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Freud, em seu texto O estranho (Das Unheimliche), de 1919, afirma que “o estranho é aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho e há muito familiar” (FREUD, 1996, p.238).

O duplo, apesar de nos parecer algo de estrangeiro, estranho a nós mesmos, sempre nos acompanhou desde os tempos primordiais do funcionamento psíquico, estando sempre pronto a ressurgir e provocando-nos uma sensação de inquietante estranheza − uncanniness. Nesta perspectiva, o duplo assume importante papel de mediador entre «duas entidades que não são mais que uma». Contudo, de elemento estruturador, que contraria a pulsão da morte, surgindo como um vestígio do Narcisismo primário passa, evolutivamente, a ser um elemento uncanny, pois virá posteriormente atestar e prenunciar a morte do sujeito ele mesmo (CUNHA, 2008).

67 “A partir de 14 de agosto, a criança magra e sóbria que eu era se tornou um glutão terrível [...]. Em seis meses eu

tripliquei de peso, me tornei adolescente e horrível, eu tinha perdido todos os meus cabelos” (NOTHOMB, 1992, p.194, tradução nossa).

O espelhamento entre Nina e Tach acontece de maneira direta e indireta: eles simbolizam a luta entre homem e mulher, colocando a condição feminina no alvo de análise. Por trás de uma aparente repulsa pela figura feminina, a crítica a esse aspecto é ferrenha. Tach odeia as mulheres porque:

D’abord parce qu’elles sont laides : avez-vous déjà vu plus laid qu’une femme ? [...] Les femmes sont les victimes particulièrement pernicieuses puisqu’elles sont avant tout victimes d’elles-mêmes, des autres femmes [...] Aujourd’hui, c’est dégueulasse : la femme est toujours inférieure à l’homme − elle est toujours aussi laide −, mais on lui raconte qu’elle est son égale. Comme elle est stupide, elle le croit, bien sûr. Or, on la traite toujours comme une inférieure : les salaires n’en sont qu’un indice mineur (NOTHOMB, 1992, p. 74-75).68

Segundo Kobialka (2004, p. 57, tradução nossa):

Desta forma, poderemos observar que o pretendido desprezo pelas mulheres que se manifesta principalmente por réplicas escarnecedoras é uma forma de revolta contra o seu destino, mas também, ou talvez, sobretudo, contra sua concordância com a situação, contra sua posição de vítima [...], sua falta de atividade e seu característico “deixar como está”.

O espelhamento não se limita à questão de gênero: conforme dissemos, Tach pretende provar que ninguém o lê (a ponto de publicar um romance sobre um assassinato real e ninguém ter percebido), como mostra o trecho:

Connaissez-vous la critique que j’ai lue dans un journal, il y a vingt-quatre ans, concernant Hygiène de l’assassin ? « Un conte de fée riche de symboles, une métaphore onirique du péché originel et, par là, de la condition humaine. » Quand je vous disais qu’on me lisait sans me lire ! Je peux me permettre d’écrire les vérités les plus risquées, on n’y verra jamais que des métaphores

(NOTHOMB, 1992, p.156).69

68Primeiro porque elas são feias [...] As mulheres são antes de tudo vítimas perniciosas porque são vítimas delas

mesmas, das outras mulheres. [...] Hoje em dia, é infame, a mulher continua sendo inferior ao homem − continua feia do mesmo jeito − mas dizem que ela é igual. Como é estúpida, ela acredita, é claro. No entanto, continuam a tratá-la como inferior: os salário são apenas um indício (NOTHOMB, 1998, p. 59).

69A senhorita conhece a crítica que eu li em um jornal, há vinte e quatro anos, a respeito de Higiene do assassino?

“Um conto de fadas rico em símbolos, uma metáfora onírica do pecado original e, consequentemente, da condição humana”. Quando eu lhe dizia que liam sem ler! Posso me permitir escrever as verdades mais arriscadas, todos sempre irão ver nelas belas metáforas (NOTHOMB, 1998, p. 120).

Portanto, a ironia de ele ter sido lido por uma mulher (raça estúpida e inferior, na sua concepção) assinala o espelhamento (irônico) em que se encontram as personagens.

De acordo com Gorrara (2000, p.766), a guerra entre os sexos fica evidente no romance: Nina recusa-se a aceitar o cenário do amor trágico pintado por Tach e, para a pesquisadora, isso é “a lesson in submitting male authority to ridicule”70.

No final da obra, Tach anuncia à jornalista que é ela quem deve acabar a sua obra, matando-o da mesma maneira que ele matou a prima. Tach cede à morte para dar vida a uma nova assassina: ele vê nela a sua própria continuação:

Le désir de tuer vient de mourir en moi, et le voilà qui renaît en vous [...] Je suis en train d’assister à un spectacle extraordinaire : je croyais, comme le commun des mortels, que la réincarnation était un phénomène post mortem. Et voilà que, sous mes yeux de vivant, je vous vois devenir moi ! (NOTHOMB, 1992, p.

215).71

Nina obedece Tach: “foi rápido e limpo. O classicismo72 nunca comete erros de gosto [...] E o avatar contemplou suas mãos com satisfação” (NOTHOMB, 1998, p.172).

A ironia deixa novamente de ser uma figura retórica e passa a ser filosófica: a perda de sentido, a falta de senso que conduz as pessoas ao nada.

Dessa forma, a obra se aproxima das características do teatro do absurdo, já arroladas na primeira parte do trabalho e nas palavras da própria autora: “o absurdo não é para mim senão a exploração dos novos lugares da causalidade mais conformes à verdadeira vida do que a lógica cartesiana” (ALVES, 2003).

Com a morte de Tach, Amélie termina o livro com um pequeno parágrafo, criticando ironicamente o fato de Tach ter se tornado um sucesso após o escândalo de sua morte: “Os caminhos que levam a Deus são impenetráveis. Mais impenetráveis ainda são aqueles que levam ao sucesso. Após esse incidente, houve uma verdadeira caça às obras de Prétextat Tach. Dez anos mais tarde, ele era um clássico” (NOTHOMB, 1998, p.172)73.

70 “uma aula em submeter a autoridade masculina ao ridículo” (GORRARA, 2000, p. 766, tradução nossa).

71O desejo de matar acaba de morrer em mim e eis que ele renasce em você [...]. Estou assistindo a um espetáculo

extraordinário: acreditava, como todas as pessoas comuns, que a reencarnação era um fenômeno post mortem. E eis que, diante de meus olhos de vivo, eu a vejo transformar-se em mim (NOTHOMB, 1998, p.166).

Para Claire Gorrara (2000), esse final pode ser também interpretado como uma crítica à própria indústria que é a única a ter vantagens com a morte de Tach.