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3. DA INVISIBILIDADE SOCIAL À MARGINALIZAÇÃO DA PROTEÇÃO

3.2. O papel da autonomia negocial no trabalho de limpeza urbana do Distrito Federal:

3.2.5. O fornecimento e a higienização de uniformes

A Convenção Coletiva de 2019 prevê, em sua Cláusula Trigésima Quarta, que as empresas fornecerão gratuitamente, no mínimo, 3 mudas anuais de uniformes aos empregados, bem como que “A higienização do uniforme é de responsabilidade do trabalhador, pois os produtos utilizados para a higienização das vestimentas é de uso comum” (Parágrafo Terceiro). De outro lado, o Termo de Referência do Edital de Pregão Eletrônico n.º 02/2018 prevê, em seu item 9.10, alínea “e”, que “A CONTRATADA fornecerá aos empregados que trabalham ao ar livre 1 (uma) capa de chuva por ano.”

Há duas ponderações a serem feitas a respeito do tema “uniformes”. A primeira diz respeito ao fornecimento anual de capas de chuva aos varredores e coletores de lixo. A descrição do item no Termo de Referência não compreende a exigência do Certificado de Aprovação (CA) emitido pelo MTE, consoante determina a Norma Regulamentadora n.º 6 do MTE:

6.2 O equipamento de proteção individual, de fabricação nacional ou importado, só poderá ser posto à venda ou utilizado com a indicação do Certificado de Aprovação - CA, expedido pelo órgão nacional competente em matéria de segurança e saúde no trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego.

O Certificado de Aprovação é documento que tem como objetivo qualificar o equipamento como EPI, autorizando sua utilização para os fins estabelecidos na NR-6. Nos termos da referida Norma Regulamentadora, são exigidos os seguintes equipamentos de proteção individual contra umidade proveniente de operações com uso de água: capuz para proteção da cabeça e pescoço (item a.2, alínea “d”); vestimentas para proteção do tronco (item e.1, alínea “f”); luvas (item f.1, alínea “h”); manga para proteção do braço e do antebraço (item f.3, alínea “d”); perneira para proteção da perna (item g.3, alínea “e”); calça para proteção das pernas (g.4, item “d”).

A partir da observação exploratória do trabalho dos coletores de lixo, cuja metodologia foi descrita no tópico 2.1 desta pesquisa, constatou-se que as capas fornecidas a tais trabalhadores em situações de chuva eram de baixa espessura, o que as tornava frágeis, bem como que não protegiam a totalidade do corpo, o que impossibilita sua utilização pelo período de um ano, como previsto no Termo de Referência.

O que se verifica é que o exercício da autonomia privada por meio da negociação coletiva não foi capaz de garantir o cumprimento das Normas Regulamentadoras do extinto Ministério do Trabalho no que tange ao fornecimento de equipamentos de proteção individual para trabalhadores expostos à chuva.

A segunda ponderação diz respeito à higienização dos uniformes. É evidente que o uniforme utilizado em contato com o lixo precisa de cuidados especiais e permanentes de higiene.

Varredores e coletores trabalham, portanto, em contato permanente e direto com o lixo, de modo que a higienização de seus uniformes não pode ser realizada com as demais roupas pessoais, sob risco de contaminação. A limpeza deve ser muito mais cuidadosa e frequente do que a das vestimentas de uso cotidiano, o que implica em gastos extras para o trabalhador.

Nesse sentido, os seguintes acórdãos do Tribunal Superior do Trabalho sobre a responsabilidade do empregador de proceder à higienização dos uniformes dos trabalhadores:

HIGIENIZAÇÃO DE UNIFORME. CONTATO PERMANENTE COM ÓLEOS E GRAXA. NECESSIDADE DE HIGIENIZAÇÃO ESPECIAL. O Tribunal, amparado no conteúdo fático-probatório delineado nos autos, reformou a sentença para condenar a reclamada ao pagamento de indenização a título de higienização de uniformes, sob o fundamento de que a lavagem da indumentária demanda limpeza diferenciada, em razão do manuseio de óleos e graxas. A jurisprudência desta Corte é no sentido de que o ressarcimento de despesas com lavagem de uniformes de uso obrigatório é devido quando tal procedimento demandar gastos extraordinários como, por exemplo, a utilização de produtos especiais. Considerando que o reclamante exercia a função de operador de produção, em contato permanente com óleos minerais e graxas, o vestuário constitui custo do negócio e, assim, é de responsabilidade do empregador a sua higienização. Precedentes . Óbice da Súmula 333/TST . Recurso de revista não conhecido. (RR-264-07.2013.5.04.0234, 2ª Turma, Relatora Ministra Maria Helena Mallmann, DEJT 19/11/2019).

INDENIZAÇÃO PELA LIMPEZA DO UNIFORME. AUSÊNCIA DE TRANSCENDÊNCIA SOCIAL, POLÍTICA OU JURÍDICA. De acordo com o TRT, o autor não demonstrou ter gastos decorrentes de cuidados especiais com a higienização de seus uniformes. O recurso de revista não oferece transcendência com relação aos reflexos de natureza social previstos no artigo 896-A, §1º, III, da CLT, uma vez que não se refere a direito assegurado aos trabalhadores pelo artigo 7º da CF. Por outro lado, não há demonstração de transcendência política ou jurídica nos termos do artigo 896-A, §1º, II e IV, da CLT, pois não se está diante de questão nova em torno da interpretação da legislação trabalhista, tampouco de decisão proferida de forma dissonante da jurisprudência do TST ou do STF. Aliás, longe de divergir, o acórdão recorrido encontra-se em sintonia com a iterativa, notória e atual jurisprudência desta Corte, de que a indenização pela higienização de uniforme só se justifica quando se tratar de traje especial, que não pode ser lavado em casa junto com as demais roupas de uso cotidiano. Precedentes da

SBDI-1 e de todas as Turmas desta Corte. Agravo de instrumento conhecido e desprovido. (ARR-10016-78.2016.5.03.0087, 3ª Turma, Relator Ministro Alexandre de Souza Agra Belmonte, DEJT 13/12/2019).

AGRAVO DE INSTRUMENTO EM RECURSO DE REVISTA . LAVAGEM DE UNIFORME. O entendimento desta Corte Superior é no sentido de que há obrigação da empresa de custear as despesas com a limpeza de uniforme de uso obrigatório somente na hipótese de essa higienização ser diferenciada e decorrente da natureza da atividade exercida, o que não é a hipótese dos autos. Agravo de instrumento conhecido e não provido. (AIRR- 20403-18.2015.5.04.0231, 8ª Turma, Relatora Ministra Dora Maria da Costa, DEJT 07/01/2020).

No mesmo sentido, os seguintes precedentes das demais Turmas do TST: AIRR-21478- 82.2015.5.04.0202, 1ª Turma, Relator Ministro Hugo Carlos Scheuermann, DEJT 13/12/2019; ARR-11900-39.2013.5.03.0026, 4ª Turma, Relator Ministro Alexandre Luiz Ramos, DEJT 20/09/2019; Ag-ARR-10010-03.2016.5.03.0142, 5ª Turma, Relator Ministro Breno Medeiros, DEJT 05/04/2019; RR-150-34.2014.5.04.0234, 6ª Turma, Relator Ministro Augusto César Leite de Carvalho, DEJT 13/12/2019; Ag-AIRR-20821-04.2016.5.04.0333, 7ª Turma, Relator Ministro Evandro Pereira Valadão Lopes, DEJT 22/11/2019.

Considerando que, nos termos da Convenção Coletiva de 2019, o piso salarial dos coletores e dos varredores é de R$ 1.169,93, não parece razoável que esse custo da manutenção do uniforme, decorrente da própria atividade econômica realizada pela empresa, seja repassado aos trabalhadores.

Além disso, consta da planilha de custos anexa ao edital licitatório o seguinte cálculo de uso mensal de conjunto de conjunto de calça de brim e camisa: ¼ para os trabalhadores ocupantes da função de motorista e 1/3 para os trabalhadores ocupantes das funções de coletor e varredor. Significa dizer que, anualmente, os motoristas recebem 3 mudas de roupas, ao passo que os coletores e varredores recebem 4 mudas.

A diferenciação da quantidade de uniformes fornecidos não parece observar um parâmetro de proporcionalidade em relação às atribuições inerentes às funções de motorista, coletor e varredor. Nos termos do Anexo G do Termo de Referência402, incumbe aos motoristas:

Conduzir automóveis, caminhões, furgões, caminhonetas e outros veículos, no transporte de pessoal, materiais e cargas em geral, zelar pelos mesmos, comunicar formalmente quando perceber defeitos ou quando houver

402 Anexo G (Memorial Descritivo – atividades por tipo de posto de trabalho) do Edital de Pregão Eletrônico n.º 02/2018. Disponível em: http://www.slu.df.gov.br/wp- content/uploads/2018/03/anexo_g_memorial_descritivo.pdf. Acesso em 2/3/2020.

necessidade de manutenção para que sejam tomadas as devidas providencias, preencher boletins de ocorrência e de informações sobre quilometragem rodada, percurso, passageiros e outros dados de controle e executar outras atividades correlatas à função.

Observa-se, da leitura da descrição das atividades, que o trabalhador ocupante da função de motorista não exerce suas atribuições em contato com o lixo, tampouco em ambiente externo, limitando-se à condução de veículos, o que leva a crer que a durabilidade de seu uniforme é muito superior à dos uniformes de coletores e varredores.

O fornecimento de uniformes em quantidade adequada a varredores e coletores, bem como a responsabilização dos empregadores pela higienização dos uniformes, é medida de higiene que se impõe a fim de que seja resguardado o bem-estar físico dos trabalhadores. Isso porque, em um contexto de trabalho em contato permanente com o lixo associado à baixa remuneração, é provável que os uniformes sejam higienizados aquém do necessário à preservação da integridade física dos trabalhadores.

Além disso, a utilização de uniformes sujos ou desgastados pode afetar os sentimentos de satisfação e de realização no trabalho, contribuindo para o desgaste mental do trabalhador na limpeza urbana. De outro lado, reforça o estigma do trabalho com o lixo, refletindo sobre o reconhecimento social da atividade e a visibilidade social do trabalhador.

Conclui-se que há espaço para aprimoramento da Convenção Coletiva no que tange à regulamentação do fornecimento de uniformes, a fim de que sejam fornecidos equipamentos de proteção individual e uniformes em quantidade e qualidade compatíveis com as atividades exercidas em ambiente externo e em contato constante com o lixo. Além disso a Convenção Coletiva, ao atribuir aos trabalhadores a responsabilidade pela higienização dos uniformes, traz cláusula prejudicial à tríplice dimensão do direito à saúde dos coletores e varredores na limpeza urbana do Distrito Federal.