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A reportagem sobre as eleições na Colômbia, publicada na

Folha de S. Paulo, em 25/5/02, possui uma fotochamada na primeira

página, remetendo a uma página interna do jornal, em que a matéria é desenvolvida em dois blocos com as seguintes manchetes: “Cresce o temor de fraudes na Colômbia”, a principal, abrangendo duas colunas verticais à direita da página, e “Casa Branca evita dar apoio explícito a Uribe”, em letras menores, estendendo-se por quatro colunas, à esquerda. Entre uma manchete e outra, há uma outra fotografia, em preto-e-branco.

A fotografia que anuncia a reportagem (Figura 17, metade inferior da página) já causa estranhamento, num primeiro contato, pelas figuras que encerra: ao informar sobre o pleito na Colômbia, a imagem que se vê é a de homens cobertos de lama em treinamento militar na selva. Esse contraste é retomado na legenda: “Treinamen- to na selva. Paramilitares de direita sujos de lama em exercício de sobrevivência na Colômbia; em meio a um temor crescente de frau- des, sabotagens e pressões sobre eleitores, o país realiza amanhã eleições presidenciais”.

Ao lado da aparente falta de encadeamento semântico entre os dois segmentos separados por um ponto e vírgula, salta aos olhos, entretanto, a correspondência, já culturalmente estabelecida, entre a figura lama e os termos mais abstratos fraudes, sabotagens; ao mesmo tempo, a visão do “treinamento na selva” já aponta para a influência do poder armado nas “pressões sobre eleitores”. A foto, portanto, con- centra alguns dos temas que são desenvolvidos no enunciado verbal, funcionando como índice de sentidos que se querem confirmar.

A expectativa tensa que caracteriza a gestualidade das figuras humanas do texto verbo-visual dessa fotochamada espalha-se por toda a página na qual está inserida: na “estréia tensa” da Copa 2002 na Coréia do Sul;2 na pequena manchete ao lado da fotochamada esco-

lhida para análise (“EUA e Rússia fazem acordo de desarmamento”), em que se subentendem as relações de poder envolvidas no tratado; nos anúncios de aumento dos planos de saúde e de queda da renda do trabalhador (pelo 15o mês seguido!). Mesmo notícias supostamente

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positivas e “leves”, como a indicação de um brasileiro ao prêmio Nobel, o superávit fiscal recorde e o próximo jogo do Brasil contra a Malásia, trazem algum contraponto disfórico: a falta de verbas do cientista indicado ao prêmio, o arrocho que gerou o superávit, o “ataque” que marcará o “último jogo antes da Copa”.

A fotochamada encontra-se, assim, enredada na página na qual está inserida e, como os outros segmentos componentes do todo, inscreve-se numa escolha enunciativa pela acentuação de con- teúdos polêmicos, tendendo para a retenção de valores disfóricos que predominam.

Mas, para além disso, a fotografia que remete à reportagem sobre as eleições na Colômbia nos surpreende pelos arranjos de cores, pelo seu caráter estético, que impressionam mais do que sua significação anedótica. Serve-nos, por isso, como bom exemplo de um modo de análise que, isolando uma unidade menor do contexto maior da página, observa a integração entre linguagens sem considerar ainda a unidade de manifestação mais global. Desse modo, queremos reafirmar que a própria natureza do texto jornalístico reclama diferen- tes escolhas de objeto de análise. Se apontamos a possibilidade das relações globais na página, preferimos, nesse momento, particularizar a análise de uma chamada que se destaca pela plasticidade vigorosa e, em certa medida, apelativa.

A foto pode ser segmentada em duas partes, de extensão ho- rizontal, formando dois retângulos, perceptíveis pela distribuição cromática: no segmento inferior, que abrange três quartos da cena, há exclusivamente tons de marrom e, no espaço superior, matizes de verdes misturados a marrons.

Em relação ainda à dimensão cromática, a focalização, nessa região em marrom, dos corpos cobertos por uma camada espessa de lama cria um efeito próximo ao que na pintura se identifica com a satu- ração e o espessamento, em oposição ao efeito de diluição e leveza na parte superior da foto, produzido pelo desfocamento e luminosidade mais intensa.

Considerando as categorias eidéticas, contrapõem-se a regula- ridade das formas do segmento inferior e a irregularidade do superior. Na região inferior, as formas humanas se distribuem em linhas – uma horizontal, ao fundo, traçando uma espécie de divisória entre as duas partes da cena; uma vertical, rente à margem esquerda e uma oblíqua, que atravessa diagonalmente o retângulo inferior. As figuras huma-

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nas que as compõem aparecem todas na mesma posição: agachadas, pernas flexionadas, empunhando armas, com o corpo inclinado para frente. Na região superior, ao contrário, há um emaranhamento de linhas (concretizando os troncos das árvores), que nem sempre pos- suem contornos definidos, e borrões espalhados de diferentes tons de verde (as folhagens). As linhas se cruzam, levando o olhar para fora do quadro, em várias direções, opondo-se à área inferior, na qual as figuras se posicionam de tal modo (todas se inclinam para uma região central, no canto direito da foto, para onde as armas apontam) que produzem a ilusão de cercamento, encurralamento.

A predominância da presença do marrom e sua saturação, da regularidade das formas, direcionadas a um ponto concêntrico, em contraste com a dispersão produzida pelo efeito de diluição e mistura de cores, aliadas ao emaranhamento e multidirecionamento de linhas levam à constatação de uma estruturação, em nível mais profundo, baseada nas categorias opositivas /homogeneidade/ versus /hetero- geneidade/.

Essas mesmas categorias opositivas são co-extensivas à análise do conteúdo. Por um lado, a ostensividade da presença dos homens armados que cercam um objeto que não se pode ver, para fora dos li- mites da imagem, e sua concentração numa região bastante abrangente da foto, além da indiferenciação uns dos outros, por estarem todos cobertos de lama, criam um efeito de uniformidade e homogeneidade, como ocorre no plano da expressão. O fato de as figuras humanas em- punharem armas, em posição incoativa, em estado de alerta, prontas para o ataque, avançando sorrateiramente, pode levar ao conteúdo mais abstrato de imposição ostensiva da força, demonstração de poder, subjugação.

Por outro lado, por pressuposição, há um “outro” que está sob a mira das armas, mas que não aparece, não tem visibilidade. As dife- renças entre os homens e entre homens e coisas (armas, vestimentas, mochilas etc.) se encobrem sob a lama, configurando o outro pólo da oposição, mesmo que projetado no discurso sob o estigma do ocul- tamento e da negação.

Da mesma forma, no enunciado lingüístico, o que se reafirma é a subjugação da vontade popular às injunções de candidatos e grupos armados. A imposição e a presença de uma univocidade, garantida pela força, fraudes e sabotagens e pelo apoio do presidente americano a um candidato sobre o qual recai a suspeita de ligação com paramilitares

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de direita, subsumem uma tendência à homogeneização de vozes, em conjugação com o silenciamento da voz popular.

Esse conteúdo é reiterado pela fotografia que, nas páginas inter- nas do jornal, juntamente com o enunciado lingüístico, dá continuidade à reportagem anunciada na primeira página. A presença, em primeiro plano, de um policial diante de um comitê eleitoral, ao fundo, confirma tanto as pressões que envolvem as eleições quanto a distância entre o papel de eleitores dos atores do enunciado e sua improvável parti- cipação em debates políticos e escolha livre dos candidatos.

Apesar do tom de crítica e denúncia, observável pela intencio- nalidade argumentativa (a escolha da foto analisada sendo talvez a mais reveladora), de certo modo esse silenciamento ecoa no próprio discurso, marcado pela ausência da fala popular, que não aparece em nenhuma das citações.

Esse é apenas mais um exemplo do emprego, em textos consi- derados objetivos, comprometidos com a neutralidade, de uma fala segunda, de natureza mais conotativa e profunda, que não deixa de integrar, entretanto, um outro modo de afirmação da verdade do discurso.