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Entre o humor e a ironia: “uma exilada perpétua”

Capítulo 3 Stupeur et Tremblements: o tragicômico

3.3 O Realismo versus o Surrealismo

3.4.2 Entre o humor e a ironia: “uma exilada perpétua”

Na primeira parte, procuramos mostrar a história do riso de uma maneira geral, mas nos preocupamos em distinguir, entre as diversas teorias apresentadas, o humor da ironia. Nesse sentido, retomamos as proposições de Bergson (1958) e Pirandello (1996), que procuraram postular algumas diferenças básicas entre essas duas estratégias.

Carignano (2007), em sua dissertação, afirma que:

[...] em ambas as abordagens, bergsoniana e pirandelliana, encontramos a tensão entre o mundo real e o mundo ideal resolvida para ambas as categorias de maneira inversa: na ironia, produz-se uma quebra do ideal na medida em que interfere na realidade. No humor, há uma afirmação amarga da realidade em que se evidencia o conflito, a brecha insolúvel desta em relação ao ideal (CARIGNANO, 2007, p. 125).

Narjoux (2004) observa os dois procedimentos na obra. Segundo a teórica, o humor implica uma distanciação do real em relação ao ideal, ou seja, a narradora deixa transparecer por trás do sério os aspectos ridículos. No entanto, para Narjoux (2004), a ironia tem uma visão mais insolente e agressiva e busca desqualificar aquilo a que ela se dirige. Novamente, encontramos uma oposição entre dois mundos: o ideal e o real.135

Essa oposição pode ser percebida, como já dissemos, na ideia que Amélie tem do Japão e na realidade que ela encontra: “J’avais à présent sous les yeux l’horreur d’um système qui niait

135 Para David (2006, p114), ao se tornar “nettoyeuse de chiottes [...] elle prend avec un humour poliment désespéré

consciente de ‘l’extraordinaire tessiture de mes talents’, écrit-elle, ‘capables de chanter sur tous les registres, tant celui de Dieu que de Madame Pipi". Observa-se, nesse trecho, a ironia com que a narradora se refere aos seus “talentos” (pois ela se sabe mais capaz do que isso), mas, ao mesmo tempo, com humor, aceitando sua condição de Madame Pipi.

ce que j’avais aimé et cependant je restais fidèle à ces valeurs auxquelles je ne croyais plus” (NOTHOMB, 1999, p. 134).136

Narjoux (2004) observa que, nesse sentido, a narradora é bastante ambígua, pois ,se ela não fosse fiel aos valores de sua infância, nós teríamos uma ironista inveterada. Por outro lado, se ela continuasse a acreditar nos valores originais, ela seria uma perfeita humorista. No entanto“Amélie est a mi-chemim de l’une et l’autre position, comme perpétuellement exilée. Elle oscille entre la position insolente et agressive de l’ironiste, qui rejette ce en quoi il a cru, et celle plus tendre et moins incisive de l’humoriste, qui regrette seulemente”137.

Entre os procedimentos linguísticos empregados na obra (e que ao nosso ver causam essa oscilação no discurso), encontramos expressões que buscam colocar à distância, como o uso de eufemismos:

Entre parenthèses, ma limitation géographique au quarante-quatrième prouvait,

si besoin était, l’inanité absolue de ma nomination. Si ce que les militaires appellent élegament ‘les traces de freinage’ représentaient une telle gene pour

les visiteurs, je ne vois pas en quoi elles étaient moins incommodantes au quarante-troisième ou quarante-cinquième étage” (NOTHOMB, 1999,

p.137).138.

Essa explicação ocorre logo que a narradora constata que alguns funcionários não estão usando o banheiro do 44º andar a fim de respeitá-la. O humor nasce da constatação de que, como Fubuki havia alegado que os empregados sofriam com a falta de papel higiênico, sua função é inútil, já que os funcionários estão usando outros banheiros.

Há ainda outros traços de eufemismo como “ce que certains manuels appellent des relations paradoxales” (NOTHOMB, 1999, p.154)139: nesse caso, essa figura de linguagem é usada para satirizar a relação sádica entre Fubuki e a protagonista.

136 “Tinha agora diante dos olhos o horror desdenhoso de um sistema que negava o que eu amara e, no entanto

continuava fiel àqueles valores que não mais acreditava” (NOTHOMB, 2001, p. 101).

137 “Amélie está a meio caminho de uma e da outra posição, como perpetuamente exilada. Ela oscila entre uma

posição insolente e agressiva do ironista que rejeita aquilo que era acreditado e uma mais terna e menos incisiva do humorista que apenas lamenta” ((NARJOUX, 2004, p.77, grifo do autor, tradução nossa).

138 Entre parênteses, minha limitação geográfica ao quadragésimo quarto provava, se ainda fosse preciso, a absoluta

inutilidade de minha nomeação. Se que os militares chamam elegantemente de “vestígios de freagem” representavam um tal incômodo para os visitantes, não entendia como haveriam de ser menos incômodos no quadragésimo terceiro ou no quadragésimo quinto andar” (NOTHOMB, 2001, p. 103).

As antífrases e perífrases também são recursos retóricos bastante utilizados: “il n’étati pas au courant de ma promotion” (NOTHOMB, 1999, p. 138)140 – sabemos que a promoção de

Amélie é feita “às avessas” (temos, assim, uma antífrase). Já nesse exemplo “il sortit aussitôt sans avoir effectué aucune des fonctions prévues pour cet endroit” (NOTHOMB, 1999, p.142)141, o uso da perífrase causa humor, pois toma o baixo (os dejetos humanos) de uma maneira distanciada.

O uso de hipérboles também é frequente e assinala a posição irônica da personagem: “Une societé dirigée par um homme d’une noblesse si criante eût dû être um paradis raffiné, um espace d’épanouissement et de douceur”(NOTHOMB, 1999, p.147).142

A atitude de Amélie, no diálogo final ao qual já nos referimos, também consiste em uma posição irônica. É dessa maneira que ela explica o título da obra:

Dans l’ancien protocole imperial nippon, il est stipulé que l’on se adressera à l’Empereur avec stupeur et tremblements . J’ai toujours adoré cette formule qui

correspond si bien au jeu des acteurs dans les films de samourïs, quand ils

s’adressent à leur chef, la voix traumatisée par un respect surhumain.

Je pris donc le masque de la stupeur et je commençai à trembler. Je plongeai um

regar plein d’effroi dans celui de la jeune femme et je bégayai – Croyez-vous que l’on voudra de moi au ramassage des ordures ? – Oui ! dit-elle avec un peu trop d’enthousiasme.

Elle respira un gran coup. J’avais réussi.(NOTHOMB, 1999, p.172).143

Nessa última menção à Fubuki, observamos que a narradora admite colocar uma máscara. Assume uma posição irônica: ela toma uma expressão “la plus stupide e béate” (NOTHOMB, 1999, p.174). No entanto esse acontecimento desordena os outros: ao fazer Fubuki sair de sua posição contida (tão pregada pelos japoneses), a narradora sai vitoriosa: ela desarma sua opositora através da ironia.

140 “[...] ele não estava informado de minha promoção” (NOTHOMB, 2001, p. 104).

141 “[...] e saiu em seguida, sem ter efetuado qualquer das funções previstas para o lugar” (NOTHOMB, 2001, p.

107).

142 “Uma empresa dirigida por um homem de tão patente nobreza devia ser um paraíso refinado, um espaço de doce

desabrochar” (NOTHOMB, 2001, p. 69).

143 “No antigo protocolo imperial nipônico, estipula-se que se haverá de dirigir a palavra ao Imperador com “estupor

e estremecimento”. Eu sempre adorei esta regra, que tão bem corresponde ao jogo de samurais, quando se dirigem ao chefe, a voz traumatizada por um respeito sobre-humano. / Enverguei portanto a máscara do estupor e comecei a tremer. Mergulhei um olhar cheio de medo no daquela jovem, e gaguejei: − Você acha que me aceitariam na prensagem do lixo?/ − Sim! – fez ela, com um pouco de entusiasmo demais./ Ela respirou fundo. Eu havia conseguido” (NOTHOMB, 2001, p. 130).

Uma última observação deve ser feita acerca da passagem acima: ao afirmar que ela usa uma máscara, a narradora recorre a alguns procedimentos teatrais que nos fazem ver a obra como uma paródia de uma tragédia.