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Inversão, paródia, e absurdo: a derrisão total

Capítulo 3 Stupeur et Tremblements: o tragicômico

3.3 O Realismo versus o Surrealismo

3.4.1 Inversão, paródia, e absurdo: a derrisão total

A importância do riso é expressamente assinalada pela narradora:

Par um processus salvateur de mes facultés immunitaires, ce retournement intérieur me fut imédiat. Aussitôt, dans ma tête, le sale devint propre, la honte devint la gloire, le tortionnaire devint la victime et le sordide devint le comique.

J’insiste sur ce dernier mot : je vécus en ces lieux [...] la période la plus drôle

de mon existence (NOTHOMB, 1999, p.136)126.

O cômico torna-se, portanto, uma maneira de inverter o que é “sórdido” e permite à personagem “salvar suas faculdades imunológicas”. Segundo Narjoux (2004), os fundamentos realistas, a quebra de expectativa não só entre as personagens, mas também entre a obra e a

125 “A partir do momento em que recebi a incrível missão, entrei numa outra dimensão de minha existência: o

universo puro e simples deboche” (NOTHOMB, 2001, p. 102).

126 “Por um processo salvador de minhas faculdade imunológicas, esta inversão interior foi imediata. De uma hora

para outra, em minha cabeça, o sujo tornou-se limpo, a vergonha transformou-se em glória, o torturador virou vítima e o sórdido passou a ser cômico” (NOTHOMB, 2001, p. 103).

imagem idealizada que Amélie tem do Japão em oposição ao que ela vivencia são fontes do cômico: o riso nasce de uma contradição entre a expectativa e os fatos. Nesse sentido, o principal elemento cômico na obra é o que a autora chama de “l’écart”, isto é, a distância criada em algumas situações entre o que os personagens ou o leitor esperam e a atitude da protagonista.

A primeira delas é observada na cena em que Amélie faz palhaçadas para colocar os calendários em dia:

J’assassinais le mois de février avec des grands gestes de samouraï, mimant une

lutte sans merci contre la photo géante du mont Fuji enneigé qui illustrait cette

période dans le calendrier Yumimoto. Puis je quittais les lieux du combat, l’air

epuisé, avec des fiertés sobres de guerrier victorieux, sous les banzaï des commentateurs enchantés (NOTHOMB, 1999, p.32).127

Além disso, de acordo com a pesquisadora Narjoux (2004), observamos, na passagem anterior, uma paródia do registro épico128: ela faz uso do campo lexical do combate “lutte sans

merci”, “assassinais”, “combat”, “guerrier victorieux”; coloca em cena a luta entre o herói e os

elementos naturais (nesse caso, o monte Fuji); recorre a comparações que dão a impressão de força e poder “avec des grandes gestes de samouraï”; insere elementos da epopeia japonesa “samouraï”, “mont Fuji”, “banzai”; utiliza um léxico que visa a amplificação “géant”, “grand”; e os plurais que marcam a profusão de elementos e que participam para amplificar o combate “les lieux”, “des fiertés”. Toda a cena é vista pelos empregados da empresa que aclamam Amélie e participam da mise en scène de uma narradora que se presta a dar vida aos altos feitos épicos.

Ainda no nível linguístico, podemos observar também esse “écart” no estilo nobre e sublime empregado ao relato de tema vulgar na cena em que Fubuki ensina Amélie a limpar privadas:

Le clou fut atteint quand la belle créature empoigna délicatement la brosse aux

chiottes pour m’expliquer, avec beaucoup de sérieux, quel en était le mode

127 “Eu assassinava o mês de fevereiro com grandes gestos de samurai, imitando uma luta sem trégua contra a foto

gigante do monte Fuji coberto de neve que ilustrava aquele período no calendário Yumimoto. Em seguida deixava a cena da luta com ar esgotado mas cheia de orgulho sóbrio dos guerreiros vitoriosos, ao som dos banzai dos espectadores maravilhados” (NOTHOMB, 2001, p. 24).

128 Segundo Cécile Narjoux (2004), o registro épico coloca frequentemente em cena um combate, em um relato que

d’emploi – supoosait elle que je l’ignorais? Déjà, je n’aurais jamais pu imaginer qu’il me serait donnée de voir cette déesse tenir um tel instrument. A plus de le désigner comme mon nouveau sceptre” (NOTHOMB, 1999, p.130).129

O choque entre o estilo nobre, sublime e o vulgar, baixo pode ser observado no uso que Amélie faz da paródia do texto bíblico. Na versão original da Bíblia (1980) temos a seguinte passagem:

Estando para ser entregue e abraçando livremente a paixão, Jesus tomou o pão e disse: Tomai todos e comei, isto é o meu corpo que será entregue por vós e por todos. No mesmo modo ao fim da ceia ele tomou o cálice em suas mãos, deu graças novamente, e o deu a seus discípulos dizendo: Tomai todos e bebei, isso é meu sangue, o sangue da nova e eterna aliança que será derramado por vós e por todos para a remissão dos pecados. Fazei isto em memória de mim (BÍBLIA, Marcos, 14, 22).

Na versão da narradora, que se vê como um Cristo crucificado130, “le Christ aux ordinateurs” (NOTHOMB, 1999, p.83),131 o texto é transposto da seguinte maneira: “Prenez et

manges, car ceci est mon poivre qui sera versé pour vous e pour la multitude, le poivre de

l’alliance nouvelle et éternelle. Vous éternuerez en mémoire de moi” (NOTHOMB, 1999, p. 85).132

As oscilações dos termos que vão do nível elevado como “commodités” e baixo, como “chiottes” também contribuem para o cômico na obra. A síntese da queda social da personagem recorre a elementos bíblicos e termos altos (cabinets) e baixos (chiottes), causando também uma oscilação no discurso:

Récapitulons. Petite, je voulais devenir Dieu. Très vite, je compris que c'était trop demander et je mis un peu d'eau bénite dans mon vin de messe : je serais Jésus. J'eus rapidement conscience de mon excès d'ambition et accepté de "faire" martyre quand je serais grande.Adulte, je me résolus à être moins mégalomane et à travailler comme interprète dans une société japonaise. Hélas,

129 “O auge da cena chegou quando a bela criatura empunhou delicadamente a escova de latrina para me explicar,

com a maior seriedade, como deveria ser usada – provavelmente supondo que eu o ignorava. Já era para mim inconcebível que me fosse dado ver um dia aquela deusa fazendo uso de tal instrumento. Muito menos para indicá-lo como meu novo cetro” (NOTHOMB, 2001, p. 98).

130 Outra diferenciação entre Amélie e Fubuki também pode ser observada na oposição deusa (pagã) e Cristo

(religiosa).

131 “Eu sou o cristo dos computadores” (NOTHOMB, 2001, p. 62).

132 “Tomai e comei, pois esta é minha pimenta, que será derramada por vós e pela multidão, a primenta da nova

c'était trop bien pour moi et je dus descendre un échelon pour devenir comptable. Mais il n'y avait pas de frein à ma foudroyante chute sociale. Je fus donc mutée au poste de rien du tout. Malheureusement j'aurais dû m'en douter , rien du tout, c'était encore trop bien pour moi. Et ce fut alors que je reçus mon affectation ultime : nettoyeuse de chiottes.

Il est permis de s’extasier sur ce parcours inexorable de la divinité jusqu’aux

cabinets (NOTHOMB, 1999, p.131).133

Outro recurso bastante utilizado na obra é o absurdo, o nonsense: as disfunções da sociedade japonesa que escapam ao controle da razão são denunciadas sob um viés cômico.

Isso pode ser observado no diálogo final entre Amélie e Fubuki: esta última, segundo Narjoux (2004), leva em consideração apenas o que lhe convém, sem levar em conta a real personalidade da narradora. Após o pedido de demissão de Amélie (salientamos que isso ocorreu devido ao término de seu contrato):

– Et ensuite, que comptez vous faire?

Je n’avais pas l’intetion de lui parler des manuscrits que j’écrivais. Je m’en tirai

avec une banalité :

– Je pourrais peut-être enseigner le français Ma supérieure éclata d’un rir méprisante

– Enseigner ! Vous ! Vous vous croyez capable d’enseigner![...]

Je baissai la tête

– Vous avez raison, je ne suis pas encore assez conscient de mes limites – En effet. Franchement,, que métier pourriez-vous exercer ?

Il fallait que je lui donne accès au paroxysme de l’extase [...] (NOTHOMB,

1999, p.173).134

Vimos que ao longo do texto o cômico surge tanto das contradições entre as ações das personagens quanto da linguagem empregada. Com isso, a obra participa na denúncia do

133 “Recapitulemos. Quando pequena, eu queria tornar-me Deus. Não demorei a me dar conta de que seria pedir

demais, e verti um pouco de água benta em meu vinho de missa: seria Jesus. Mas logo tomei consciência de meu excesso de ambição e aceitei “fazer-me” de mártir quando fosse grande.

Adulta, decidi-me a ser menos megalomaníaca e a trabalhar como intérprete numa empresa Japonesa. Infelizmente era bom demais pra mim, e tive de descer mais um degrau, passando à contabilidade. Mas nada parecia deter minha fulminante queda social. Acabei, portanto, sendo lotada na categoria do nada absoluto. Infelizmente – e eu devia ter sabido – o nada absoluto ainda era bom demais pra mim. Foi quando recebi minha tarefa derradeira: limpadora de latrinas.

Merece espanto tal percurso inexorável da divindade aos banheiros” (NOTHOMB, 2001, p. 99).

134 “– E depois, que pretende fazer?/Eu não podia falar-lhe dos meus manuscritos que estavam preparando. Saí-me

com uma banalidade/ – Talvez eu possa ensinar francês./ Minha superior explodiu num riso desdenhoso/ – Ensinar?! Você? Acha que é capaz de ensinar?/ Abaixei a cabeça/ – Tem razão, ainda não tenho consciência dos meus limites/ – Com efeito. Francamente, que profissão poderia exercer?/ Eu tinha de abrir-lhe caminho para o paroxismo do êxtase” (NOTHOMB, 2001, p. 130).

funcionamento da sociedade japonesa. Como observa Narjoux (2004), muitas vezes não se trata de atos voluntários, mas que tais atos são, na maioria das vezes, inconscientemente provocativos e subversivos: o que é consciente e distanciado na obra é a própria escritura.

Nessa perspectiva, cabe-nos tentar distinguir o humor e a ironia como estratégias discursivas para se ascender ao cômico.