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O Psicólogo Fernando Braga da Costa, ao longo da pesquisa empírica que realizou junto à Universidade de São Paulo – USP, para elaboração de sua tese de doutorado, vestiu-se de gari a fim experimentar as vivências de humilhação e de invisibilidade dos trabalhadores na limpeza do campus universitário291.

A partir do seu olhar, o pesquisador observou que as tarefas exercidas pelos garis, responsáveis pela varrição dos ambientes da Universidade, difere daquelas executadas pelos

289 GUIMARÃES, Manoel Luíz Salgado. O presente do passado: as artes de Clio em tempos de memória. In: ABREU, Martha de. SOIHET, Rachel. GONTIJO, Rebeca (org.). Cultura Política e leituras do passado: historiografia e ensino de história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 39.

290 Idem.

trabalhadores “nas lixeiras”, aos quais incumbe retirar o lixo armazenado em lixeiras que “são construídas em alvenaria e possuem portas de ferro ou latão. Suas dimensões pouco variam: normalmente, são um metro de profundidade, um metro e oitenta de altura e três metros de comprimento. Todas elas, sem exceção, ficam localizadas obrigatoriamente nas laterais mais escondidas, nos fundos de cada prédio”292.

Tais atribuições assemelham-se àquelas inerentes ao cargo de coletor de lixo urbano no Distrito Federal. Nos termos do Edital de Pregão Eletrônico n.º 2/2018, último edital de licitação publicado pelo SLU para a contratação do referido serviço,

Entende-se por serviços regulares de coleta de resíduos sólidos domiciliares a remoção e o transporte para os destinos indicados pelo SLU/DF, adequadamente acondicionados e colocados pelos geradores em locais previamente determinados, nos dias e horários estabelecidos observados os limites de peso ou volume e atendendo às normas e regulamentos vigentes. Os resíduos sólidos domiciliares compreendem os resíduos de residências e os resíduos de edificações públicas, de comércio, de serviços e de indústrias, desde que estes apresentem as mesmas características dos provenientes de residências, e não excedam volume de 120 (cento e vinte) litros, por dia e por unidade autônoma. Para os resíduos domiciliares compactados foi adotado o peso específico de 500 kg/m3 e para os resíduos domiciliares soltos 166 kg/m3, conforme dados operacionais registrados pelo SLU/DF293.

Conforme salientado no tópico 2.1, as equipes de coleta são compostas por três coletores, aos quais incumbe “apanhar e transportar os resíduos com o cuidado necessário para não danificar as embalagens ou contêineres, a fim de evitar o derramamento dos resíduos em vias públicas”; varrer e recolher imediatamente o lixo, caso haja “eventual queda de resíduo seco na via pública durante a realização do serviço de coleta”; “retirar os resíduos da via e levar até o caminhão de coleta”, sendo vedado arremessar “os sacos (embalagens) de resíduos de um para o outro coletor ou para o caminhão compactador”; bem como “devolver os contêineres vazios nos locais de origem, em pé e com a respectiva tampa”294.

No tocante à rotina de trabalho de esvaziamento de lixeiras, Fernando Braga da Costa descreve com propriedade as reações dos trabalhadores ante o contato direto com o lixo:

Certo dia, Quinzinho e eu estivemos deslocados do grupo de varredores para limparmos a lixeira externa da Faculdade de História. Ainda a

292 COSTA, Fernando Braga da. Homens invisíveis: relatos de uma humilhação social. São Paulo: Globo, 2004, p. 198.

293 Item 3.1. Documento disponível em: http://www.slu.df.gov.br/pregoes-eletronicos-concluidos-2018/. Acesso em 7/1/2020.

294 Itens 3.1.34 a 3.1.39. Documento disponível em: http://www.slu.df.gov.br/pregoes-eletronicos-concluidos-

alguns metros de distância do local, era possível avistar o que nos esperava. Eu não tinha vontade nenhuma de estar ali, mesmo que fosse só para assistir de longe ao procedimento de limpeza: estando a alguns metros do lugar, olhar para o lixo revirado já assustava, causava repugnância. Mas teria de ajudar Quinzinho, e éramos somente os dois. Ali, bem em frente à lixeira, muitos papéis espalhados, revirados, molhados, caixas de papelão (de todos os tamanhos e cores) imundas, rasgadas, plásticos de todos os tipos, restos de comida da lanchonete da faculdade, muitos sacos de lixo (alguns abertos) e todas as bugigangas que as pessoas passam a jogar quando transitam por ali e veem tudo aquilo. Além do que abarrotava os espaços dentro da lixeira, ao redor dali havia três metros de sujeira espalhada pelo chão formando um semicírculo no local, já beirando o estacionamento.

Fedia! Fedia demais, impregnando as narinas, os olhos e a garganta. O cheiro forte, ardido, retorna com as lembranças, ainda acompanha minha memória. Quando chegamos bem perto é que tomei real noção do que era aquilo. As caixas de papelão estavam todas abertas, molhadas, retorcidas. Para chegar ao centro da bagunça, levei um certo tempo: comecei pelas beiradas, progredindo lentamente em direção àquilo. Quinzinho agiu da mesma forma. As pessoas que por ali passavam, mudavam a rota abruptamente, fazendo um “L” ao redor do lixo, tangenciando o local. Foi uma experiência terrível. Sem luvas, éramos obrigados a tocar o lixo com as mãos e muito daquilo espirrava em nossa pele: a sujeira parecia me corroer. Esperava ansioso o momento em que Quinzinho — ele também mostrava-se muito enojado — dissesse “Já tá bom, Fernando. Vamo embora!”, mas isso demorou bastante; ficamos ali mais de hora. O gari fazia caras e bocas, às vezes resmungava alguma coisa, reclamava das pessoas supostamente responsáveis por permitir que a situação chegasse àquele ponto. Interessante, surpreendi-- me com suas reações, imaginava que ele já estivesse acostumado àquelas circunstâncias, imaginava que fosse possível alguém se acostumar àquelas circunstâncias. Idiotia. Eu próprio nunca me acostumaria. Por que com os trabalhadores seria diferente? Por que supomos haver alguém que suporte tudo aquilo295?

Quinzinho expressava claramente sua repulsa: não queria encostar no lixo ou na própria lixeira. Fomos obrigados a tombar o recipiente para poder limpá-lo, não seria possível de outra maneira. Nesse momento, caíram aos nossos pés inúmeras baratas, grandes, escuras; assustadas, ficaram correndo de um lado para outro, ao nosso redor e sobre nossos pés. Atônitos, transeuntes e pessoas que aguardavam o ônibus no ponto ali próximo detiveram-se assistindo àquelas cenas: tinham cara de nojo. Bresser alertou para que lavássemos as mãos: “A gente esquece e põe a mão na boca”. Baratas são companhias rotineiras em nosso dia a dia de trabalho. Meses depois, limpamos as lixeiras nas proximidades do portão principal da Cidade Universitária. Quando Machado puxou o saco de lixo de uma delas, quatro baratas caíram — uma na minha perna, três aos meus pés. Exceto o “estagiário”, ninguém parecia assustado.

295 COSTA, Fernando Braga da. Homens invisíveis: relatos de uma humilhação social. São Paulo: Globo, 2004, p. 200-201.

Tranquilo, um dos guardas ali ainda comentou: “Quando tá calor, elas fica oriçada”296.

No mesmo sentido, Valquíria Padilha, ao pesquisar sobre o trabalho na limpeza de shopping centers, afirma que os trabalhadores lidam diariamente com substâncias como pó, sujeira, líquidos, dejetos e restos de comida. Substâncias que não são apenas materiais, porquanto carregadas “de significados socioculturais como o sentimento de nojo e repugnância”297. A autora ressalta que, “muitas vezes, esse tipo de tarefa impede que os

trabalhadores consigam almoçar, pois eles sentem nojo e não conseguem nem comer”298.

Ante o exposto, é irrefutável que o contato físico com o lixo, seja por meio do tato, da visão ou do olfato, desperta a emoção do nojo. A forma como esse aspecto inerente à existência humana em sociedade é explorado pelo capital será objeto do capítulo seguinte.

2.5.2. Antropologia do nojo: uma emoção básica, essencialmente humana e