força normativa da Constituição. Silva afirma peremptoriamente: "o que era a lista de um autor - Konrad Hesse - passou a ser encarado como princípios universais e im

prescindíveis"34. A esse catálogo, ele acrescenta o princípio da má

xima efetividade, que teria chegado ao Brasil pela obra de Cano-

33 Silva, V. A., 2005; 2003; 2002b. 34 Silva, V. A., 2005, p. 133.

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tilho. Além disso, afirma não ter o que falar sobre a introdução, nesse catálogo, do princípio da interpretação conforme a Consti tuição (também referido por Hesse), pois sustenta que esse seria

um critério específico de interpretação da lei 35.

Em relação aos métodos de interpretação constitucional, Sil va procede de maneira semelhante. Aponta para a disseminação, no Brasil, de uma lista elaborada por Böckenförde em um artigo sobre o tema, da qual fazem parte os seguintes tipos de método: método he rmenêutico clássico , método tópico-problemático, mé

todo científico-realista e método hermenêutico-concretizador 36.

Sustenta que Böckenförde pretendia "apenas fazer uma síntese

do estágio da discussão na época da publicação de seu artigo, e não propor um conjunto de métodos complementares" e, a esse

respeito, chama a atenção para o pròprio subtítulo do artigo: "in

ventário e crítica"37. A par tir desse ponto, critica a inconsistência

da adoção e divulgação por juristas brasileiros de métodos apre sentados por Böckenförde e outros constitucionalistas alemães, especialmente a partir da variante formulada por Canotilho, e asso cia essa inconsistência à falta de referência à aplicação prática e,

sobretudo, ao "sincretismo metodológico" 38. Com base tanto nessa

crítica e nas objeções referentes à adoção do catálogo de princípios de Hesse, Silva pontifica programáticamente a necessidade do de senvolvimento de teoria da constituição aplicáv el à Constituição brasileira, teoria essa que não excluiria métodos e conceitos desen-

35 Silva, V. A., 2005, pp. 118-33. Cf. Hesse, 1969, pp. 28-34; Canotilho, 1998,

pp. 1096-101.

36 Böckenförde, 1991 [1976], pp. 56-80.

37 Silva, V. A., 2005, p. 134. No referido artigo, Böckenförde (1991 [1976]» P- 80)

afirmava criticamente: "Todos os métodos de interpretação tratados contribuem, no resultado - talvez com exceção do de F. Müller -, para enfraquecer a normativi dade da Constituição."

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volvidos no contexto de outras ordens jurídicas, ma s exigiria qu e

estes passassem por uma prova de compatibilidade com ela 39.

Essas críticas são relevantes, pois, sobretudo a respeito da in vocação frequente aos p rincípios e à ponderaçã o entre eles, apon tam para os limites do debate jurídico-constitucional que se esta beleceu no Brasil a partir da promulgação da Constituição de 1988. "Denuncia" não apenas a falta de rigor dogmático, teórico e me todológico no âmbito desse debate, mas também que este não tem construído uma conexão sólida com a ordem constitucional brasileira e a respectiva prática jurídica. Por um lado, haveria in consistênci a; por outro, aquilo que se chamou, controversamente,

de "ideais fora de lugar" na teoria social brasileira 40. Mas me pa

rece que as críticas diretas e peremptórias de Virgílio Afonso da Silva apresentam um quê de simplificação e ficam enredadas nas próprias deficiências que critica.

Um ponto inicial relaciona-se com a tendência de atribuir su postas falhas à recepção brasileira das ideias ou conceitos de um determinado autor (praticamente, sempre um jurista alemão), sem ter o cuidado de averiguar se essa eventual falha encontra-se na formulação srcinal. Um exemplo evidente encontra-se na re ferência à interpretação conforme a Constituição, que não confi guraria tema de um artigo sobre interpretação constitucional, pois

se trataria de critério de interpretação da lei 41. Sem querer entrar

39 Silva, V. A., 2005, p. 143. Também no referido artigo, Böckenförde (1991 [1976], p.

81) falava precisamente da "necessidade de uma teoria (vinculante) da Constituição".

40 Schwarz, 2008. Essa formulação é passível de crítica, pois, ao se deslocarem ou mi

grarem, as ideias ganham novo sentido e desempenham outras funções no novo con texto. Nessa perspectiva, recentemente, antes de corroborar (como ele se propõe), Schwarz (2012), a rigor, revê sua tese srcinária. Entretanto, parece-me deva ser afas tada, definitivamente, a concepção de "ideias fora do lugar". Diversamente, cabe falar de ideias em outro lugar (a respectiva unidade político-jurídica em que elas se deslo caram) e, ao me smo tempo, paradoxalmente, no mesmo lugar (a sociedade mundial).

41 Silva, V. A., 2005, PP-132-3.

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aqui nessa discussão, que vai além do propósito do presente traba lho, cabe advertir que Hesse, embora não inclua esse "princípio" no catálogo que apresenta inicialmente em seu manual, tratava-o, en tão, como um "princípio de interpretação" que surgira no "mais novo desenvolvimento do direito constitucional" e que confirmava a "referência recíproca entre Constituição e lei", nos termos da se guinte assertiva: "A interpretação conforme a Constituição não co loca apenas a questão do conteúdo da lei a ser controlada, mas também a questão do conteúdo da Constituição pela qual a lei deve ser avaliada. Ela exi ge, por isso, tanto interpretação da lei quanto da

Constituição."42 Na exposição de Silva, sugere-se que a inclusão do

tema da interpretação conforme a Constituição seria devida a uma recepção inadequada da formulação de Hesse, mas, se tivesse havi do falha ou imprecisão, ela já se encontraria na obra desse autor.

Outro aspecto a ser considerado refere-se à crítica generali zada de Silva ao "sincretismo metodológico" no Brasil, sem os devidos cuidados ao tratar da contribuição de autores que não fazem parte do seu estrito universo teórico. Um exemplo é a crí tica à junção inadequada, sem as devidas filtragens conceituais, entre a teoria estruturante de Friedrich Müller e a principiologia jurídic a de Alexy. Sem dúvid a, é imp ort an te apo ntar p ara con ci

liações teòrica e metodologicamente impossíveis desses dois mo delos, principalmente se ass umidos ambos sem restrições. Esse é um problema relacionado a uma velha tradição da doutrina e te oria jurídica no Brasil, inclusive em autores que se sobressaem no

debate nacional43. Mas é preciso que se tenha cuidado ao se refe

rir a posições de certo autor para caracterizá-la, pontualmente,

42 Hesse, 1969, pp. 31 e 34.

43 P or exemplo, em obras de referência, Ferraz Jr. (1980; 1988) mistura a tópica de

Viehweg, a teoria luhmanniana dos sistemas e a teoria da ação de Hannah Arendt, além de modelos de técnica de decisão em voga à época, entre outras perspectivas, sem qualquer esforço de filtragem, como se tudo fosse compatível.

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como contraditória com 3. de outro autor. Silva afirma que Müller sustenta um conceito de norma jurídica insuscetível de colisão e, pois, de ponderação, para, assim, apontar a contradição de sua

teoria com a de Alexy44. Está correto quanto ao fato de que a nor

ma jurídica em Müller não se submete à ponderação. Mas a norma jurídica em Müller só surg e no final do proc ess o de conc reti za

ção45. Dessa maneira, ela corresponde, no modelo de Alexy, à re

gra jurídica construída, após a ponderação, como razão definiti

va de uma decisão judicial46. E, conforme este, nenhuma regra

(completa), como razão definitiva, é suscetível de ponderação. Nesse sentido, não haveria nada de problemático entre as duas teorias. Dados os pressupostos teóricos diversos, a diferença esta ria no significado da ponderação antes do final da cadeia de con cretização ou de argumentação, respectivamente: para Müller, durante a concretização, a ponderação apresenta-se como um fa tor potencialmente irracional no processo de produção da norma

jurídica que fund amenta a n or ma de decisão do caso47; em Alexy,

a ponderação, tanto no caso de princípios quanto de regras in completas, seria o elemento decisivo na argumentação destinada a construir a regra (completa) como razão definitiva para a nor ma concreta de solução do caso. Problemas permanecem de am bos os lados, persistindo as seguintes indagações: antes do final do processo de concretização não haveria norma jurídica vinculan do os juízes (para Müller)? É possível falar em regras completas como razões definitivas antes que se encerre o processo argumen-

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