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Marcelo Neves - Entre Hidra e Hercules

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Academic year: 2021

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MARCELO NEVES

ENTRE HIDRA E HERCULES

PRINCÍPIOS E REGRAS CONSTITUCIONAIS COMO DIFERENÇA PARADOXAL DO SISTEMA JURÍDICO

lã tfmfmarfinsfontes SÃO PAULO 2013

(2)

Copyright © 2013, Editora WMF Martins Fontes Ltda,, São Paulo, para a presente edição.

if ediçã o 20 13

Acompanhamento editorial Helena Guimarães Bittencourt Revisões gráficas Sandra Garcia Cortes e Solange Martins Projeto gráfico A+ Comunicação

Edição de arte Katia Harumi Terasaka Produção gráfica Geraldo Alves Paginação Studio 3 Desenvolvimento Editorial Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Neves, Marcelo

Entre Hidra e Hércules : princípios e regras constitucionais como diferença paradoxal do sistema jurídico / Marcelo Neves. - São Paulo : Editora WMF Martins Fontes, 2013. - (Biblioteca jurídica WMF)

Bibliografia ÍSBN978-S5-7827-Ó59-1

1. Direito constitucional 2. Direito constitucional - Filosofia I. Título. II. Série.

12-15711 CDU-342

índices para catálogo sistemático:

1. Princípios e regras constitucionais : Direito 342 /

Todos os direitos desta edição reservados à

Editora WMF Martins Fontes Editora WMF Martins Fontes Ltda.

Rua Prof. Laerte Ramos de Carvalho, 133 01325.030 São Paulo SP. Brasil Tel. (11) 3293.8150 Fax (11) 3101.1042

e-mail: info@wmfmartinsfontesxom.br http://www.wmfmartinsfontes.com.br

impressão e acabamento:

impressão e acabamento: Yangraf Gráfica e Editora

A Elvira, Bernardo e Renato,

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INDICE

Prefácio i x Introdução xv

CA PÍ TU LO I.DO S MODELOS JÁ CLÁSSICOS DE DISTINÇÃO ENTRE PRINCÍPIOS E REGRAS JURÍDICAS... 1 i. A norma entre o texto normati vo e o fato jurídico i 2. Grau de imprecisão, discricionariedade e generalidade como

critério de distinção entre princípios e regras 12 3. Referência a fins e valores com o critério de distin ção entre

princípio e regras 26

CA PÍ TU LO II . .. . PASSANDO POR DOIS MODELOS AINDA DOMINANTES DE DIVISÃO ENTRE PRINCÍPIOS E REGRAS CONSTITUCIONA IS... 43

1. Pressupostos da reviravolta na principiologia jurídica a partir da filosofìa moral 43

2. Tudo-ou-nada versus dimensão de peso (Ronald Dworkin) 51 3. Razões definitivas versus mandamentos de otimização

(Robert Alexy) 63

CA PÍ TU LO I I I . .. . À PROCURA DE OUTRO MODELO DE DIFERENÇA ENTRE PRINCÍPIOS E REGRAS CONSTITUCIONAIS 89

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i. Localização do problema e contornos conceituais 89 2. Princípios constitucionais como resultantes da positivação do

direito: princípios e regras como diferença interna do sistema jurídico 112

3.. A relação circular entre princípios e regras constitucionais 120 4. Da otimização à concorrência: limites da "ponderação" 141 5. Colisão intraprincípios, dupla contingência e diferenciação funcional da sociedade: por uma principiologia complexa 160

CAPÍTULO IV. USO E ABUSO DE PRINCÍPIOS: DA DOUTRINA

À PRÁTICA JURÍDICO-CONSTITUCIONAL BRASILEIRA 171 1. Do fascínio doutrinário... 171

2. ... À prática jurídico-constitucional confusa 196

Observação final: o juiz Mau 221 Bibliografia 229

Índice onomástico 267

PREFACIO

Em 2003, ao retornar ao Brasil após alguns anos de atividade de pesquisa e ensino na Europa, deparei com uma ampla recepção do debate em torno de princípios e regras, ponderação e otimiza ção, principiologia, constitucionalização do direito e temas cone xos. Um tanto surpreso, observei que essa linguagem não se res tringia à teoria do direito e da Constituição, mas se espraiava na

dogmática jurídica e na prática jurisprudencial, sem limites .

Procurei ser atento à discussão. Passei a observar que, salvo algumas exceções , tratava-se, mais uma vez, de import ação acrítica de construções teóricas e dogmáticas, sem o crivo seletivo de uma recepção jurídico-constitucionalmente apropriada. Em grande par te, configurava-se a banalização de modelos principiológicos, de senvolvidos consistentemente no âmbito de experiências jurídi cas bem diversas da nossa. Por um lado, a invocação aos princípios (morais e jurídicos) apresentava-se como panaceia para solucio nar todos os males da nossa prática jurídica e constitucional. Por outro, a retórica principialista servia ao afastamento de regras cla ras e "completas", para encobrir decisões orientadas à satisfação de interesses particularistas. Assim, tanto os advogados idealistas quanto os astutamente estratégicos souberam utilizar-se exitosa mente da pompa dos princípios e da ponderação, cuja trivialização

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X • ENTRE HIDRA E HÉRCULES

emprestava a qualquer tese, mesmo as mais absurdas, um tom de respeitabilidade. Isso tudo, parece-me, em detrimento de uma concretização jurídica constitucionalmente consistente e social mente adequada.

Essa situação perdura até o presente. Um exemplo recente é o apelo - no julgamento da ADI 4.638/DF, em 02/02/2012 - à dig nidade da pessoa humana e à autoridade de Dworkin para jus tificar a manutenção de dispositivos da LOMAN que impu nham o julgamento secreto dos magistrados (Lei Complementar n? 35/1979, art. 27, §§ 2? e 6?, art. 45, art. 52, § 6?, arts. 54 e 55) em contraposição a regras constitucionais claras, introduzidas pela Emenda Constitucional n? 45/2004 (CF, art. 93, incisos LX e X). Outro exemplo, um tanto mais esdrúxulo e despropositado (o caso já estava sendo solucionado com base no art. 225, § 1?, inciso VII, da CF), é a invocação da dignidade da pessoa humana para caracterizar a inconstitucionalidade de lei estadual autorizadora da briga de galo, no julgamento da ADI 1.856/RJ, em 26/05/2011 (DJe 14/10/2011).

O presente trabalho não se propõe simplesmente uma "des mistificação" ou, para usar um termo em voga, uma "desconstru-ção" da teoria, da dogmática e da prática jurídicas e constitucio nais que, sob a rubrica do princípio, da ponderação, da otimização e de rótulos afins, passou a ser não apenas dominante, mas tam bém sufocante no Brasil da última década. Apesar de tomar como objeto de crítica o abuso de princípios em nossa doutrina e práti ca jurídico-constitucional, pretendo levar a sério os princípios constitucionais, apontando para a sua relação de complementari dade e tensão com as regras. Enfrentarei, nessa orientação, teo rias que, antes e hoje, servem de paradigma para a discussão em torno de princípios e regras jurídicas ou constitucionais, posicio-nando-me com espírito crítico em relação a elas, para oferecer um modelo teórico alternativo.

PREFÁCIO • XI

Após proferir algumas palestras sobre o tema e ter a preten são inicial de escrever um artigo sobre a questão, resolvi, enfim, por um projeto mais abrangente, a redação de uma monografia a respeito da temática, o que resultou no presente livro. Para a sua elaboração e publicação, contei com o apoio de algumas instituições e pessoas, cuja menção serve como registro de minha gratidão.

No final de junh o e início julho de 2010, realizei como visiting fellow pesquisas no Instituto Max Planck de Direito Público Com

parado e Direito Internacional, em Heidelberg, que foram decisi vas para o desenvolvimento e conclusão do trabalho; Mais uma vez pude desfrutar das excelentes condições de estudos oferecidas pelo Instituto e participar de debates frutíferos com colegas de diversas nacionalidades. Sou grato ao apoio inestimável que me foi dado, novamente, pelo Diretor do Instituto, Armin von Bogdandy, e seus colaboradores.

Na fase de levantamento de dados, Virgílio Afonso da Silva, apesar de minha manifesta divergência em relação às suas posições sobre a matéria, fez algumas indicações bibliográficas que me fo ram proveitosas. Durante o período de elaboração da monografia, os jovens juristas Régis Dudena, então realizando doutoramento em Frankfurt sobre o Meno, e Thaies Costa, então cursando dou torado em Paris, contribuíram com a indicação e o envio de textos doutrinários e jurisprudenciais relevantes. Na fase de revisão final para fins de publicação, o também jovem jurista André Rufino do Vale, ainda em fase preparatória para o doutorado em direito da UnB, sugeriu-me alguns artigos que me foram valiosos. A esses quatro colegas devo registrar aqui o meu voto de gratidão.

No levantamento de jurisprudência e na revisão de texto, Viní cius Poli, Pedro Henrique Ribeiro, Paulo Leonesi Maluf e Octavia no Padovese, então meus orientandos de mestrado, foram incon dicionais, realizando tarefas árduas e meticulosas. Para a redação

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XII . ENTRE HIDRA E HÉRCULES

final, que me parece bem-sucedida, a contribuição deles, junta mente com a de Helena Bittencourt, da WMF Martins Fontes, em esmerado trabalho de edição, foi significativa e torna-os merece dores do meu efusivo agradecimento.

Este livro, com algumas alterações, corresponde à tese que apresentei para o concurso de professor titular de direito público da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília, tendo sido defendida, com êxito, perante banca examinadora composta por José Afonso da Silva, Luís Roberto Barroso, Mizabel Derzi, Cle-merson Merlin Clève e Ivo Dantas, em 15 de março de 2011. Nesta data, tive a oportunidade de debater no mais alto nível com esses respeitáveis colegas, a quem agradeço pelos comentários e pelas críticas, que serviram para novas reflexões com vista a futuras in cursões sobre o tema.

Os últimos ajustes de revisão e edição deste livro foram rea lizados quando já me encontrava como professor titular da Facul dade de Direito da UnB, na qual ingressei em julho de 2011. A acolhida que recebi tanto do Reitor, José Geraldo de Souza Júnior, quanto da Diretora da Faculdade, Ana Frazão, assim como dos meus colegas e dos funcionários, tem servido de estímulo positi vo para o desenvolvimento de minhas atividades acadêmicas, in clusive nas tarefas finais referentes à presente publicação.

Neste trabalho, assim como em anteriores, traduzi os trechos em língua estrangeira para o nosso idioma. Sempre que possível e oportuno, indico, entre colchetes, as páginas correspondentes de traduções portuguesas ou de língua mais acessível ao leitor brasileiro (que estão referidas, também entre colchetes, na biblio grafia final), mas isso não significa que minha versão coincida com a adotada na tradução citada. Trata-se apenas de facilitar a even tual confrontação com o conteúdo da obra referida ou ulteriores pesquisas de leitores que não tenham acesso ao srcinal.

PREFÁCIO • XIII

Em alguns casos, após a menção da data da edição utilizada, refiro-me, entre colchetes, ao ano da primeira edição. Dessa ma neira, procuro oferecer ao leitor informações sobre o contexto histórico do surgimento da tese ou argumento a que se remete ou sobre a cronologia do desenvolvimento do respectivo modelo teó rico ou jurídico-dogmático.

Este trabalho foi elaborado e concluído com o estímulo inde lével de três pedaços de mim: Elvira, Bernardo e Renato. Daí a dedicatória!

Brasília, 27 de novembro de 2012 Marcelo Neves

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INTRODUÇÃO

Na narrativa mitológica, Hércules1, em seu segundo trabalho, en

tre os doze realizados a serviço do seu primo Euristeu, Rei de Micenas, enfrentou a Hidra de Lerna. A Hidra, que habitava um pântano próximo ao Lago de Lerna, na região da Argólida, era um animal monstruoso, com forma de serpente e muitas cabe ças2, às vezes humanas, cujo hálito era mortífero para quem dela

se aproximasse. A Hidra também destruía rebanhos e colheitas. Hércules a enfrentou com flechas flamejantes ou, conforme uma variante da lenda, com uma espada curta, cortando-lhe as ca beças. A dificuldade em levar a cabo sua tarefa decorria de que as cabeças se regeneravam à medida que eram decepadas. Para superar essa dificuldade, Hércules recorreu à ajuda de seu sobri nho Iolau, pedindo-lhe que incendiasse uma floresta vizinha e trouxesse tições para cauterizar os pontos em que se cortavam as cabeças. Então, a cada cabeça que Hércules decepava, Iolau apli cava tições no ferimento da Hidra. Essa cauterização impedia que 1 Hércules, na mitologia romana, corresponde a Heracles (ou Heracles) na mitolo

gia grega.

1 As fontes variam quanto ao número (de cinco ou seis até cem, conforme Grimal,

1951, p. 191 [trad. bras. 2005, p. 209]; Kury, 2003, p. 183). Venit (1989, pp. 102 e 104) refere-se a nove.

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XVI • ENTRE HIDRA E HÉRCULES

houvesse a regeneração ou renascimento de cabeça(s) no locai do corte. Por fim, com a ajuda de Iolau, Hércules decepou a princi pal cabeça, que se apresentava como imortal, e esmagou-a com um enorme rochedo, enterrando-a sob este. Dessa maneira, a Hi dra foi morta, e Hércules cumpriu o seu segundo trabalho3.

A expressão metafòrica que utilizamos no título, Entre Hidra e Hércules, remetendo à mitologia grega, destina-se a fixar um ponto de partida que orientará a minha abordagem. Inverto a perspectiva dominante sobre princípios e regras, que remonta a Ronald Dworkin. De acordo com essa perspectiva, o juiz Hércules, um ideal regulativo, é aquele capaz de identificar os princípios adequados à solução do caso, possibilitando a única resposta cor reta ou, no mínimo, o melhor julgamento4. Nesses termos,

pode--se dizer também que os princípios são hercúleos. Sabepode--se que a tese de Dworkin surgiu como crítica ao positivismo analítico de Hart, segundo o qual o ordenamento jurídico, conjunto formado por regras primárias de conduta e regras secundárias de organi zação, deixa ao juiz um campo de discricionariedade, dentro do qual a escolha por uma das alternativas oferecidas não é suscetí vel de um enquadramento em regras, o que implicaria a "textura aberta do direito"5. Para Dworkin, nas situações em que o caso não

3 Cf. Grimal, 1951, pp. 187-203 (espec. pp. 191-2), 215 e 232 [trad. bras. 2005,

pp. 205-21 (espec. p. 209), 227 e 252]; Kury, 2003, pp. 180-7, espec. pp. 183,192-3 e 197; Venit, 1989.

4 Dworkin, 1991a [1977],pp. 105 ss. e 27 9 ss. [trad. bras. 20 02,p p. 165 ss. e429 ss.];

1991b [1986], espec. pp. 239 ss. e 380-1 [trad. br as. 2003, espec. pp. 286 ss. e 454-5]; 1985, pp. 119 ss . [trad. bras. 2001, p p. 175 ss.]; 2010, pp. 60-3 e 78 ss. Voltarei a essa questão no Cap. II.2.

5 Hart, 1994, pp. 91 ss., 124 ss., 145 -7 e 272 ss. [trad. bras. 2009, pp. 118 ss., 161 ss.,

187-90 e 351 ss.]; Dworkin, 1991a [1977 ], pp. 16 ss. e 46 ss. [trad. bras. 2002, pp. 27 ss. e 74 ss.]. A noção hartiana de "textura aberta do direito" é anàloga, embora parta de outros pressupostos teóricos e metodológicos, à concepção kelseniana de "direto a aplicar como uma moldura dentro da qual há várias possibilidades de aplicação" (Kelsen, i960, pp. 348-9 [trad. bras. 2006, pp. 390-1]).

INTRODUÇÃO • XVII pode ser solucionado por regras, devem incidir os principios ju rídicos, fundados moralmente, que impediriam todo e qualquer espaço ou poder discricionário para o juiz Hércules6.

Em nossa formulação, ao contrário, os princípios têm o cará ter de Hidra, enquanto as regras são hercúleas. Essa questão não diz respeito à existência ou não de discricionariedade, tema ao qual retornaremos no correr desta tese. Ela relaciona-se à flexibi lização que os princípios ensejam ao sistema jurídico, ao ampliarem as possibilidades da argumentação. Conforme essa compreensão, os princípios atuam como estímulos à construção de argumentos que possam servir a soluções satisfatórias de casos, sem que estas se reduzam a opções discricionárias. Tendo em vista a sua plura lidade ou, metaforicamente, o seu caráter policéfalo, eles enrique cem o processo argumentativo entre os envolvidos (juízes e par tes ou interessados), abrindo-o para uma diversidade de pontos de partida. Observadores, em perspectivas diversas, motivam-se, mediante a provocação dos princípios, a tomar parte ativa na praxis

6 Não se trata, na linguagem de Dworkin, de pode r discricionário em sentido fraco,

mas sim em sentido forte: "Algum as vezes empregamos poder discricioná rio' em um sentido fraco, apenas para dizer que, por alguma razão, os padrões que uma autoridade pública deve aplicar não podem ser aplicados mecanicamente, mas exi gem o uso da capa cidade de julgar. [...] Às vezes usamos a expressão em um se gun do sentido fraco, apenas para dizer que algum funcionário público tem a autorida de para tomar uma decisão em última instância e que esta não pode ser revista e cancelada por nenhum outro funcionário. [...] Chamo esses dois sentidos de fracos para diferenciá-los de um sentido mais forte. Às vezes usamos 'poder discricionário' não apenas para dizer que um funcionário público deve usar seu discernimento na aplicação dos padrões que foram estabelecidos para ele pela autoridade ou para afirmar que ninguém irá rever aquele exercício de juízo, mas para dizer que, em certos assuntos, ele não está limitado pelos padrões da autoridade em questão". É nesse sentido estrito que Dworkin critica a "doutrina positivista do poder discri cionário do juiz", definida por ele nos seguintes termos: "Essa doutrina argumenta que se um caso não for regido por uma regra estabelecida, o juiz deve decidi-lo exercendo seu poder discricionário". Mas ele não deixa de advertir: "O sentido for te de poder discricionário não é equivalente à licenciosidade e não exclui a crítica" (Dworkin, 1991a [1977], pp. 31-4 [trad. bras. 2002, pp. 51-â]).

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XVIÍI • ENTRE HIDRA E HÉRCULES

argumentativa dirigida a fundamentar juridicamente a solução de um problema jurídico. Nesse sentido, na sociedade complexa de hoje, os princípios estimulam a expressão do dissenso em tor no de questões jurídicas e, ao mesmo tempo, servem à legitima

ção procedimental mediante a absorção do dissenso 7.

Mas os princípios, por si sós, não solucionam os casos a que se pretende aplicá-los. A solução de casos jurídicos, no Estado de direito, d epen de de regras . Se o caso é "r otinei ro" ou "fácil", é cla ro que isso não traz maiores dificuldades, pois a cadeia argumenta tiva reduz-se praticamente à delimitação semântica do sentido de dispositivos e à subsequente subsunção do caso à regra. A ques tão toma maior significado quando se considera a relação entre regras e princípios relevantes à solução do caso. Nessa hipótese, as regras, embora sejam balizadas ou mesmo construídas a partir de princípios, servem à domesticação desses, viabilizando, em ca ráter definitivo, o fechamento da cadeia argumentativa que con torn a a interpretação e aplicaç ão concreta do direito. É nesse sen tido que as regras são hercúleas . Enqua nto os princípios abrem o processo de concretização jurídica, instigando, à maneira de Hidra, problemas argumentativos, as regras tendem a fechá-lo, absor vendo a incerteza que caracteriza o início do procedimento de aplicação normativa. A incerteza é qualificada, e a complexidade torna-se relativamente estruturada (ou estruturável) por força dos princípios jurídicos, pois eles dão certos contornos e pontos de referência - ancorados em expectativas normativas presentes na sociedade e nos diretamente envolvidos no processo - à discussão travada na busca de solução do caso, mas só as regras viabilizam

a transformação da incerteza do ponto de pa rtida à certeza obtida

7 Cf. Neves, 2006, pp. 136 ss.

INTRODUÇÃO • S I X

com a decisão8. Só as regras levam à redução de complexidade ou

à seleção suscetível de determinar a solução do caso. Essas observações nã o devem im pedir que se veja o reverso da medalha. As regras, na sua vinculação mais direta à situação con creta, são pouco adequadas a absorver a alta complexidade dos

chamados "casos difíceis"9. Diante do grau reduzido de flexibili

dade, de sua tendência ao rigor hercúleo, impõe-se às regras o ba lizamento por princípios, para que se enfrente a alta complexidade dos problemas a serem resolvidos. Pode-se dizer que, no proces so de concretização normativa, enquanto os princípios jurídicos transformam a complexidade desestruturada do ambiente do siste ma jurídico (valores, representações morais, ideologias, modelos de eficiência etc.) em complexidade estruturável do ponto de vista normativo-jurídico, as regras jurídicas reduzem seletivamente a complexidade já estruturável por força dos princípios, converten-do-a em complexidade juridicamente estruturada, apta a viabilizar a solução do caso. São dois poios normativ os fundamentais no pro cesso de concretização jurídica, cada um deles se realimentando circularmente na cadeia argumentativa orientada à decisão do caso. Não há hierarquia linear entre eles. Por um lado, as regras dependem do balizamento ou construção a partir de princípios. 8 É claro que a certeza só se alcança com a "norma de decisão" do caso (no sent ido de Müller, F., 1994, espec. p. 264; 1990a, espec. p. 48), que, em geral, mas nem sem  pre, é uma norma individual e concreta no sentido de Kelsen (Kelsen, i960, espec. pp. 20, 85, 242 e 265 [trad. bras. 2006, pp. 21 ,90-1 , 263 e 289]; 1945 , pp. 37-8 e 134 ss. [trad. bras. 2005, pp. 53-4 e 195 ss.). Mas a incerteza é reaberta no plano da mera execução, pois cabe ainda interpretar o texto da decisão judicial concreta. O pro blema ganha, então, outro s contorno s, que vão além dos limite s do presente estudo. 9 Ver, em perspectivas dive rsas, Dworkin , 1991a, pp. 81-130 [trad. bras. 2002, pp. 127-203], disti nguindo -os dos "casos fác eis"; Aarnio, 1987, pp. 1 ss. [trad. esp. 1991, pp. 23 ss.], diferençando-os dos "casos de rotina". Carrió (1986, pp. 55-61) distingue analogamente entre "casos marginais" e "casos típicos". O próprio Dworkin (1991b [1986], p. 354 [trad. bras. 2003, pp. 423-4]) relativiza a diferença entre casos difíceis e fáceis, ao considerar as variáveis pessoai s e temp orais.

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XX • ENTRE HIDRA E HÉRCULES

Por outro, estes só ganham significado prático se encontram cor respondência em regras que lhes deem densidade e relevância para a solução do caso. Essa relação não é harmônica. E uma relação paradoxal, como veremos especialmente no decorrer do terceiro capítulo. Analogamente à relação entre Hidra e Hércules no episó dio mitológico, os princípios e regras relacionam-se de uma manei ra um tanto conflituosa. Por um lado, a tendência a superestimar os princípios em detrimento das regras torna altíssimo o grau de in certeza e pode descambar em insegurança incontrolável, relaciona da à própria quebra da consistência do sistema jurídico e, pois, à destruição de suas fronteiras operativas. Por outro, a tendência a superestimar as regras em detrimento dos princípios torna o siste ma excessivamente rígido para enfrentar problemas sociais comple xos, em nome de uma consistência incompatível com a adequação social do direito. Portanto, trata-se, na relação entre princípios e re gras, de superar (ou "desparadoxizar"), em cada caso concreto, no plano argumentativo, o paradoxo entre consistência jurídica e ade quação social, que, em termos gerais, constitui o paradoxo da justiça como "fórmula de contingência do sistema jurídico"10.

Nesta introdução, cabe enfatizar que a discussão terá um foco específico, cabendo alguns esclarecimentos prévios. Em pri meiro lugar, deve-se observar que a expressão "princípios" é am bígua e vaga11. Muitas vezes, incorrendo em "falácias de

ambigui-10 Luhmann, 1993, pp. 214 ss.

11 Sobre os diversos empregos, na tradição filosófica, do ponto de vista da existên

cia, do ponto de vista lógico e no sentido normativo, cf. Lalande, 1992, pp. 827-9 [trad. bras. 1999, pp. 860-2], que cita um sugestivo trecho de Condillac: "Princípio é sinônimo de começo; e foi de início utilizado com esta significação; mas, em se guida, por força do uso, foi utilizado maquinalmente, por hábito e sem se lhe atri buir ideias" (1992, p. 827 [trad. bras. 1999, p. 860] - na trad. bras, da própria obra de Condillac, 1979, p. 115, a versão deste trec ho é mais livre). A respeito do s diver sos sentidos de "princípio" em geral e de "princípio jurídico" em especial, ver Gar rió, 1970, pp. 32 ss.; cf . tamb ém Atienza e Mañero , 1998, pp. 3-4.

INTRODUÇÃO • XXI dade"12, discutimos de forma disparatada, em torno de um mesmo

termo ou expressão, como se estivéssemos tratando do mes mo conceito. É claro que há termos e expressões que, por si sós, dispõem de uma força sedutora tão enorme, que o simples invo cá-los serve à legitimação retórica daquele que o emprega, indepen dentemente do significado que se lhe venha a atribuir. O termo "princípios", assim como o vocábulo "Constituição" ganhou esse perfil13. Por sua vez, é evidente que toda discussão conceituai im

plica a necessidade de delimitação semântica dos termos respec tivos, o que já torna o problema um tanto circular. Éfundamen-tal, porém, que as questões conceituais e de definição de termos ou expressões sejam tratadas tendo em vista o problema teórico ou prático que se pretende enfrentar e solucionar. É nesse sentido que pretendo fazer uma delimitação conceituai preliminar, para es pecificar o problema com o qual me proponho a confrontar.

Na filosofia clássica, os princípios referem-se a pontos de par tida, fundamento ou "causa" de um processo qualquer. Remon tando a Anaximandro e passando por Platão, essa noção de prin cípio é considerada de maneira abrangente por Aristóteles, que enumera vários significados de princípios, para concluir: "É uma propriedade comum [...] a todos os princípios ser a primeira coi sa a partir da qual algo existe, vem a ser ou se torna conhecido."14

Na filosofia moderna, Kant, ao tratar da "razão em geral", aponta para a ambiguidade da expressão "princípio": ora ela se refere a "toda proposição geral, mesmo tirada da experiência (por indu ção)", que possa "servir como premissa maior em um silogismo"; ora, à noção do que sejam "absolutamente princípios" ou "princí pios do entendimento puro em si", puramente racionais (apriori), 12 Copi, 1961, pp. 73 ss. [trad. bras. X978, pp. 91 ss.].

13 A re speito de "Constituição", ver Neves, 2009, pp. 1-6. 14 Aristóteles, 2003, p. 211 - Livro V, 1.3 .

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XXII . ENTRE HIDRA E HÉRCULES

aos quais Kant alude quando define a razão como "a faculdade da unidade das regras do entendimento sob princípios"15. Já no âm

bito da filosofia moral, o termo "princípio" é utilizado por Kant para distinguir entre uma "máxima" como princípio subjetivo do querer ou da ação e a "lei" prática (moral) como princípio objetivo do querer ou da ação, válido para todos os seres racionais, "se a razão fosse inteiramente senhora da faculdade de desejar"16. Nes

ses termos, a "máxima" contém a regra de acordo com a qual o sujeito age dentro de suas condições e a "lei" é o princípio objetivo conforme o qual o sujeito racional deve agir 17 .

Nas ciências modernas, nas quais perdeu sua força, o conceito de princípios também foi utilizado para indicar premissas básicas de um determinado campo do saber. No âmbito das ciências na turais, isso apontava para certas proposições empíricas que, por meio de convenções (cômodas, úteis), são subtraídas ao controle da experiência, segundo pontuava Poincaré18. No âmbito da mate

mática, os princípios foram considerados, em geral, como premis sas de uma demonstração e foram substituídos conceitualmente pelos axiomas e postulados19.

De certa maneira, todos esses conceitos alastraram-se nas di versas esferas da teoria e da prática, de forma um tanto imprecisa. Procura-se com o termo "princípios", frequentemente, apontar para premissas básicas de um domínio qualquer do conhecimento ou

15 Kant, 1990 [1781], pp. 312-4 [trad. bras. 1980, pp. 180-1].

16 Kant, 1965 [1785], pp. 19 e 42 [trad. port, i960, pp. 26 e 56]. O princípio objetivo

ou a lei prática relaciona-se ao imperativo categórico em Kant (1965 [1785], pp. 20, 37 e 42-3 [trad. port, i960, pp. 27-8, 50 e 56-7]).

17 Kant, 1965 [1785] , p. 42 [trad. port, i960, p. 56].

18 Poincaré, 2007 [1905], pp. 131-3. Mas Poincaré advertia que, "se um princípio

cessa de ser fecundo, a experiência, sem contradizê-lo diretamente, contudo o terá condenado" (p. 132).

19 Abbagnano, 1982, p. 760.

INTRODUÇÃO - XXIII do mundo social em geral, assim como se pretende recorrer a normas morais últimas, universais. Enfim, é comum referir-se ao caráter ordenador e unificador dos princípios para um sistema ou ordem determinados, destacadamente para o direito20. No pre

sente trabalho, não invocarei "princípios" em nenhum desses sen tidos afins. Em vez de usar o vago termo "princípios" para me re ferir a essa ampla família conceituai, cabe falar, conforme o caso, de premissas ou pontos de partida de um processo ou cadeia ar gumentativa, de postulados de uma área de saber, de leis básicas da lógica, de pretensas normas pressupostas ou fundamentais no âmbito do direito ou da moral, ou de código-diferença orientador da reprodução de um sistema de comunicações.

Mas também a utilização abrangente do conceito de princí pios no âmbito jurídico, nos termos da discussão em torno dos "princípios gerais do direito", não se encontra no primeiro plano deste trabalho. Em primeiro lugar, essa discussão tem um caráter filosófico, nela distínguindo-se os que sustentam a srcem jusna-turalista e os que defendem a srcem jurídico-positiva dos prin cípios gerais do direito21. Essa discussão toma um contorno mais

específico no contexto da teoria geral do direito, ao se analisar a questão do preenchimento das lacunas, em relação à qual se dis cute se os princípios gerais do direito tornam-se válidos median te autointegração ou heterointegração. Nesse particular, a própria Lei de Introdução ao Código Civil determina que o juiz, além de poder recorrer à analogia e aos costumes, decida de acordo com os princípios gerais do direito quando a lei for omissa22. A tese da

heterointegração sustenta que os princípios gerais do direito são

20 Cf. Pascua, 1996, p. il. 21 Cf. Pascua, 1996, pp. 11 ss.

22 "Art. 4? Qua ndo a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia,

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XXIV - ENTRE HIDRA E HERCULES

suprapositivos; a tese da autointegração afirma que os princípios gerais do direito pertencem ao respectivo ordenamento positivo, sendo induzidos do conjunto de normas do direito mediante a atividade hermenêutica23. Como há uma via de recepção interna

prevista expressamente em lei, não me parece relevante essa dis cussão no caso brasileiro. A rigor, os chamados "princípios gerais do direito", aos quais se faz referência na legislação e na jurispru dência de diversas ordens jurídicas, são máximas que se consoli daram na tradição jurídica ocidental, especialmente a partir do direito romano, algumas constituindo rigorosamente princípios, outras configurando típicas regras. Nas hipóteses de omissão ou lacuna da lei, elas são recepcionadas pelo sistema jurídico me diante heterointegração na situação concreta, ou já se encontram expressa ou implicitamente na ordem jurídica, tratando-se ape nas de autoitengração para a solução do caso. É claro que tam bém cabe falar de recurso a essas máximas no plano da Constitui ção, em caso de lacuna das disposições constitucionais, mas essa questão é secundária para o tema a ser enfrentado nesta tese.

No presente trabalho, o foco da atenção é a relação entre prin cípios e regras constitucionais. Os critérios morais e valorativos serão considerados enquanto estiverem incorporados ao ordena mento jurídico por via desses dois tipos de normas constitucio nais. Os princípios e regras infraconstitucionais só serão levados em conta quando sua compreensão, interpretação ou aplicação lançarem luz ou servirem à interpretação ou aplicação dos prin cípios e regras constitucionais.

Além do mais, inclusive no âmbito específico de debate em torno da relação entre princípios e regras constitucionais, esta

23 Cf., respectivamente, Bobbio, i960, pp. 179-84; Betti, 1949, pp. 51-2 e 205 ss.

[trad. bras. 2007, pp. 68 e 261 ss.].

INTRODUÇÃO - XXV tese não tem a pretensão de esgotar o tema, muito menos o obje tivo de oferecer uma enciclopédia sobre este. Antes, ela concen-trar-se-á criticamente no debate jurídico-constitucional que se desenvolve desde os anos 1970 do século XX sobre princípios e regras constitucionais, particularmente sob o impacto das obras de Ronald Dworkin e Robert Alexy, para, a partir daí, oferecer um modelo alternativo e apontar para os limites e equívocos da recepção da principiologia jurídica na doutrina e prática consti tucional brasileira.

No Capítulo I, farei uma breve análise das principais correntes que se manifestaram sobre a questão dos princípios e regras antes da explosão da principiologia constitucional. Nessa altura, a teo ria geral pouco se distinguirá da concepção constitucional dos princípios e regras.No Capítulo II, analisarei inicialmente os pressupostos filo sóficos do modelo dominante dos princípios e regras constitucio nais. Em seguida, adentrarei na análise desse modelo, consideran do especialmente duas de suas vertentes, que se desenvolvem a partir das obras de Dworkin e Aìexy.

No Capítulo III, oferecerei um modelo para a distinção entre princípios e regras constitucionais, enfatizando tratar-se de uma diferença jurídico-dogmática que emerge com o constitucionalis mo moderno. Nesse contexto, os princípios serão definidos como mecanismos reflexivos em relação às regras e analisar-se-á a rela ção circular entre estas e aqueles. Também examinarei a atuação dos princípios e regras no processo de concretização constitucio nal, assim como apontarei para a exigência de uma principiologia constitucional adequada à complexidade da sociedade contem porânea, inclusive sob o impulso do transconstitucionalismo.

No Capítulo IV, farei uma crítica ao uso e abuso de princípios na doutrina e prática constitucional brasileira. Inicialmente, será

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XXVI • ENTRE HIDRA E HERCULES

considerado o problema do fascínio doutrinário pela principioio-gia, apontando-se para equívocos teóricos e dogmáticos. Por fim, farei urn comentário crítico à prática constitucional confusa em torno dos princípios, considerando alguns casos julgados pelo Supremo Tribunal Federal e um processo em andamento perante essa Corte.

Nas observações finais, retomarei a metáfora expressa no tí tulo, para considerar que tipo de juiz é o mais preparado para enfrentar e superar, em cada caso concreto, o paradoxo da relação entre princípios e regras: o juiz Hércules ou o juiz Hidra? Ne nhum dos dois!

CAPITULO I

DOS MODELOS JÁ CLÁSSICOS DE DISTINÇÃO ENTRE PRINCÍPIOS E REGRAS JURÍDICAS...

i. A norma eníre o texto normativo e o fato jurídico Ao discutir-se a distinção entre princípios e regras, tanto no plano da teoria geral do direito quanto da dogmática constitucio nal, o debate dirige-se à caracterização de tipos normativos, in clusive para averiguar se ambas as categorias estão abrangidas pelo conceito de norma. Portanto, o primeiro passo é afastar a confusão entre texto normativo e norma. Também se pode utili zar os termos "formulação da norma"1, "disposição normativa"

ou "enunciado normativo"2, para distinguir a forma linguística

mediante a qual uma norma se expressa no plano do direito posi tivo, particularmente o direito escrito. Para esse fim, utilizarei as locuções "texto normativo" em geral ou "disposição normativa" 1 Aarnio, 1990, pp. 181-2 [trad. esp. 1997a, p. 19]; 1997b, pp. 144-5; Canotiiho,

1998, pp. 1075-â; Schauer, 1991, pp. 62-4, distinguindo regra e formulação de regra.

2 Cf. Alexy, 1986, pp. 54 ss. [trad. bras. 2008, pp. 66 ss.], distinguindo disposição de

direito fundamental e norma de direito fundamental; Canotiiho, 1998, pp. 1077--80; Guastini, 2005, pp. 24 ss., confundindo, porém, os níveis do significante e do significado, ao chamar "'texto normativo' qualquer documento elaborado por uma autoridade normativa" (p. 24) e, ao mesmo tempo, definir disposição e norma nos seguintes termos: "a disposição é (parte de) um texto ainda por ser interpretado; a norma é (parte de) um texto interpretado" (p. 26). Portanto, a rigor, em sua termi nologia, ele não distingue precisamente entre texto e norma.

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2 • ENTRE HIDRA E HÉRCULES

(também "dispositivo normativo") em especial3, deixando o ter

mo "enunciado" normativo para me referir à expressão linguísti ca de uma proposição interpretativa ou jurídico-dogmática que pretende descrever ou determinar o conteúdo semântico da nor ma4. (Suplementarmente, cabe empregar a expressão "enunciado

normativo", em vez de disposição ou dispositivo normativo, para referir à asserção de norma atribuída indiretamente ao texto legal ou constitucional pelo encarregado da interpretação-aplicação juridicamente vinculante.) Trata-se aqui de distinguir entre os pla nos do significante e do significado5. A conexão entre ambos im

plica uma relação semântica de significação ou, de maneira mais abrangente, de dação de sentido no processo de comunicação. Mas, em nosso contexto, essa relação não se apresenta apenas en tre dois poios, o da disposição e o da norma. Configura-se, no mínimo, um processo quadriangular entre disposição normativa, norma, enunciado normativo e proposição normativa. Diante de

3 Sobre a distinção entre texto normativo e norma, ver, entre muitos, Müller, F.,

1994, espec. pp. 147-67 e 234-40; 1995, pp. 122 ss.; 1990 a, pp. 126 ss.; 1990b, espec. pp. 20; Christensen, 1989, pp. 78 ss.; Jeand'Heur, 1989, espec. pp. 22-3; Grau, 2009, espec. pp. 84-6; Carvalho , P. B., 2008, pp. 126-31; Tareilo, 1980, pp. 101 ss., distin guindo as normas dos documentos normativos.

4 Aarnio, ao distinguir entre interpretação em sentido amplo, que se refere aos

diversos significados possíveis de uma disposição normativa ("formulação de nor ma"), e interpretação em sentido estrito, que seleciona um ou mais significados entre essas alternativas, emprega o termo "enunciado interpretativo" apenas nesse último sentido (Aarnio, 1990, p. 182 [trad. esp. 1997a, p. 19]).

5 A distinção entre significante e significado, como duas dimensões do signo, re

monta a Saussure (1922, pp. 97-100 [trad. bras, s.d., pp. 78-91]; cf. Barthes, 1964, pp. 103-9 [trad. bras, s.d., pp. 39-51]; Eco, 1975, pp. 25-6 [trad. bras. 1980, pp. 9-10]). Essa diferença foi recepcionada, com as devidas adaptações, a modelos teóricos os mais diversos. Cf., p. ex., Lévi-Strauss, 1973 [1950], pp. XLIX-L [trad, bras. 1974, pp. 33-5], referindo-se à descontinuidade entre significan te e significa do, à superabundância dos significantes e aos significantes flutuantes; Lacan, 1966, pp. 372 e 501-2, apontando para a "discordância entre o significado e 0 significante" e para o caráter fechado da ordem/cadeia significante e sua autonomia em relação ao significado.

DOS MODELOS JÁ CLÁSSICOS • 3 uma disposição normativa, cabe indagar qual(is) a(s) norma(s) ou o(s) significado(s) normativo(s) lhe pode(m) ou deve(m) ser atribuído(s). Mediante o enunciado normativo (ou interpretativo) atribui(em)-se determinado(s) significado(s) normativo(s) ou norma(s) à disposição normativa. Entretanto, novamente, podem--se indagar quais significados normativos ou normas foram atri buídos à disposição por meio do enunciado normativo (ou inter pretativo), ou seja, qual proposição normativa (interpretativa) foi expressa através deste6. Essa situação não é linear, na forma de

metalinguagem e linguagem-objeto7, implicando antes uma cir

cularidade na cadeia de dação do sentido comunicativamente processado.

Além do significante e do significado, são relevantes, no plano semântico, os referentes, que não são dados reais últimos (cuja

exis-6 Kelsen distingue entre a proposição jurídica e a norma jurídica (prescritiva), sen

do aquela descritiva desta (Kelsen, 1960, pp. 73-9 [trad. bras. 2006, pp. 80-4]). Define, porém, a proposição jurídica [Rechtssatz] ou de dever-ser (Soll-Satz) em geral como enunciado descritivo [beschreibende Aussage] (cf. Kelsen, i960, pp. 73 e 81-3 [trad. bras. 2006, pp. 81 e 88-9]). Neste trabalho, distinguimos, no plano dos significantes, corre spondentemente, entre enunciado normativo (= enunciado da proposição normativa) e disposição normativa (ou texto da norma). Na tradução de sua obra publicada srcinariamente em inglês, sob o título Teoria Geral do Di reito e do Estado, o termo "Rechtssatz" (proposição jurídica) foi traduzido desas trosamente pela expressão rule of law, que, por sua vez; foi vertida, disparatada mente, em "regra de direito" na tradução brasileira (Kelsen, 1945, pp. 45-7 [trad, bras. 2005, pp. 62-6]). Bobbio (1958, pp. 75-8 [trad. bras. 2005, pp. 72-4]), por seu turno, define a norma como proposição (um juízo), distinguind o-a do enunciado ("forma gramatical e linguística pela qual um determinado significado é expres so") - que chamo de disposição -, mas é confuso, ao referir-se à proposição como um "conjunto de palavras" e, portanto, incluí-la também no plano do significante (1958, p. 76 [trad. bras. 2005, p. 73]).

7 No sentido da teoria dos tipos de Russell, 1994 [1908], pp. 75-80. Cf. também

Carnap, 1948, pp. 3-4; Barthes, 1964, pp. 130-2 [trad. bras, s.d., pp. 96-9]. Em po sição crítica, Hofstadter (1979, pp. 21 ss. [trad. bras. 2001, pp. 23 ss.]) sustenta que a teoria dos tipos pretende banir "as voltas estranhas" e os paradoxos do interior da linguagem, levando à hierarquização entre linguagem-objeto e metalinguagem. Voltarei a esse tema (ver infra pp. 119-20).

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4 • ENTRE HIDRA E HERCULES

tência apenas se supõe no processo comunicativo), mas sim fatos e objetos construídos na linguagem, ou meihor, na comunicação. Dessa maneira apresenta-se, de um lado, a relação entre texto ju-rídico-normativo (significante) e norma jurídica (significado), de outro, a relação entre esta e o fato jurídico (referente), inter mediada sobretudo pela hipótese normativa do fato irradiador dos efeitos concretos da norma (hipótese de incidência, tipo, an tecedente etc) .

Aqui cabe um esclarecimento para se evitarem equívocos pos teriores. Não se deve confundir o suporte fatico no sentido domi nante em Pontes de Miranda com o Tatbestand no sentido que predomina na linguagem jurídica e dogmática alemã. O Tatbe stand é o tipo, a hipótese de incidência ou, como prefiro, a hipó tese normativa do fato irradiador dos efeitos concretos da norma (que chamarei simplificadamente de hipótese normativa do fato ou apenas hipótese normativa8). O suporte fatico em Pontes de

Miranda é a dimensão do real sobre a qual a norma incide e, com isso, transforma-se em fato jurídico9. Excepcionalmente, Pontes

de Miranda refere-se a "suporte fáctico (abstrato)"10 e pretende,

desse modo, referir-se à hipótese normativa do fato. Parece, por tanto, que, quando menciona o suporte fatico como "Tatbestand" 11 , 8 Outra opção seria usar a expressão "hipótese fáctica" (Vilanova, 1985, p. 137),

mas, enfim, trata-se de uma hipótese normativamente construída, não do antece dente de uma proposição cognitiva.

9 Conforme enfatiza Pontes de Miranda, "o suporte fáctico ainda está no mundo

fáctico; a regra jurídica colore-o, fazendo-o entrar no mundo jurídico" (1974,1.1, p. 21, grifo no srcinal; cf. ibidem, pp. 3 ss. e 74 ss.). Dai por que ocorre a mùltipla incidência, ou seja, a incidência de várias regras jurídicas sobre o mesmo suporte fáctico, embora dela resultem fatos jurídicos diversos {ibidem, p. 27), pois as res pectivas regras contêm diferentes hipóteses normativas do fato.

10 Em contraposição ao "suporte fáctico (concreto)" (Pontes de Miranda, 1974, p. 4). 11 Pontes de Miranda, 1974,1.1, pp. 4 e 19. Esses trechos - parece-me - levaram

Virgílio Afonso da Silva a traduzir "Tatbestand" por suporte fatico, na sua versão de Alexy, 1986, pp. 272 ss. [trad. bras. 2008, pp. 301 ss.], para o português. Mantém essa terminologia em seus trabalhos: Silva, V. A., 2009, pp. 67 ss.; 2006, pp. 31-5.

DOS MODELOS JÁ CLÁSSICOS • 5

está a referir-se ao suporte fatico abstrato. Mas cabe ponderar que, na linguagem jurídica alemã, no âmbito processual, o Tatbestand é também tratado como as circunstâncias reais que correspon dem à hipótese normativa do fato (sinônimo de Sachverhalt), es tando associado, portanto, à noção de suporte fatico concreto12.

Como a expressão "suporte fatico" se refere predominantemente, sobretudo por força do nosso vernáculo, à realidade subjacente ao fato jurídico, mesmo quando consideramos esta como cons truída seletivamente no processo de incidência da norma13, utili

zarei essa expressão apenas para referir ao chamado "suporte fác tico concreto". E, em vez de "suporte fatico abstrato", empregarei a locução "hipótese normativa do fato" para me referir ao pressu posto abstrato da incidência da norma.

A questão dos princípios e regras situa-se no plano da norma (do significado), entre os planos do texto normativo (significante) e do fato jurídico (referente). Contado, evidentemente, os proble mas relativos às disposições normativas e aos referentes factuais 12 "Sachverhalt é o acontecimento fatico específico na realidade da vida. O

Sachverhalt juridicamente relevante é objeto da aplicação jurídica. Nela verificam--se quais efeitos jurídicos (concretos) o Sachverhalt acarreta com base nas respecti vas normas jurídicas abstratas. No direito processual, o Sachverhalt é designado frequentemente como Tatbestand (p. ex., § 313 I Nr. 5 ZPO [Código de Processo Civil alemão]), embora a metodologia jurídica compreenda este como a soma dos pressupostos abstratos de um efeito jurídico abstrato" (Köbler, 2003, p. 403). Em outro trecho do mesmo dicionário (p. 456), afirma-se que, no direito processual (citando o mencionado dispositivo do ZPO), o Tatbestand é a "descrição concisa" do Sachverhalt, mas também aqui se refere à situação concreta. Portanto, também essa ambiguidade pode levar à tradução de Tatbestand (na acepção do direito pro cessual alemão) por suporte fáctico (concreto) no sentido de Pontes de Miranda.

13 Pontes de Miranda (1974, t. V, p. 231) distingue o suporte fatico do "dado fáctico,

fato ou complexo de fatos sem entrada no mundo jurídico". Esclareça-se que, em bora utilize aqui o conceito no sentido análogo ao de Pontes de Miranda, considero o suporte fatico como referente (construído) de relatos no processo de concretiza ção, que, quando qualificado juridicamente mediante a afirmação da incidência da respectiva norma jurídica nesse processo, transforma-se em fato jurídico, a saber, no referente (construído) de um enunciado implícito ou explícito de subsunção.

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6•ENTRE HIDRA E HERCULES

têm um papel fundamental em relação a ela. A esse respeito, cabe considerar o problema da ambiguidade (na conotação) e vagueza (na denotação) do texto normativo14. A primeira significa que as

disposições, em particular as constitucionais, não são unívocas, ou seja, ao menos prima facie, podem ser-lhes atribuídos mais de um significado. Isso significa a possibilidade de que mais de uma norma possa ser "extraída" de uma mesma disposição normativa ou, mais precisamente, atribuída a esta. Por sua vez, a vagueza refere-se à imprecisão em definir quais são os referentes da nor ma, ou seja, a indeterminação dos limites do âmbito dos fatos jurídicos e respectivos efeitos jurídicos que estão previstos na

disposição normativa e, pois, na norma. Às vezes, superada a am biguidade (determinou-se o significado da disposição norma tiva e, portanto, já se definiu a norma a aplicar), ainda assim surgem problemas de vagueza, tendo em vista a dificuldade de determinar quais os fatos que se enquadram na respectiva nor ma. Dessa maneira, por exemplo, mesmo que seja delimitado cla ramente o sentido de "pluralismo político" nos termos do art. i?, inciso V, da Constituição Federal, persistirá a dificuldade em de terminar quais as situações fáticas em que um partido extremis ta deve ser considerado uma ameaça ou um perigo para o plura lismo jurídico. Precisa-se, portanto, de uma "interpretação dos fatos"15 para que se supere a vagueza para o caso concreto e a nor

ma possa ser aplicada.

14 No sentido lógico, a conotação cor responde à dime nsão semântica de sentido

(significado), a denotação concerne à dimensão semântica de referência (cf. Von Wright, 1963, pp. 93-4 [trad. esp. 1970, p. 109]; Copi, 1961, pp. 107 ss. [trad bras. 1978, pp. 119-23]). Especificamen te sobre a ambiguidade (conotativa) e a vagueza (denota tiva) da linguagem jurídi ca, ver Garrió, 1986, pp. 28 ss.; Koch, 1977, pp. 41 ss.; Warat, 1984, pp. 76-9; 1979, pp. 96-100. Em outra orientação, Dworkin (1991a [1977], pp. 133 ss. [trad. bras. 2002, pp. 209 ss.]), baseado na distinção entre "conceito" e "concepção" , pr opõe uma releitura da noção de "cláusulas constitucionai s vagas".

15 Ivainer, 1988.

DOS MODELOS JÁ CLÁSSICOS • J Para a superação da ambiguidade de disposições normativas, é fundamental a interpretação do respectivo texto. Para a supera ção da vagueza e a aplicação normativa a um caso concreto, vai--se além, desenvolvendovai--se um amplo processo seletivo de con cretização da norma16 . Esclareça-se, porém, que, com o final da

concretização, a norma jurídica não se torna individual e concre ta, apenas torna-se possível ser-lhe subsumido o caso mediante uma norma de decisão (em regra, individual e concreta)17. A con

cretização implica, portanto, a interpretação tanto do texto da norma quanto dos fatos jurídicos relevantes para o caso. Em um sentido mais abrangente, envolve, na terminologia de Friedrich Müller, a articulação tanto do "programa da norma" (dados pri mariamente linguísticos) quanto do "âmbito da norma" (dados primariamente reais) como componentes da estrutura da nor ma18. O processo de passagem da ambiguidade (imprecisão co

notativa) prima facie da disposição normativa à superação da va gueza (imprecisão denotativa) exige não propriamente que se "considerem todos os fatores" do contexto, mas que se determine seletivamente se os fatos jurídicos relevantes ao caso enquadram--se na hipótese normativa19.

16 A respeito, ver Hesse, 1969, pp. 25 ss.; Müller, F., 1995, espec. pp. 166 ss.; 1994;

1990a; 1990b; Christensen, 1989, pp. 87 ss. À interpretação diz respeito apenas ao texto (cf., p. ex., Müller, F., 1995, pp. 272-3).

17 Cf. supra nota 8 da Introdução.

18 Müller, F., 1995, espec. pp. 41 ss.; 1994, pp. 232-4 e passim; 1990b, espec. p. 20; 1975» espec. pp. 38-9.

19 Aarnio distingue entre análise prima facie de uma expressão e análise que toma

em "consideração todos os fatores" ("all things considered"), distinção que ele tam bém utiliza em relação à aplicabilidade das normas (1990, pp. 185 ss. [trad. esp. 1997a, pp. 24 ss.]; 1997b, pp. 179-80). Antes, Peczenick (1989, pp. 250-1) definiu o direito após a consideração de todos os fatores como direito interpretado ["aü--things-considered law as intepreted law"], para afirmar que o direito, considerados todos os fatores, é um produto de uma interpretação ótima ["The all-things-consid-ered law is an product of an optimal interpretation"). Mas, em contexto de alta

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8 •ENTRE HIDRA E HERCULES

Esse processo seletivo levou à compreensão, que já se tornou um lugar comum, de que "a própria norma jurídica só é produzi da no decurso da solução do caso"20, inclusive afirmando-se que

o juiz é "o único legislador"21 e, correspondentemente,

caracteri-zando-se as atividades legislativa e constituinte como atividades de emissão de texto legal e estabelecimento de texto constitucio nal22. Embora fascinantes essas formulações, parece-me que elas

podem levar a equívocos. Se afirmarmos que a produção da nor ma só ocorre no processo concretizador, persistirá a questão de complexidade, há uma necessária postura seletiva perante os fatores contextuais em qualquer processo de tomada de decisão fundado normativamente; ou, em ou tras palavras - invocando aqui Schauer (1998a, p. 239) ao tratar das decisões toma das com base em regras -, há um certo grau de "resistência" à postura decisória orientada para a decisão que se apresenta como sendo "a melhor, considerados todos os fatores" ["the best all-things-considered decision"]. Nesse sentido, Schauer afirma: "Quem toma decisão não constrangido por regras tem o poder, a autorida de, a competência [jurisdiction] pata levar tudo em consideração. Inversamente, quem toma decisão constrangido por regras perde algo dessa jurisdição" (Schauer, 1991, p. 159). Em vez de apenas abranger as regras, caberia ampliar o âmbitodessa asserção para incluir as normas em geral. Mas Schauer parte de outros pressupos tos e dá outras consequências a essa asserção, definindo as regras, de maneira es trita, com "instrumentos" de "alocação de poder" (ibidem). Também cumpre ob servar que outros fatores, além de normas, impedem que se "tome tudo em consideração". Daí por que se deve esclarecer que, quando uso a expressão "prima facie", não a estou usando na acepção estrita da tradição filosófica que a contrapõe

à expressão "all-things-considered", mas simplesmente para me referir ao sentido da disposição normativa ou mesmo à norma como se apresenta no início do pro cesso de concretização, antes de que haja a determinação seletiva da regra (com pleta) que serve de critério definitivo à solução do caso.

20 Müller, F., 1994, p. 273. Cf. Christensen, 1989, p. 89. Em orientação análoga,

embora mais cuidadoso, cf. Grau, 1996, pp. 60-1; 2009, pp. 86-9.

21 Müller, F., 1990b, p. 127, nota 16. Formulação semelhante já se encontra em

Cardozo, que se referia ao "juiz como um legislador" (1991 [1921], pp. 102 ss. [trad. bras. 2004, pp. 74 ss.]), enfatizando: "O direito que é o produto resultante não é descoberto, mas sim criado. O processo, sendo legislativo, exige a sabedoria do legislador" (p. 115 [trad. bras. p. 84, com erro grave de tradução ao inverter a negativa: "descoberto, não criado"]). Cardozo acrescentava: "Não há, na verdade, nada de revolucionário ou de novo nessa visão da função judicial" (p. 116 [trad, bras. p. 85]).

22 Cf. Müller, F., 1994, pp. 264 e 270.

DOS MODELOS JA CLÁSSICOS . 9 se os juízes e órgãos competentes para a concretização normativa não estariam subordinados a normas antes de cada solução de caso. Pode-se cair em um realismo decisionista, se esses modelos não forem tratados com os devidos cuidados e, eu diria, com cer tas restrições.

A relação entre aquele que expede o texto normativo e aquele que o interpreta e aplica em casos determinados, ou, de maneira mais simples, entre legislador (inclusive o constitucional) e juiz, importa a dupla contingência23. Em princípio, o problema da du

pla contingência está presente na relação de observação recíproca entre ego e alter na interação. Mas a questão da dupla contingência não se restringe à interação, na qual os polos ego e alter remetem a (embora não se confundam com) pessoas, tendo em vista que al ter e ego podem remeter a sistemas sociais24 e, portanto, também a

dimensões (subsistemas) deles; aqui, à legislação (ou ao legislati vo), primariamente política, e à jurisdição (ou ao judiciário), pri mariamente jurídica.

A dupla contingência implica que ego conta com a possibili dade de que a ação de alter seja diversa daquela que ele projetou e vice-versa. Embora não possa persistir uma "pura dupla contin gência" - pois há os condicionamentos da interação25 e a "absor

ção da insegurança" mediante a "estabilização de expectativas"26 -,

"a tentativa de prever precisamente o outro' fracassaria inevita velmente"27. Isso importa a suposição mútua de "graus de

liber-23 Luhmann, 1987a, pp. 148 ss.; 1987b, pp. 32 ss.; 2002, pp. 315 ss. [trad. esp. 2007b,

pp. 325 ss.]; O conceito de dupla contingencia remonta , segundo Luhma nn (1987a, p. 148; 2002, p. 317 [trad. esp. 2007b, p. 327]), a Talco« Parsons e um grupo de pesquisadores a ele vinculado s. Cf. Parsons et al., 1951, p. 16; Parsons, 1968, p. 436.

24 Luhmann, 1987a, pp. 152 e 155. 25 Cf. Luhmann, 1987a, pp. 168 e 185 s. 26 Luhmann, 1987a, p. 158.

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10 . ENTRE HIDRA E HÉRCULES

dade"28 (a ação de alter pode ser bem diversa da projetada no

vi-venciar de ego e vice-versa), que converte o comportamento em ação: "O comportamento torna-se ação no espaço de liberdade de outras possibilidades de determinação."29 Disso decorre que a

dupla contingência envolve uma combinação de não identidade e identidade: "Ego vivencia alter como alter ego. Ao mesmo tempo que tem a experiência com a não identidade das perspectivas, ego vivencia a identidade dessa experiência de ambos os lados."30

Na relação entre legislação e jurisdição ou, mais abrangente mente, entre normatização e concretização normativa, estabele ce-se inicialmente uma dupla contingência como em qualquer processo comunicativo. Ao fazer referência ao legislador (não no sentido subjetivo, pessoal, mas sim institucional), o intérprete-apli-cador atribui-lhe uma dação de sentido para o respectivo texto normativo. Isso não significa que essa atribuição importe que este substitua aquele como produtor da respectiva norma. A situação aponta para uma pretensão limitada de estruturar a dupla contin gência e determinar o conteúdo de uma comunicação (o que é que alter quis dizer?). A mensagem do legislador ou constituinte {alter) carrega um conteúd o informativo que precisa ser compre endido por ego (juiz), que poderá equivocar-se. Essa alteridade é análoga a todo processo social, inclusive os mais simples do coti diano: "eu digo que tu disseste isso quando falaste naquela opor tunidade". Nesse caso, ego não está dizendo que o conteúdo da fala seja sua. Ele atribui um sentido à fala de alter, conforme o conteúdo informativo que compreendeu na mensagem. Essa re lação de mensagem, informação e compreensão, ínsita a qualquer

28 Luhmann, 1987a, p. 186. 29 Luhmann, 1987a, p. 169. 30 Luhmann, 1987a, p. 172.

DOS MODELOS JÁ CLÁSSICOS • 11 comunicação31, também se aplica na macroescala dos sistemas

sociais. No nosso contexto, isso significa que a imputação de um conteúdo ao texto normativo (assim como a um texto literário) não significa que eu seja autor da respectiva norma (ou livro). Nesse sentido, cabe distinguir dois níveis: o da produção institu cional (inclusive não organizada no caso dos costumes jurídicos) da norma e a construção hermenêutica da norma no processo de concretização. Supõe-se uma dação de sentido prima facie pelo órgão de produção normativa, que, no processo concretizador, é complementada ou transformada por uma dação de „sentido em caráter definitivo. Mas permanece a alteridade: a construção her menêutica (no sentido amplo deste termo) parte da produção institucional da norma, sendo controlada socialmente no decur so do processamento da dupla contingência e, portanto, criticável como incorreta ou inadequada às condições do presente32.

Essas observações servem-nos para esclarecer que o proble ma da distinção entre princípios e regras (especialmente consti tucionais) situa-se no plano da argumentação que se desenvolve no processo concretizador, em que se pretende determinar o con teúdo de normas a aplicar. Pressupõe a questão do processamen to seletivo da dupla contingência e, especificamente, a confronta ção com a ambiguidade e vagueza das disposições normativas, com a conexão entre sentidos prima facie e definitivo de normas e com a interpretação dos fatos jurídicos relevantes aos casos a serem decididos.

31 Luhmann, 1983a, p. 137; 1987a, pp. 193 ss.; 2002, pp. 292 ss. [trad. esp. 2007b,

pp. 306 ss.].

32 Nesse sentido, embora com base em outros pressupostos teóricos e com outras

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12 • ENT8.E HIDRA E HÉRCULES

2. Grau de imprecisão, discricionariedade e generalidade como critério de distinção entre princípios e regras

O debate entre princípios e regras constitucionais é, em gran de parte, cativo ao tema clássico dos princípios gerais do direito. Nessa perspectiva, surge uma multidão de critérios, como o de os princípios constituírem "diferentes ideias fundamentais"33 ou,

simplesmente, "o fundamento da ordem jurídica"34, a função

heurística dos princípios35, a sua importância para o ordenamen

to jurídico36, a sua função unificadora para o sistema jurídico37,

entre muitos outros38. Nesse contexto, também surge a pretensão

de enumeração de catálogos de princípios (catálogos de íopoif 9.

Uma exposição detalhada desses modelos de critério e de enume ração foge ao presente trabalho, como já adiantei na introdução. Ou seja, o debate clássico sobre os chamados princípios gerais do direito não deve ser confundido com a questão da articulação entre princípios e regras constitucionais. Mas alguns aspectos da discussão clássica sobre princípios refluíram persistentemente no tratamento desta questão, merecendo algumas considerações.

Nesse contexto, tornou-se usual a distinção entre as teses da demarcação frágil (diferença quantitativa), da demarcação forte

33 Engisch, 1983 [1956], pp. 165-6 [trad. bras. 1977, pp. 260-1], tratando das con

tradições de princípios.

Betti, 1949, p. 212 [trad. bras. 2007, p. 270], em referências aos princípios gerais do direito. Em sentido análogo, Bandeira de Mello (2003, p. 817) define princípio como "mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele".

35 Jakab, 2006, pp. 60-1.

36 Peczenik, 1971, p. 30; 1989, p. 74. Cf . tamb ém Jakab, 2006, pp. 57 e 65. 37 Canaris, 1983, pp. 46-7 [trad. port. 1989, pp. 76-8], ao tratar dos princípios ge

rais do direito.

38 Com uma breve menção a diversos critérios de distinção entre princípios e re

gras, cf. Alexy, 1986, pp. 72-5 [trad. bras. 2008, pp. 86-90]; 1985, pp. 14-5.

39 Ver, p. ex., Struck, 1971, pp. 20-34. Cf. Eckhoffe Sundby, 1988, pp. 98-9.

DOS MODELOS JÁ CLÁSSICOS • I3 (diferença qualitativa) e da confusão ou coincidência entre princí pios e regras40. Os modelos que pretendo tratar brevemente neste

item são enquadrados no campo das teses da demarcação frágil. Em primeiro lugar, cabe considerar os modelos que apontam para uma maior imprecisão dos princípios em relação às regras. Esses modelos, muito comumente, estão vinculados à questão do grau da discricionariedade oferecido pela norma ao intérprete--aplicador41. A esse respeito, cabem alguns esclarecimentos iniciais.

Não se deve confundir a questão da imprecisão com a ques tão da discricionariedade em sentido estrito. A imprecisão se mântica, nas formas de ambiguidade (conotativa) e vagueza (de notativa), implica, a partir primariamente do significado do texto e do seu âmbito de referência, a incerteza cognitiva em relação à norma a aplicar. Essa questão está estreitamente vinculada à com plexidade e contingência42, à diversidade de expectativas inter

pretativas em relação aos textos normativos e às respectivas nor mas43. Em sociedades menos complexas, as normas apresentam-se

como evidentes44, não se configurando como relevante a questão

40 Alexy, 1979, pp. 64-5; 1986, pp. 74-5 [trad. bras . 2008, pp. 89-90]; Aarnio, 1990,

pp. 180 ss. [trad. esp. 1997a, pp. 17 ss.], concluindo que, "considerado todos os fatores" (ver supra nota 19 deste capítulo), isto é, depois da interpretação, não ha veria distinção entre regras e princípios, que só teria sentido na análise prima fade (p. 192 [trad. esp. p. 33]). Retornarei a essa questão.

41 Cf., p. ex., Eckhoffe Sundby, 1988, p. 108.

42 Complexidade entendida como presença permanente de mais possibilidades

(alternativas) do que as que são suscetíveis de ser realizadas; contingência com preendida como a condição em que "as possibilidades apontadas para as experiên cias ulteriores podem ser diferentes das que foram esperadas" (Luhmann, 1987b, p. 31), implicando, portanto, incerteza no plano das expectativas.

43 Deve ficar claro, porém, que as questões de complexidade e contingência, no

processo comunicativo, vão muito além da imprecisão semântica (conotativa e de notativa) de textos, disposições ou enunciados.

44 E, no limite, em formas arcaicas de sociedade, não se distingue entre norma e

ação, inexistindo, pois, procedimento institucionalizado de aplicação jurídica (cf. Weber, 1985, pp. 445 s. [trad. bras. 2004, vol. 2, p. 73]; Schluchter, 1979» P- 146;

(20)

14•ENTRE HIDRA E HERCULES

da imprecisão das disposições normativas. A partir do momento em que há uma inundação de expectativas normativas entre si contraditórias, não só em relação à produção legislativa e consti tuinte, mas também à compreensão normativa dos respectivos textos legais e constitucionais, emerge, com relevância, o proble ma da imprecisão semântica em torno da norma a aplicar. E isso inclui também a diversidade de interpretações do caso, conforme compreensões as mais incongruente dos fatos subjacentes.

A discricionariedade em sentido estrito não deve ser confun dida com a imprecisão semântica dos textos normativos e a in certeza denotativa em torno da norma a aplicar ao caso, mas sim com o oferecimento, na própria norma, de alternativas para o ór gão encarregado da concretização45. Não sendo aqui o local de

discutir os tipos de ato discricionário, tema debatido de maneira pormenorizada no âmbito do direito administrativo46, pode-se,

genericamente, distinguir duas formas típicas de discricionarie dade (em sentido estrito e rigoroso): a referente ao exercício do ato, quando a expedição deste fica a cargo de condições políticas ou de oportunidade e conveniência administrativa a serem ava liadas pelo órgão; a concernente ao conteúdo, quando, dada a in-Habermas, 1982a, vol. 1, pp. 349 6351; vol. 1, pp. 261 s.; 1982b, p. 135; Luhmann, 1993» p. 257; 1987b, p. 150).

45 Essa distinção entre discricionariedade em sentido estrito e imprecisão corres

ponde, de'certa maneira, à diferença entre "indeterminação intencional do ato de aplicação do direito" e "indeterminação não intencional do ato de aplicação do direito", conforme a formulação de Kelsen (i960, pp. 347-8 [trad. bras. 2006, pp. 388-90]). Entretanto, não parto da noçã o de "intencionalidade" nem da dicotomia "cognitivo/volitivo", "objetivo/subjetivo" ou "político/jurídico-científico", nos ter mos kelsenianos do "direito a aplicar como urna moldura dentro da qual há várias possibili dades de interpretação " (i96 0, pp. 348 ss. [trad. bras. 2004, pp. 390 ss.]). A concretização jurídica é entendida aqui como um processo social de comunica ções, no qual se supera a dicotomia epistemológica clássica "subjetivo/objetivo" em nome da diferença "sistema/ ambiente" (cf. Luhmann, 1987a, pp. 25-6).

46 Cf., entre outros, Bandeira de Mello, 2006, pp. 9 ss.

DOS MODELOS JÁ CLÁSSICOS • 3-5 cidência da norma, o órgão competente pode escolher uma das alternativas oferecidas, nas dimensões material, pessoal, tempo ral ou territorial. Mas a opção entre as alternativas deixadas pela norma à discrição do órgão competente não se confunde com a imprecisão semântica sobre a norma a aplicar. Vale argumentar o seguinte: para que se defina se uma norma abre um espaço à dis cricionariedade (em sentido estrito) do órgão de aplicação nor mativa, impõe-se inclusive que seja superado eventual problema de imprecisão semântica, a fim de saber se há competência dis cricionária ou não; a norma oferece as opções a, be cou apenas prescreve a aplicação a. Inclusive se partíssemos de um modelo de uma única decisão ou interpretação correta, esta poderia ser a que determinasse o caráter discricionário da competência atribuí da pela norma.

Feitas essa considerações, compreende-se que a discussão quantitativa que se delineia na distinção entre regras e princípios refere-se ao problema da imprecisão semântica dos textos norma tivos, na medida em que esta leva à incerteza cognitiva a respeito da norma a aplicar. Nessa vertente, afirma-se que os princípios são mais imprecisos do que as regras47. Essa posição não parece susten

tável. Tanto no plano legal quanto no plano constitucional, nós en contramos regras que apresentam caráter de imprecisão semântica, tornando-a extremamente dependente do contexto de aplicação.

Considere-se, por exemplo, a regra legal expressa no art. 94, inciso II, do Código Penal, que se refere ao "bom comportamento público e privado" como requisito para a reabilitação48. Como

de-47 Cf. Guastini, 2005, pp. 180-90, com restrições; Betti, 1949, pp. 207-8 [trad. bras.

2007, p. 263], referindo-se aos princípios gerais do direito; Eckhoff e Sundby, 1988, p. 108, sustentando a vagueza das diretivas, que, na concepção deles, não se identificam com os princípios, mas têm muito em comum com estes (p. 107).

48 "Art. 94 - A reabilitação poderá ser requerida, decorridos 2 (dois) anos do dia

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