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A Pastoral Afro foi enquadrada oficialmente como pastoral social, como consta no organograma da CNBB por aquilo que se denomina comissão episco- pal. Ela faz parte de uma das subdivisões da comissão episcopal para o serviço da caridade e da paz. Entretanto, as ambições da Pastoral Afro iam para além do social, stricto sensu, atingindo o sentido socioantropológico do termo religioso, na expressão de um dos seus teólogos fundadores, que diz:

[...] a própria religião é o valor máximo para a vida do negro brasileiro, com sua dor e alegria, a vida perde sentido sem a religião. Para o negro tudo é sagrado: a caça, a agricultura, o nascimento, o casamento, a morte,24 etc. O mistério divi-

no envolve tudo. Não existe separação entre fé e vida, entre causa primeira e causa última. Tudo tem sua causa religiosa e mística. (SOUSA JÚNIOR, 2000, p. 229)

E isso os seus líderes sempre deixaram claro: em documentos:

As culturas afro-brasileiras e indígenas, por suas próprias con- cepções e valores, são abertas à ação evangelizadora. ‘Admitir a necessidade de que a evangelização das culturas indígenas, afro-americanas e mestiças parta do acolhimento de seus valores humanos e das sementes do Verbo, nelas presentes, contrariamente às atitudes de desprezo e opressão praticadas muitas vezes no passado e pelas quais se pede perdão’ (CON-

FERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL, 2002b, p. 45)25

implica

‘procurar, portanto, aproximar-se dessas realidades culturais em atitude de simpatia e compreensão, para também cres- cer no conhecimento crítico das mesmas, para apreciá-las à luz do Evangelho.’ (CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL, 2002b, p. 40)

em pronunciamentos:

Reafirmamos que o diálogo inter-religioso só será fecundo se acompanhado de ações comuns pela justiça, pela defesa dos direitos humanos e pela construção da paz alicerçada na liber- dade religiosa, pois ninguém deve ser levado a crer contra a vontade. Ninguém pode aderir a Deus senão quando atraído por Ele. Por si mesma, a fé exclui, em matéria religiosa, todo gênero de coação por parte dos seres humanos26 [e] Hipote-

camos a nossa irrestrita solidariedade a todas as casas reli- giosas de tradição africana. Estas vêm sofrendo, sem cessar, a violência física e moral dos que, em nome de sua religião, procuram impor a sua mentalidade autoritária. Esquecem que

25 As Diretrizes gerais da ação evangelizadora (DGAE) são regras práticas e de conjunto que o episcopado dá a

cada três anos, observando a conjuntura socioeconômica do país.

26 Mensagem Final – divulgada na grande imprensa – da XVII Assembleia do IMA, realizada em Salvador-BA entre

Paulo, apóstolo dos gentios, ele mesmo, tinha um coração ju-

deu, uma mentalidade grega e uma existência romana.27

em celebrações litúrgicas:

As celebrações afro-inculturadas não são mera folclorização litúrgica, ou seja, ritos e símbolos desvinculados da realidade. Ao contrário, é a da vida, da esperança e do clamor do povo negro sofrido e daqueles que padecem as mesmas penúrias. Portanto, as comunidades negras se recusam a fazer da litur- gia espetáculos. (CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL, 2002b, p. 37)

Embora esta não seja a opinião de uma das antigas fundadoras dos APNs, pois “A Pastoral Afro, a meu ver – aí é uma leitura bem preconceituosa porque eu não conheço, de fato – ela reduziu os ideais daquele movimento dentro da Igreja.” (Ana Rita Santiago da Silva)

E a entrevistada dá as seguintes razões para a sua interpretação:

Parece-me, à distância, que a Pastoral Afro existe para animar a comunida- de, para fazer celebrações bonitas, pra fazer eventos bonitos, não é? Pra enegrecer, aparentemente, a Igreja, a comunidade. Mas, em verdade, ela se torna branca por dentro. (Ana Rita Santiago da Silva)

O enquadramento da Pastoral Afro como uma pastoral social se deu ao fato de apresentar como resultado de sua atuação mais visível junto à comunidade negra a instalação de cursinhos pré-vestibulares, por exemplo, na Rede Educafro – situada entre o eixo Rio/São Paulo – com mais de 100 núcleos. Há outras inicia- tivas sociais dessa pastoral como, por exemplo, a participação nos Conselhos para o Desenvolvimento da Comunidade Negra, organismo da Secretaria de Justiça do Estado da Bahia, São Paulo e Minas Gerais, como estratégia de ação. Percebe-se, então, que há uma dicotomia entre o aspecto social e o religioso no interior da Pastoral Afro-Brasileira, o que foi percebido diante do reclamo de alguns APNs de que efetivamente são pastoral, devido a estarem envolvidos em demandas sociais.

Aliás, essa dicotomia está presente em toda a estrutura da Igreja Católica, pois quando os seus líderes e intelectuais classificam algumas ações enquanto religio- sas e outras enquanto sociais, é porque aquilo que é religioso (oração e práticas de piedade) é classificado como espiritual; e aquilo que é social (lutas, debates, cursinhos, creches, hospitais e etc.) é classificado como pastoral.

Portanto, as ambições de ir além do social e atingir a prática de uma liturgia inculturada é compartilhada, salvo alguns APNs, entre todos os grupos que têm um trabalho de corte racial na Igreja Católica do Brasil. Por conta disso, começou- -se a falar do cultivo de uma espiritualidade afro-católica, basicamente calcada nas expressões de fé popular, como o reconhecimento das benzedeiras, a ritmia do canto da Comunidade da Misericórdia em Itaparica, as cores fortes e a quantidade

de panos ornamentais,28 a água benta, o candelabro, a vela, o molho de folhas de

arueira (Figura 1)29 que serve de aspersório, a folha, o pão e o acarajé da Igreja

do Rosário dos Pretos, bem como a água benta e as fitinhas da Igreja do Bonfim (Figura 2) e a pipoca da Igreja de São Lázaro (Figura 3), as três igrejas em Salvador. A oficialidade restringe os símbolos atribuindo-lhes significado e valor convenien- te – ideológico. Já o negro os ressignifica e amplia os seus significados. Esta noção de espiritualidade, que não era evocada antes, sobretudo nos últimos dez anos, passou a sê-lo e, atualmente, ganha espaço nesses ambientes, a ponto de ser no- tada por estudiosos quando dizem que “[...] a espiritualidade da comunidade ne- gra vai do social à interioridade.” (SOARES apud SOUSA JÚNIOR, 2000, p. 229)

28 Na primeira missa de um padre recém-ordenado realizada no bairro de Santa Mônica, de maioria negra, ele

propôs deixar o altar descoberto durante a celebração. Areação da comunidade foi veemente contra essa atitude.

Capítulo 2

A Pastoral Afro-brasileira e