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8 ENTRE HIDRA E HÉRCULES

No documento Marcelo Neves - Entre Hidra e Hercules (páginas 82-86)

de dois a cinco anos."116 Além disso, tratava-se do enquadramen

to dessa regra à hipótese prevista no art. 5?, inciso XLII, da Cons tituição Federal, que determina a imprescritibilidade do crime de racismo. Em primeiro lugar, cabia indagar se o suporte fatico (concreto), a publicação de um livro negando o holocausto, en quadrava-se na regra penal. Em segundo lugar, caso fosse enqua drado, se essa regra tipificava crime de racismo, imprescritível nos termos do art. 5?, inciso XLII. A questão, à primeira vista, poderia converter-se em um caso "fácil" de subsunção a regras constitucionais e legais. Mas se recorreu ao plano dos princípios. O condenado invocou o princípio da liberdade de expressão. Na discussão judicial no STF foram invocados princípios colidentes, como o da dignidade da pessoa humana e o da não discrimina ção117. Mediante a invocação desses princípios, as respectivas re

gras constitucionais e legais tornaram-se incompletas. A questão poderia ser considerada sob três aspectos: 1) a constitucionalida de da regra legal com base em princípios, para definir se esta, ao incluir na hipótese de crime de racismo a publicação de livros com conteúdo discriminatório de grupos étnicos ou religiosos, teria ultrapassado ou não o âmbito de incidência do art. 5?, inciso XLII, da Constituição, interpretado à luz do princípio da dignida de humana e da não discriminação ou do princípio da liberdade de expressão; 2) a exclusão ou inclusão do suporte fatico concreto do âmbito de incidência da regra legal, também definível à luz de princípios constitucionais; 3) admitido o enquadramento legal, a inclusão ou exclusão da hipótese normativa da regra penal (pres suposta a sua constitucionalidade) no âmbito de incidência da regra constitucional referente ao crime imprescritível de racismo

Esse dispositivo foi novamente alterado pela Lei 9 .459, de 15 de maio de 1997. Ver infra pp. 212-3.

À PROCURA DE OUTRO MODELO • I 3 9 (seria crime de discriminação, mas não crime de racismo), igual mente definível à luz de princípios constitucionais. Na primeira e terceira possibilidades de tratamento do caso, pode caracterizar- -se a mediatidade dos princípios em relação à norma de decisão, pois se trata de definir a constitucionalidade da regra legal direta mente em face do art. 5?, inciso XLII, interpretado à luz dos prin cípios constitucionais, ou o enquadramento da hipótese legal no âmbito de incidência da regra atribuída a esse dispositivo consti tucional, interpretado também com base nos princípios a aplicar. Mas, inclusive na segunda alternativa, independente de haver o dispositivo constitucional sobre o crime de racismo, é possível falar-se de uma mediatidade, pois a solução da questão não pode decorrer diretamente dos princípios, mas sim da regra penal, concretizada à luz de princípios constitucionais. Além disso, cabe sustentar que a solução da própria controvérsia sobre a constitu cionalidade, o enquadramento legal do suporte fatico (completo) ou o enquadramento constitucional da hipótese legal exige a construção de uma regra atribuída indiretamente ao texto consti tucional, nos seguintes termos: "O enquadramento penal [como crime de racismo nas alternativas 1 e 3] da publicação de livros que neguem o holocausto é permitido do ponto de vista do prin cípio constitucional da dignidade da pessoa humana [ou da não discriminação]." De certa maneira, regra com'esse conteúdo foi construída pela maioria dos ministros do STF no caso "Ellwan- ger", tendo sido atribuída indiretamente ao texto constitucional. Como norma geral definida por precedente, ela reduz o "valor- -surpresa" da decisão de futuros casos ern que o suporte fatico tenha o mesmo núcleo do suporte fatico do crime de Ellwanger: publicação negadora do holocausto. Mas nada exclui que, em fu turos casos, fatos jurídicos com características idênticas e as res pectivas regras legais e constitucionais sejam compreendidos de

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maneira inversa, à luz, por exemplo, da liberdade de expressão ou da liberdade científica. A isso se relaciona que, sobretudo as deci sões tomadas com base em princípios a que se contrapõem outros, expressam uma racionalidade que é fortemente marcada pela fa libilidade118, sendo superável com a introdução de novos argu

mentos principialistas: Hidra gera novas cabeças.

Em suma, pode-se concluir a respeito do exposto neste item: os princípios constitucionais como normas no plano da observa ção de segunda ordem de casos a decidir e normas de decisão são estruturas reflexivas em relação às regras; a relação entre princí pios e regras implica uma relação circular reflexiva na dimensão da estática jurídica; a concretização constitucional exige uma re gra completa ("norma geral") como critério imediato para a solu ção do caso mediante a norma de decisão; há uma impossibilida de prática de aplicação imediata de princípios sem intermediação de regras, sejam estas (atribuídas diretamente a dispositivos) le gais ou constitucionais ou construídas (atribuídas indiretamente ao texto constitucional) jurisprudencialmente119; a argumentação

focada excessivamente em princípios constitucionais é sobrema- 118 O termo "falibilidade" não deve ser compreendido aqui no sentido de "defeasi-

bility" ou "derrotabilidade", amplamente empregado no debate em torno de regras, princípios e argumentos jurídicos, com uma forte carga normativa e um apelo à lógica (a respeito, cf., entre muitos, Hart, 1948-1949; Baker, 1977; Alchourrón, 1996; Schauer, 1998a; Weinberger, 1999, pp. 246-8; Hage e Peczenik, 2000; Tur, 2001; Arria, 2001, pp. 37-44,122-40 e 172-84; Prakken e Sartor, 2004; MacCormick, 2005, espec. pp. 239-53 [trad. bras. 2008, pp. 309-28]; Sartor, 2008; 1994, pp. 185 ss.; Vale, 2009, pp. 116-20). Eu o emprego aqui no âmbito do conceito sistêmico de contin gência, referente abrangentemente à estrutura social: "Por contingência entende mos o fato de que as possibilidades apontadas para as demais experiências pode riam ser diferentes das esperadas", significando "perigo de desapontamento e necessidade de assumir riscos" (Luhmann, 1987b, p. 31).

119 No mesmo sentido, mas com base em pressupostos diversos, ver Larenz, 1983,

pp. 405 e 461; 19Ó9, pp. 465-6 [trad. port. 1978, p. 576], em relação aos "princípios abertos" (em contraposição aos "princípios com a forma de proposições jurídicas").

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neira falível, deixando amplo espaço para que se superem as pró prias regras constitucionais desenvolvidas a partir dela.

. 4. Da otimização à concorrência: limites da "ponderação" Não há dúvida de que a exigência de ponderação ou sopesa- mento em caso de colisão entre princípios constitucionais (e, em geral, entre normas) é, tout court, inafastável. Mas a ponderação é apenas uma entre as técnicas que possibilitam a aplicação con sistente de princípios constitucionais. Além disso, o vínculo entre ponderação e otimização, ou seja, a noção idealista do manda mento de ponderação otimizante, subestima a complexidade de casos constitucionais em que se argumenta primariamente à luz de princípios.

Alexy parte de um modelo contrafactual de ponderação oti mizante. Nesse sentido, como já afirmado acima, a sua concepção se aproxima da noção de uma única decisão correta ou da melhor decisão, no sentido de Dworkin120. Otimizar significa encontrar a

melhor decisão dentro das condições jurídicas e fáticas que envol vem o caso. Esse mandamento só poderia ter um significado práti co se partíssemos de um juiz monológico (Hércules em Dworkin), sujeito soberano da decisão do caso, ou de uma intersubjetivida- de orientada consensualmente para a busca dç solução do caso mediante argumentação racional, tendo como referência as con dições ideais do discurso121. Essas duas perspectivas parecem muito

simples, tanto descritiva quanto prescritivamente, para a com preensão e a intervenção em conexões sociais (em geral) e jurídicas (em especial) de ações e comunicações em uma sociedade hiper- 120 Cf. supra pp. 82-3, espec. nota 132.

121 Nesse sentido, cf. Alex1 /, 1983, pp. 155 ss., a partir de Habermas, 1986, pp. 127-83

(artigo "Wahrheitstheorien" ["Teorias da verdade"], publicado srcinariamente em 1972).

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complexa. As variáveis sociais e jurídicas que levam à determina ção da solução dos chamados casos difíceis são as mais diversas. A dupla contingência que se manifesta nas comunicações dos vá rios envolvidos nas controvérsias jurídicas em que a discussão e a argumentação em torno de princípios constitucionais colidentes são predominantes importa sempre perspectivas diferentes e an tagônicas do caso, sem que se possa contar nem com o convenci

ment o (do "auditório universal") de todos os destinatários atuais

e potenciais da Constituição nem com a persuasão (do "auditório

particular") dos envolvidos efetivamente na solução do caso 122.

Essa questão da dupla contingência pode ser relacionada a perspectivas diversa s de observação da o rdem jurídica pelas pes soas e grupos. Sob esse aspecto, a questão de valores, interesses e expectativas morais entre si contraditórios e conflituosos leva a um dissenso estrutural possibilitando várias leituras dos princí pios. Desenvolve-se, em certa medida, uma agonística em torno de princípios colidentes. Isso não é apenas uma questão presente na relação entre as partes do processo constitucionais, necessa riament e parciais do ponto de vista jurídico. Nem mesm o restrin ge-se à esfera pública como arena do dissenso. Ela envolve fre quentemente os próprios membros do judiciário e de um mesmo tribuna l com a função de concretizar em última instância a Cons tituição. A questão que se põe, nessas circunstâncias, refere-se à capacidade seletiva de absorção de dissenso e a reorientação das expectativas normativas em face das decisões, deixando-se, po rém, aberto o espaço para críticas e a possibilidade de futuras 122 Sobre a distinção entre "auditório universal" e "auditório particular" ver Perei- man e Olbrechts-Tyteca, 1988, pp. 34 ss.; Perelman, 1979, pp. 107-8 e 122 ss. Con forme observa Aiexy (1983, p. 206), o "auditòrio universal" em Perelman corres ponde à "situação ideal de discurso" em Habermas. Alexy acrescenta (ibidem): "O que em Perelman é o consentimento do auditório universal é, em Habermas, o consenso alcançado sob co ndições ideais."

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transformações de perspectiva da instância decisòria. É evidente

que isso implica, ha dupla contingência, a abertura para a posição

do outro, com disposição de aprendizado (alteridade); mas não deve levar à ilusão de um consenso otimizante, pois a unidade de alteridade e identidade {alter-ego) em torno da compreensão dos princípios pressupõe a diferença de perspectivas de alter e ego a respeito da Constituição. Em vez de otimização, o que se impõe no cotejamento ou ponderação de princípios constitucionais co lidentes, considerada a dupla contingência em relação a pessoas e grupos, é a dificílima tarefa de impedir a expansão da perspectiva de alter no sentido da eliminação ou subordinação definitiva da perspectiva de ego e vice-versa. Portanto, a ponderação é, nesses

termos, u ma das técnicas constitucionais de absorç ão do dissenso

e, simultaneamente, de sua viabilização e promoção. Além de relacionarem-se à pluralidade de perspectivas de gru pos e pessoas, os princípios constitucionais como estrutura reflexi va do direito, sob o aspecto tanto da estática (por serem princípios) quanto da dinâmica (por serem constitucionais), correspondem a perspectivas diversas de observação da ordem jurídica. Nesse particular, há uma afinidade entre os princípios e os direitos fun damentais. Estes se relacionam com o "perigo da desdiferencia- ção" ou, exprimindo positivamente, com "manutenção de uma or

dem diferenciada de comunicação"123

e, pode-se acrescentar, com a promoção dessa ordem. Em outras palavras, os direitos funda mentais podem ser vistos como respostas do sistema jurídico à diferenciação funcional da sociedade: liberdades econômicas e direito ao trabalho, direitos políticos, liberdade religiosa, liberdade científica, direto à educação, direito à saúde etc. E também como uma resposta da diferen ciação entre sociedade e homem: direitos

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da personalidade, dignidade da pessoa humana. A negação expres sa dos direitos fundamentais está diretamente associada às expe riências da desdiferenciação, especialmente à politização ideoló gica do direito (autoritarismo) e de todas as esferas da sociedade (totalitarismo)124. Mas também a ineficácia no processo de con

cretização relaciona-se com o bloqueio da autoconsistência cons titucional do direito por intrusões desdiferenciantes de variáveis sociais as mais diversas, como os fatores políticos (governo/opo sição, poder/não poder), econômicos (ter/não ter), relacionais (amigo/inimigo), familiais (parente/não parente).

Os princípios constitucionais - que, em parte, estão aquém (pois há regras que fixam direitos fundamentais) e, em parte, vão além (pois há princípios referentes à estrutura do Estado e do di reito e princípios referentes a fins políticos e institucionais) dos direitos fundamentais - estão associados igualmente à diferen ciação funcional da sociedade em sistemas operativamente autô nomos, assim como à diferenciação entre homem e sociedade. Eles são constituídos e compreendidos a partir das exigências de cada um dos sistemas sociais, que se relacionam conflituosamen te em uma sociedade hipercomplexa. Além disso, eles envolvem a contraposição entre demandas da pessoa e da sociedade ou, mais especificamente, do indivíduo e da coletividade. Considerem-se questões básicas relacionadas a direitos fundamentais, como, por 124 Loewenstein (1957, pp. 55 ss.) distinguiu na autocracia dois tipos básicos: o autoritarismo, que se refere à estrutura governamental e contenta-se com o controle político do Estado (p. 56); o totalitarismo, que diz respeito à ordem total da socie dade (p. 58). Na persp ectiva da teoria dos sistemas, pode-se afirmar corresponden temente: enquanto o autoritarismo implica diretamente a sobreposição desdiferen- ciante do sistema político ao jurídico, só atingindo a autonomia dos demais sistemas sociais à medida que, no âmbito deles, o poder político seja posto critica mente em questão, o totalitarismo importa a direta politização desdiferenciante de todos os domínios sociais, com a pretensão manifesta de eliminar-lhes qualquer autono mia (Neves, 1992, p. 70).

À PROCURA DE OUTRO MODELO • I 4 5 exemplo, referentes à colisão entre liberdade econômica e direito à saúde e a um meio ambiente ecologicamente equilibrado125, en

tre liberdade de imprensa ou de expressão e dignidade da pessoa humana126. Nesses casos, a colisão entre princípios está vinculada

aos conflitos entre esferas de comunicação ou, no limite, ao con flito "homem/sociedade". Há casos em que o debate público em torno da questão implica uma pluralidade de perspectivas sociais presentes simultaneamente. Tome-se como exemplo o julgamen to da Ação Direta de Inconstitucionalidade n? 3.510/DR em 29 de maio de 2008, no qual se decidiu favoravelmente à utilização de células-tronco embrionárias para fins de pesquisa e terapia, rejei tando-se o pedido de declaração de inconstitucionalidade do art.

5?daLein?ii.50 5,de24demaiode2005(LeidaBiossegurança)127.

Nesse caso, envolveram-se diretamente perspectivas da religião, do.sistema de saúde, da família e da ciência. Ao direito à vida compreendido a partir da religião contrapôs-se tanto o direito à saúde nos termos da medicina e o direito ao planejamento fami liar quanto à liberdade científica. Pode-se dizer, de maneira sim plificada, que, na solução constitucional do caso, prevaleceram a ciência, a saúde e a família sobre a religião. É claro que a esse re sultado não se chegou considerando-se apenas as exigências dos respectivos sistemas sociais. A questão era jurídico-constitucio- nai e, portanto, implicou uma releitura do ponto de vista da Cons tituição. Por um lado, afirmou-se o direito ao planejamento fami liar como fundamentado nos princípios da "dignidade da pessoa humana" e da "paternidade responsável", associando-o também à "autonomia da vontade" e ao "direito à maternidade"; fixou-se o 125 ADPF 101/DF, julg. 24/06/2009, TP, DJ 05/08/2009.

126 HC 82.424/RS, julg. 17/11/2003, TP, DJ 19/03/2004; ADPF 130/DF, julg. 30/04/2009, TP, DJe 06/11/2009.

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