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Relações entre linguagens: uma abordagem teórica

Interessa-nos, ao escolher o jornal como objeto de estudos, abordar, mais especificamente, a heterogeneidade de linguagens que o constitui, manifestada por diferentes sistemas semióticos: o visual ou imagético, que inclui as manifestações fotográficas, de que iremos tratar particularmente, os desenhos, gráficos e outros tipos de “ilus- trações”, e o lingüístico (que, no texto jornalístico, não deixa de ser visual, fato que retomaremos adiante).

O primeiro problema que se impõe, em relação a essa co- ocorrência de linguagens, está, de antemão, contornado: lançando mão da teoria semiótica, é possível abranger, a partir de uma mesma fundamentação teórica, ambas as linguagens, a visual e a verbal, como já observamos anteriormente, permitindo uma visão mais unitária e coerente de análise.

O segundo problema diz respeito ao modo de presença e articu- lação das diferentes semióticas, já que, ao nos propormos a estudar a produção de sentido nos jornais diários, não podemos nos furtar a observar como se estruturam e interagem as diversas linguagens que compõem esse tipo de texto. É preciso considerar a especificidade desse tipo de mídia, em que cada uma das diversas linguagens muitas vezes constitui, por si só, unidade de sentido global e coerente, apesar de integrar um todo de sentido sincrético. Essa relativa autonomia das linguagens, no entanto, não significa que formam textos independentes que são postos lado a lado na página do jornal.

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Uma leitura menos superficial do texto jornalístico nos faz con- cluir que, na sua constituição, as linguagens visual e verbal se integram num todo de sentido. Não se trata, portanto, de um texto verbal, de um lado, e outro visual, de outro, mas as distinções superficiais no modo de manifestação dos conteúdos não resistem a um exame mais acurado da estruturação do conteúdo do texto como uma totalidade. Formando, aparentemente, unidades autônomas, fotografia e relato verbal da notícia são partes de um todo que só significa pelas relações particulares que as diferentes linguagens estabelecem entre si.

Em sua organização profunda, portanto, os enunciados verbais e fotográficos atualizam, conjuntamente, uma só forma do conteúdo. Respondem pela manifestação de uma mesma oposição fundamental e discursivizam uma mesma estrutura narrativa, podendo assumir, no entanto, diferentes papéis na concretização dos conteúdos mais abstratos estruturadores do discurso.

Numa ocorrência textual, numa notícia ou reportagem, a fotogra- fia pode textualizar uma determinada etapa da seqüência narrativa de base, a sanção, por exemplo, se tomarmos a notícia sobre o escândalo que envolveu Bill Clinton, em reportagem já comentada na introdução desse trabalho (Figura 3).

Pode também concretizar uma antinarrativa, pressuposta (ou implícita) no enunciado verbal, fazendo surgir, no nível discursivo, vozes antagônicas que, conjugadas, criam efeitos de ironia e humor, desvelando um posicionamento ideológico assumido pelo enunciador, como veremos adiante.

Essa unidade de sentido ocorre, portanto, em todas as etapas da geração do sentido. Esse fato é fundamental para justificar a aborda- gem que faremos, embora não tenhamos como objetivo ocupar-nos de cada uma delas detidamente. Focalizaremos, neste estudo, particular- mente, o nível discursivo do percurso gerativo do sentido, conforme já dissemos, observando a escolha enunciativa por manifestar conteúdos por meio de diferentes semióticas e seus efeitos de sentido.

Neste nível, encaminharemos a análise a partir da dimensão figurativa dos textos, dada a natureza das linguagens colocadas em relação e o seu modo de ocorrência nos textos jornalísticos.

Abordar a figuratividade na mídia impressa é tratar de uma de suas especificidades: ao proceder a uma “saturação de traços figu- rativos” (TEIXEIRA, 2001, p. 416), criando um efeito de iconicidade tanto no relato verbal na notícia quanto no retrato fotográfico, o texto

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jornalístico evidencia sua pretensa vocação para a representação fiel e verdadeira da realidade enunciada.

No enunciado verbal, essa representação é feita por meio de procedimentos como a concretização precisa de elementos temporais, actanciais e espaciais, a apresentação de dados exatos, cifras, a des- crição detalhada dos fatos que constroem a ilusão de realidade e, no visual, pela escolha de determinadas convenções (tipos de enfoque, jogos de luz e sombra, perspectivas, distribuição de figura e fundo etc.) que confirmam a relação de analogia, no nível semântico, entre as figuras do mundo e a imagem fotográfica.

Além disso, não se pode deixar de considerar que, particular- mente no enunciado visual, é a partir da sua dimensão figurativa que podem ser apreendidos os mecanismos próprios da sintaxe discursiva. As operações de debreagem enunciativa ou enunciva ou de embreagem e as relações argumentativas que caracterizam os contratos manipu- latórios entre enunciador e enunciatário só podem ser examinadas a partir da camada figurativa que envolve as manifestações fotográficas dos textos jornalísticos,2 o que faz com que se justifique, mais uma vez,

a opção por tomar como ponto de partida de nossa análise a semântica discursiva, com ênfase no procedimento de figurativização.

Ademais, a semântica discursiva tem um papel especial na construção da significação do texto, de alinhavar e ressaltar as inter- relações entre os mecanismos sintáticos e semânticos do discurso, assim como entre os diversos patamares da geração do sentido, como já foi esclarecido anteriormente, quando tratamos o compo- nente figurativo dos textos, na síntese da teoria que fundamenta o nosso estudo.

Ao fazer convergir, assim, os outros níveis de produção do sen- tido, a semântica discursiva torna-se um ponto de partida privilegiado para fazer as necessárias inter-relações entre esse nível mais superfi- cial do discurso e os outros, mais profundos, também estruturadores do sentido do texto, tornando menos restritivo o seu estudo.

É também a partir do componente figurativo do discurso que observaremos, nos enunciados visuais, as qualidades significantes que formam as figuras do conteúdo e sua organização em sistemas que se sobrepõem à estruturação do plano do conteúdo, construindo uma nova maneira de dizer o mundo.

Verificamos que essa preocupação em identificar as relações pos- síveis entre categorias do plano da expressão e do plano do conteúdo

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nos textos jornalísticos não é, de modo algum, irrelevante. E que tais relações não ocorrem apenas nos enunciados verbais, como veremos. No lingüístico, os elementos significantes pertinentes para a constitui- ção do sentido não estão tanto na dimensão sonora que suscita, apesar de não poder ser negligenciada (especialmente no que concerne às manchetes) como muitas vezes ocorre nos discursos publicitários (Cf. FLOCH, 1987), mas na sua manifestação visual, por intermédio do sis- tema gráfico que caracteriza a escrita. Esse fato, aliás, não surpreende, dada a vocação à visualidade própria desse tipo de mídia.

É preciso, entretanto, ressaltar que a visualidade de que é dota- da a linguagem verbal escrita difere da que caracteriza as semióticas visuais. Estas constroem uma relação de analogia semântica entre as figuras do discurso e as figuras do mundo natural, aquela se cons- trói como uma “correspondência entre dois sistemas – o gráfico e o fônico – de tal modo que as unidades-figuras produzidas por um dos sistemas podem ser globalmente homologadas às unidades-figuras de outro sistema” (GREIMAS, 1984, p. 21).

Evidentemente, a restrição do sistema gráfico do verbal escrito a apenas uma correspondência com um sistema fônico não leva em conta as possíveis relações semi-simbólicas (ou mesmo simbólicas) que podem ser estabelecidas entre determinados traços expressivos do aspecto visual da linguagem escrita (tipo de letra, tamanho, distri- buição topológica, cor etc.) e categorias do conteúdo, o que não chega a aproximar o tipo de visualidade concretizado pelo verbal e pelo visual fotográfico, por exemplo. Mas, apesar de apresentar diferentes substâncias, o plano da expressão do verbal e o do visual integram-se, no texto jornalístico, na sua organização profunda, por meio de uma só forma da expressão, fato observável no corpus.

Feitos esses esclarecimentos, delinearemos como um dos nossos objetivos a explicitação dos modos de integração entre as lin- guagens que compõem os textos noticiosos e opinativos que incluem a fotografia como forma de manifestação de seu conteúdo, de modo a constituir um todo de sentido.

O caminho metodológico escolhido para cumprir esse objetivo considera, ainda, a possível separação dos planos do conteúdo e da expressão para apreender, mais eficazmente, o modo de organiza- ção de cada um desses planos para, posteriormente, homologá-los. Dessa forma, observaremos, inicialmente, no plano do conteúdo, as inter-relações possíveis entre as linguagens. Mesmo constituindo

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um só todo de sentido, tornando imprescindível, para a significação global do texto, a coexistência das manifestações verbais e visuais, cada linguagem tem um papel e os conteúdos que veicula interagem de maneira específica, como veremos adiante. Posteriormente, cen- traremos a atenção no modo de organização do plano da expressão do visual e do verbal, buscando verificar suas inter-relações com o conteúdo. Quanto ao plano da expressão, serão apresentados muitos questionamentos e alguns comentários, já que alguns problemas teórico-metodológicos ainda precisam ser enfrentados.

Baseada nas conclusões advindas do estudo dos procedimentos empregados para a integração entre as linguagens, especialmente no plano do conteúdo, e seus efeitos de sentido, discutiremos em que me- dida os textos jornalísticos constituem-se como textos que instauram uma só unidade de sentido.3