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Um breve extrato da Mensagem Final lida no III Congresso Nacional das Entidades Negras Católicas (CONENC), realizado na cidade de Goiânia, em 2003, revela o desafio ao qual a Pastoral Afro se impôs: o de reencontrar a alteridade dando seguimento à construção da identidade dos seus afiliados. Não é à toa o constante uso da terminologia “resgate”, nos ambientes de Pastoral Afro.

Para a maioria dos (as) negros (as) a construção e recons- trução da identidade é um desafio, porque constantemente somos agredidos (as), nos aspectos mais significativos em re- lação a uma identidade negra positiva. A identidade de uma pessoa se constrói na interação social e religiosa; ninguém cresce sozinho.1

Entendemos que não se trata tanto de “resgatar” um passado não vivido2

e sim de um passado muito próximo, que para muitos dos membros fundadores desta pastoral ainda está nas suas memórias. Neste sentido, a liderança da Pas- toral Afro não poderia ser ingênua de pensar que se poderia reeditar uma África brasileira, concordando portanto com Gilroy (2001), quando este utiliza a imagem

de um navio em movimento pelos espaços da Europa, América, África e Caribe.3

Diante disso, tudo aponta para levantar-se a hipótese de que, sendo exatamente alguns membros do clero católico negro que criaram a Pastoral Afro, o fizeram para que esta cumprisse a função de restabelecer os laços de uma espiritualidade primeva que havia sido cortada quando da institucionalização do vínculo religioso exclusivo à Igreja Católica, substituindo, assim, os primeiros vínculos religiosos da- dos pela alteridade da comunidade de base pelos vínculos religiosos institucionais

1 Mensagem Final lida no III CONENC, realizado em Goiânia em 2003. 2 Embora se possa contra-argumentar pela via da ancestralidade.

3 Vê-se logo como foi formado o que o Gilroy (2001, p. 38) chama de Atlântico Negro pelo seu caráter

transcultural e internacional: “[...] um sistema vivo, microcultural e micropolítico em movimento – onde lembra-se a circulação de artefatos culturais e políticos como livros, panfletos, etc.”

dos profissionais da fé. É o que sugere pensar o depoimento do Fr. Tatá, quando ele diz que durante a sua infância o seu pai era umbandista, e do Carmelito Cunha que, por algumas vezes, disse ter sido criado pelo orixá Ogun – o orixá ao qual era atribuído o transe de sua mãe biológica.

Estamos, portanto, à procura das razões das reivindicações da pastoral Afro- -Brasileira, e de como se dá o início da construção de uma identidade religiosa, mediada, sem dúvida, pela relação com a alteridade, o que vem ao encontro da concepção sociológica clássica, no que toca à identidade.

A identidade é formada na ‘interação’ entre o eu e a socieda- de. O sujeito ainda tem um núcleo ou essência interior que é o ‘eu real’, mas este é formado e modificado num diálogo contí- nuo com os mundos culturais ‘exteriores’ e as identidades que estes mundos oferecem. (HALL, 2003, p. 11)

As expressões religiosas sincréticas do povo brasileiro, já abordadas em inúmeros trabalhos científicos, nada agradam à hierarquia da Igreja Católica, que as considera como impureza à fé católica. O tipo de pureza exigido pela alta hie- rarquia da Igreja Católica, como o queria o ex-Arcebispo de Salvador, Dom Lucas Moreira Neves, no período de 1988 a 1998, ao pronunciar várias vezes a expressão “pureza religiosa”.

Ora, tanto os estudos acadêmicos socioantropológicos iniciados por Nina Rodrigues em torno da “pureza nagô”, em 1896, quanto os teológicos criados por Boff, em 1981, e Frisott, em 1996, em torno da pureza religiosa, revelam a es- tratégia metodológica da invenção/uso da categoria analítica “pureza nagô” pelo primeiro autor, para melhor compreender a realidade diferenciada, e da categoria analítica “pureza religiosa”, constrangida a tornar-se categoria nativa por setores conservadores da Igreja Católica. A hierarquia católica não considera o fato de es- tar em terras de culturas híbridas onde “As pessoas pertencentes a essas culturas híbridas têm sido obrigadas a renunciar ao sonho ou à ambição de redescobrir qualquer tipo de pureza cultural ‘perdida’ ou de absolutismo étnico. Elas são irre- vogavelmente traduzidas.” (HALL, 2003, p. 89) Diferente postura têm

[...] sacerdotisas e teóricos do candomblé engajados no movi- mento anti-sincrético e reafricanizador que aceitam freqüen-

temente considerar o candomblé – tal como de fato se apre- senta no Brasil – como fruto do processo sincrético imanente a toda história brasileira. (EPEGA, 1977 apud SANCHIS, 1999, p. 179)

De maneira que o problema que se põe aqui não é de natureza ecumênica, o de ver como a Pastoral Afro se situa frente às demais religiões, dado viver num tempo onde há muitas possibilidades de experiências religiosas reconhecidamen- te válidas. Isso implicaria no desafio da alteridade, não só por favorecer o diálogo inter-religioso, mas também no sentido de reconhecer que tal diálogo cria uma outra identidade religiosa nas pessoas implicadas. Tal situação independe da ins- tituição religiosa a que pertencem, pois estabelece-se um outro tipo de vínculo religioso.

O que queremos observar aqui é, de um lado, até que ponto tais experiên- cias inter-religiosas constituem o substrato religioso profundo dos membros fun- dadores da Pastoral Afro, como revela Frei Terêncio:

Minha família, ela tem raízes católicas, como tradição assim... afro-brasileira, tipo, no caso do Rio de Janeiro tem muito a questão da Umbanda, me lem- bro bem do meu pai. E hoje a minha família, ela é dividida, ela tem uma... ela tem toda essa origem e hoje é um pouco pentecostal.

Por outro lado, este amálgama religioso justifica a reivindicação por um diálo- go inter-religioso e demonstra como estes mesmos membros afirmam o seu perten- cimento à instituição hegemônica. Isso para verificar até que ponto a Pastoral Afro cumpriria o papel de fazer a retomada da construção de uma identidade religiosa começada na infância e adormecida por ocasião da decisão vocacional, quando es- ses membros cortaram os primeiros vínculos religiosos, considerando que

A reconstrução do que se pode chamar identidade pessoal

self identity não se faz pela identificação a uma ordem global,

econômica, natural ou religiosa, mas pelo reconhecimento da dissociação dos elementos que outrora formavam uma expe- riência integrada. (TOURAINE, 1999, p. 112)