• Nenhum resultado encontrado

Objetivando conhecer melhor os elementos que compõem a estrutura composicional da Jurema Encantada, enviamos, após o nosso segundo encontro (no qual fizemos uma primeira leitura do primeiro movimento da peça), objetivando definir aspectos técnicos e musicais dessa primeira versão da partitura do primeiro movimento. Após isso, enviamos algumas perguntas (por meio de questionário) sobre a estrutura harmônica e a forma que o compositor estava planejando para a obra. Observa-se que a maneira como Guanais desenvolve sua estrutura composicional, embora fazendo uso de elementos presentes no estilo armorial (por exemplo, o uso do modalismo), “mescla-se com aspectos estilísticos da

linguagem moderna” e “afasta-se um pouco da sonoridade característica dos primeiros exemplares que são referência do Movimento Armorial”. Desse modo, está presente em sua composição da Jurema Encantada, a fragmentação das “escalas e modos, temas e padrões rítmicos”, em detrimento da ideia tradicional de tonalidade. Além do uso de elementos seriais em sua composição, Guanais desenvolve o conceito que chamou de forma-árvore, “em que cada material exposto dá origem a novos materiais derivados”. No Anexo A deste trabalho, encontra-se disponível a entrevista realizada com o compositor Danilo Guanais.

Juntamente com o início do primeiro movimento, Guanais me enviou um esquema com várias anotações feitas sobre a estrutura da obra contendo, A: tema; B: a peça seria escrita para baixo acústico solo; C: a dedicatória; D: referência ao autor do texto que motivou a peça e personagens envolvidos na trama. Segue abaixo o arquivo que me foi enviado.

Figura 16 - Esboço do projeto Tracunhaém

Fonte: Guanais (2018).

Na continuação desta página, Guanais define o caráter de cada movimento, dividindo- se o roteiro da história: I Calmo/casamento, II Rapto/conflito e III Climax: Guerra/destrição:

Fonte: Guanais (2018).

Finalmente, conclui o esquema, com o enredo da história, dividido nos três movimentos da peça, embora a peça esteja dividida em três movimentos, percebe-se uma subdivisão em cinco partes, em que o II e III movimentos se subdividem em duas partes, levando-nos a pensar que possivelmente o compositor pretende ampliar o desenvolvimento desses dois movimentos:

Figura 18 - Esboço do projeto Tracunhaém

Fonte: Guanais (2018).

Juntamente com esse material, Guanais enviou a partitura da primeira versão do início do I movimento, da qual trataremos a partir de agora.

Em março de 2018, quando Guanais nos enviou a partitura do início da peça, não havíamos conversado sobre as questões idiomáticas do contrabaixo, ao contrário do processo relatado por Borém (1998) sobre a peça Lucíferes de Eduardo Bértola, em que a colaboração se deu desde o início, procurando definir as possibilidades idiomáticas:

Antes de me mostrar a versão inicial L¹, utilizamos o contrabaixo e um quadro pautado para estudar as possibilidades e graus de dificuldade relativos a dedilhados, mudanças de posição e saltos, cordas duplas, cruzamentos de cordas, harmônicos naturais simples e duplos e timbres diversos como pizzicato, trêmulo e ponticello nos vários registros do instrumento. (BORÉM, 1998, p. 51).

Em nosso caso, essa conversa ocorreu posteriormente, um mês após a entrega da primeira versão. Como veremos, Guanais é bastante detalhista nas indicações de mudança de andamentos e dinâmicas, as modificações ocorridas com mais frequência se deram em relação ao idiomatismo.

Almeida (2017) dispõe na seguinte ordem o processo que ocorre no trabalho colaborativo entre compositor e intérprete:

pelo intérprete. 3. tendo este material em mãos, em sessão individual o compositor organiza e esboça um estudo dedicado a um ou alguns dos problemas técnicos apontados pelo intérprete. 4. o intérprete faz leituras destes esboços, em sessão conjunta, apontando questões sobre os elementos sonoros, técnicos e notacionais do esboço. 5. o compositor, em sessão individual, conclui a primeira versão da peça e envia ao intérprete. 6. o intérprete, em sessão individual, estuda esta versão. 7. em sessão conjunta, o intérprete executa a versão para o compositor e, em seguida, ambos discutem se os trabalhos para este estudo estão concluídos. 8. o compositor, em sessão individual, conclui e edita a partitura (ALMEIDA, 2017, p. 1-2).

Acredito que um dos momentos mais importantes nesse processo é o 7, “em sessão conjunta, o intérprete executa a versão para o compositor e, em seguida, ambos discutem se os trabalhos para este estudo estão concluídos.” (ALMEIDA, 2017, p. 1-2). Porque é nesse momento que o intérprete deverá encontrar as soluções técnicas e musicais para uma boa interpretação. As definições de digitações e expressividade serão de sua responsabilidade, é o seu som que estará agradando ou não ao compositor e a ele próprio. Mas é claro que isso só será possível após todas as outras etapas observadas no estudo de Almeida.

5 O PROCESSO COLABORATIVO NOS TRÊS MOVIMENTOS DA JUREMA

ENCANTADA

Neste capítulo, apresentarei trechos da obra em que, de forma colaborativa, foram feitas modificações na partitura. As questões idiomáticas são colocadas e discutidas com o autor para que possam ser feitas as modificações necessárias na partitura. Observamos juntos compasso a compasso, para ratificar ou não o que está posto na partitura. Inclusive, após a execução da peça, alguns elementos de dinâmica e andamento foram modificados em prol da clareza da execução dos aspectos melódicos e rítmicos.

5.1 O Casamento

No trecho abaixo, figs 19 e 20, no c. 1, sugere-se a modificação da nota sol pedal para uma oitava acima, visto que o compositor desejava que as duas notas soassem juntas, como bicordes, porém opinei que o melhor seria tocá-la uma oitava acima. Esse motivo que inicia o primeiro movimento tem uma característica que reaparece em toda a peça, a nota pedal, “É também muito comum na escrita Armorial, para instrumentos de corda friccionada, a presença de cordas duplas com uso de nota pedal. A nota pedal pode aparecer tanto sustentada como ostinato quanto como pedal rítmico” (NÓBREGA, 2000, p. 5). Como veremos mais adiante, esse artifício possibilita sonoridades diversas para o contrabaixo.

Figura 19 - Primeiro compasso, transposição de oitava da nota pedal G

Fonte: Guanais (2018).

Figura 20 - Primeiro compasso revisado

Nos c. 4 e 5, fig 21, será necessário o uso do polegar nos intervalos de sexta maior Lab-Fa, La-Fa# e Do-Lab, em seguida, na fig. 22. Reescrevemos a digitação necessária para executar esse trecho, o resultado foi positivo:

Figura 21 - Oitavação da nota pedal Sol

Fonte: Guanais (2018).

Figura 22 - Formação de bicorde com uso do polegar

Fonte: Guanais (2019).

No 3º e 4º tempos do compasso 19, fig. 23, foi sugeri uma outra modificação no bicorde Mi-Do, que passa a ser Sol-Do.

No compasso 20, na mesma linha, no último tempo do compasso (também por questões idiomáticas do contrabaixo), elimina-se a nota LÁ aguda, ficando agora apenas as notas Do e Mi, colcheia e semicolcheia, correção feita na fig. 23.

Ainda no compasso 20, que se segue nesse mesmo trecho, o bicorde Fa#-Re, passa a ser escrito Si-Re, correção na fig. 24:

Figura 23 - c. 19, 20 e 21 como escrito originalmente

Figura 24 - c. 19 revisado

Fonte: Guanais (2019).

Figura 25 - c. 20 e 21 revisado

Fonte: Guanais (2019).

No c. 28, fig. 26, no seu 1º e 2º tempos, o tricorde Sib-Sol-Fa será então Sol-Sib-Fa.

Figura 26 - c. 28 no 1º e 2º tempo, como escrito originalmente

Fonte: Guanais (2018).

Figura 27 - c. 28 Modificação no 1º e 2º tempo do compasso

Fonte: Guanais (2019).

A última modificação sugerida nesse trecho da obra, ocorreu no c. 32 da fig. 28, Mi- Si-Si será, então, Mi-Mi-Si:

Figura 28 - Modificação no tricorde do c. 32

Fonte: Guanais (2018).

Figura 29 - c. 32 revisado

Fonte: Guanais (2019).

Na passagem abaixo, Guanais utiliza a escala nordestina e o motivo que ele expõe aqui reaparece no início do segundo movimento, sobre esse escala Queiroz e Holschuh nos dão a seguinte informação:

Uma das principais características da Música Armorial é, justamente, a utilização da assim chamada escala nordestina. Esta escala (seja qual for sua origem) se caracteriza pelo sétimo grau abaixado, podendo ou não apresentar o quarto grau aumentado (QUEIROZ, 2002). Pode-se dizer que se trata, portanto, de uma combinação dos modos lídio e mixolídio. (HOLSCHUH, 2017, p. 28).

Figura 30 - Escala nordestina Lidio b7 ou Mixo #4

Fonte: Nossa.

Na passagem abaixo, Guanais faz uso exatamente do modo de Do mixolídio com quarta aumentada (sétima abaixada Sib e quarta aumentada Fa#), muito característico na música armorial e nordestina:

Figura 31 - Escala nordestina Lidio b7

Fonte: Guanais (2018).

Essa é uma sonoridade característica da música nordestina, presente nos rabequeiros, violeiros e sanfoneiros em geral, como também na música do Movimento Armorial.

5.2 O Rapto

Se considerarmos a prática comum da interação entre compositores e intérpretes na música contemporânea, podemos propor que tanto o estilo quanto as práticas de performance emergem como uma criação coletiva da interação entre as vozes do compositor e do intérprete. (DOMENICI, 2012, p. 175).

O segundo movimento da peça chamada de “O Rapto”, utiliza alguns elementos temáticos do primeiro movimento, porém traz alguns outros elementos inovadores, referentes aos idiomatismos do contrabaixo, como veremos neste capítulo. Antes gostaria de apresentar algumas modificações que foram propostas em reuniões com o compositor, como resultado de adequações às possibilidades idiomáticas.

A partir do segundo movimento, quando algumas questões idiomáticas já haviam sido discutidas com Guanais, pude perceber uma menor necessidade de alterações na partitura, depois da uma primeira leitura. Como afirma Domenici: “[...] o estilo do compositor emerge da interação entre a sua voz e a voz do intérprete, onde ambas são igualmente influenciadas, moldadas e inspiradas pelos aspectos epistemológico, social, material e ecológico da experiência [...]” (DOMENICI, 2012, p. 174). Acredito que essa interação aconteceu significativamente a partir do segundo movimento. Apresentaremos daqui em diante as modificações ocorridas no segundo movimento, bem como alguns trechos musicais que apresentam novidades do ponto de vista idiomático. Na fig. 32 encontra-se a partitura como no original e na fig. 33 com o correção, compasso 4, do segundo movimento, em que as notas Do e Lab são oitavadas para se alcançar um recurso técnico dentro do idiomatismo do contrabaixo:

Figura 32 - Motivo sem a modificação

Fonte: Guanais (2018).

Figura 33 – Motivo revisado

Fonte: Guanais (2018).

O segundo movimento inicia-se com uma variação do motivo já presente no primeiro movimento, baseado no modo Lídio b7, do qual já havíamos falado no capítulo anterior, abaixo se encontram os trechos presentes no primeiro e segundo movimento, figs. 34 e 35:

Figura 34 - Motivo Lídio b7, presente no primeiro movimento

Fonte: Guanais (2018).

Figura 35 - Variação do Lídio b7 reaparecendo no segundo movimento

Fonte: Guanais (2019).

O trecho abaixo, Fig. 36, apresenta o que Nóbrega chama de nota pedal, que é característica do estilo armorial: “É também muito comum na escrita Armorial para

instrumentos de corda friccionada, a presença de cordas duplas com uso de nota pedal. A nota pedal pode aparecer tanto sustentada como ostinato quanto como pedal rítmico” (NÓBREGA, 2000, p. 63).

Figura 36 - Uso de nota pedal

Fonte: Guanais (2019).

Também no segundo movimento, encontra-se um artifício que pode ser observado no estilo armorial, o uso de efeitos percussivos nos instrumentos de corda friccionada. Um exemplo desse uso é encontrado na peça “Toré” de Antônio Madureira, gravada pela primeira vez pelo Quinteto Armorial em 1974, posteriormente, quando foi gravada pelo Quinteto da Paraíba (gravação realizada nos dias 21, 22 e 23 de novembro de 1994 no antigo Cine Bangue), o contrabaixista do quinteto, Xisto Medeiros, adicionou uma percussão extraordinária a essa peça. Perguntado por mim de onde ele havia retirado aquela ideia, ele me disse o seguinte: “Eu cresci numa região em que era comum vermos zabumbeiros tocando nas feiras em formações de trios com o triângulo e sanfona, então, isso faz parte da minha vivência, é uma coisa natural” (informação verbal). Nas primeiras conversas que tive com Guanais, lembrei-me dessa conversa com o Xisto e sugeri que utilizasse elementos percussivos na sua peça. Felizmente ele aceitou o desafio e escreveu esse motivo no seu segundo movimento que transcrevo abaixo. É uma técnica que consideramos inovadora para o nosso instrumento.

Na figura abaixo, há uma melodia se intercalando com o movimento percussivo da mão esquerda, causando um efeito de acompanhamento de um zabumba.

Figura 37 - Uso de efeito percussivo na mão esquerda

Fonte: Guanais (2019).

À princípio, Guanais desejou que fizesse a percussão no tampo, porém, a percussão e o pizzicato com a mão esquerda, no espelho do instrumento foi a solução encontrada quando trabalhamos juntos, e penso obtivemos resultados convincentes.

5.3 A Guerra

Durante o processo de colaboração entre mim e Guanais, ficou claro que houve um processo de amadurecimento, tanto por parte da compreensão do compositor em relação à linguagem idiomática do contrabaixo, quanto da minha compreensão da escrita de Guanais. Desse modo, penso que realizamos uma colaboração em que os atores “estão dispostos a aprender uns com os outros” (CARDASSI at al, 2016, p. 97). Alguns elementos que representavam uma dificuldade para a compreensão da obra, nas primeiras leituras do primeiro movimento, foram se tornando familiares. Penso que também em relação à escrita de Guanais, houve um aproveitamento de elementos composicionais que ao serem testados, eram aprovados em seus resultados.

Esses resultados são descritos por Ray, como existentes dentro do ambiente acadêmico das universidades, buscando “mesclar o conhecimento tácito ao científico em busca de novas possibilidades para os dois profissionais envolvidos: performer e compositor” (RAY, 2010, p. 1). No início do processo colaborativo do primeiro movimento, percebe-se uma quantidade muito grande de adequações que foram necessárias, principalmente por causa dos idiomatismos do contrabaixo. No segundo movimento, mesmo havendo necessidade de adequações na partitura, observei uma menor necessidade de modificações em relação ao que ocorreu no primeiro. A partir daí, penso que o compositor passa a ter uma maior definição da obra e dos caminhos idiomáticos do contrabaixo, definindo rapidamente, os caminhos por onde desejava seguir. Acredito que a nossa intervenção como performer foi importante para esse resultado, possibilitando intervir na construção da peça. De acordo com Ray, fazendo uma comparação com a música executada eletronicamente, é no trabalho colaborativo que o

intérprete tem uma maior oportunidade de intervir: “obras totalmente executadas com suporte eletrônico (ou digital) garantem a precisão da execução da obra. Entretanto, perdem a possibilidade de recriação, de intervenção da visão do performer.” (RAY, 2010, p. 3). A autora também enfatiza o aspecto da criação feita em parceria, segundo ela, o “século XXI apresenta um performer, líder, parceiro por vezes na criação” (RAY, 2010, p. 4). Participar da criação da obra de forma efetiva nos dá uma visão única da peça, proporcionando maiores subsídios para a elaboração da sua performance.

No terceiro movimento, ocorreu uma maior fluência da escrita de Guanais, foram poucas as necessidades de alterações na partitura, acredito que isso se deu, de maneira significativa, pela nossa contribuição como performer.

Nesse terceiro movimento, chamado pelo compositor de A Guerra, podemos observar vários motivos que evocam a preparação para a guerra que, ao se suceder, apresentam um “crescendo”, num aumento de tensão gradativa, ideia reforçada por depoimentos do compositor: os “aspectos melódicos e harmônicos tendem a se relacionar por tensão/relaxamento, velocidade, densidade, caráter, etc., e não por relações temáticas ou ideias harmônicas baseadas em campos tonais definidos” (Anexo A).

Na fig. 38, mot. 1(c. 200), observa-se o início da ideia proposta por Guanais sobre tensão/relaxamento evocada pela guerra, presente no primeiro compasso, nos intervalos Lá-Sí (2ª maior), Lá-Dó (3ª menor), Lá-Lá# (2ª menor), e a terça menor Mi-Sol (3ª menor). Interessante também chamar a atenção para o pizzicato com a mão esquerda, que evocará o som do tambor de guerra durante todo o movimento.

Nos primeiros compassos do terceiro movimento, busquei criar um ambiente sonoro que auxiliou ao que propunha a partitura, ou seja, um som misterioso, que retrate o ambiente de tensão que se apresenta com uma tribo de dois mil índios se preparando para a guerra. Como sabemos, por meio de diversos estudos sobre os povos indígenas do Brasil, há uma ritualidade em todos os momentos de suas atividades, a guerra também é apresentada como uma atividade que se inicia por intermédio de rituais, foi procurando a representação desse ambiente ritualístico que busquei iniciar esse movimento:

Figura 38 - Preparação para a Guerra

Fonte: Guanais

Na fig. 39, mot 2, temos um aumento na tensão gerada nota pedal Ré, que provoca várias tensões entre os intervalos gerados.

O pizzicato está presente, representando o som dos tambores para a guerra:

Figura 39 - Tensão gerada pela série harmônica Ré-Dó# e a nota pedal Ré

Fonte: Guanais

Na fig. 40, compasso 223, houve uma derivação do Mt. 2 gerando exatamente o que Guanais já havia anunciado: “cada material exposto dá origem a novos materiais derivados que, por sua vez, originam outros. O ritmo foi o artifício utilizado para gerar esse novo motivo, como uma variação do motivo apresentado anteriormente:

Figura 40 - derivação do Mt. 2

Fonte: Guanais

É também no terceiro movimento que Guanais faz um uso mais significativo da série dodecafônica.

Arnold Franz Walter Schoenberg (1874-1951), compositor austríaco, foi o criador do dodecafonismo, considerado um dos mais revolucionários e influentes estilos de composição do século XX. No Brasil, essa técnica foi introduzida por Hans Joachin Koellreutter (1915- 2005) (ALMADA, 2008, p. 8). Ainda de acordo com Almada, foi “Santoro o primeiro nome de maior destaque a aderir à nova técnica de composição em doze tons, introduzida no Brasil pelo alemão Hans-Joachim Koellreutter – que se tornaria seu professor em 1940” (ALMADA, 2008, p. 8).

Hartmann (2011) afirma que Santoro e Guerra-Peixe (1914-93) “estavam utilizando sistematicamente a técnica dodecafônica no final da década de 1940” (HARTMANN, 2011, p. 97). Esse autor, afirma também que “As técnicas dodecafônicas no Brasil foram utilizadas com inteira liberdade na manipulação das normas gerais do dodecafonismo, adaptando-as às suas necessidades expressivas” (NEVES, 1984, p. 90). Na construção da Jurema Encantada, observamos igualmente o uso por Guanais do dodecafonismo, porém, “adaptando-as às suas necessidades expressivas”. Em sua entrevista, ele confirma essa ideia: “Não penso em campos tonais bem definidos. A incorporação de elementos seriais ajuda a desestabilizar a noção de centro principal de uma tonalidade” (Anexo A).

Na fig. 41 abaixo, Guanais expõe como pensou a série a partir da qual construiu o terceiro movimento da peça. É interessante notar como o compositor encontrou uma simetria para construir as 12 notas da sua série. As quatro notas das extremidades do gráfico DÓ, RÉ#, FÁ# e LÁ (seta azul), formam um acorde diminuto. As quatro notas internas do gráfico também formam outro acorde diminuto SI, RÉ, FÁ e SOL# (seta vermelha). Com a intenção de aplicar a simetria na linguagem serialista, Guanais traçou então linhas diagonais para definir a séria desejada:

Figura 41 - Construção da Série Dodecafônica

Fonte: Guanais.

As 12 notas (na segunda linha da tab. 7 abaixo) resultantes da série, seguindo o gráfico a partir da nota DÓ, ficou assim então. As notas escritas em minúsculo são as que aparecem no gráfico da tab. 7, mas que foram escritas enarmonicamente para completar a serie. A primeira linha da tabela abaixo indica os intervalos existentes entre as notas da série. A terceira linha indica a disposição dos graus da séria entre 0 e 11:

Tabela 7 - Graus e semitons da Série Dodecafônica Semitons resultantes da série original 2 3 2 2 1 6 1 2 2 3 2 f Série Original DÓ SIb lá# DÓ# SI LÁ SO# RÉ MIb ré# FÁ SOL MI FÁ# Graus da série original 0 10 1 11 9 8 2 3 5 7 4 6 Fonte: Guanais

Guanais dividiu então a sua série em três tetracordes (T1, T2 e T3) e dois hexacordes (H1 e H2), como disposto na tab. 8 abaixo:

Tabela 8 - Tetracordes e Hexacordes da Série Dodecafônica

Tetracordes 1 Tetracordes 2 Tetracordes 3

DÓ- SIb (lá#)- DÓ#- SI LÁ- SO#- RÉ- MIb (ré#) FÁ- SOL- MI- FÁ#

Exacordes 1 Exacordes 2

DÓ- SIb (lá#)- DÓ#- SI- LÁ- SO# RÉ- MIb (ré#)- FÁ- SOL- MI- FÁ#

Fonte: Guanais

Além disso, Guanais utiliza o (RH1), retrógrado do hexacorde 1 e o (RH2), e o retrógrado do hexacorde 2, como na fig. 42 abaixo:

Figura 42 - Ilustração dos tetracordes e hexacordes da Séria Dodecafônica

Fonte: Guanais

Nessa frase que conclui o terceiro movimento, Guanais utiliza o tetracorde 2 (T2), como o retrógrado do exacorde 2, mais o retrógrado do hexcorde 1, (RH2+RH1):

Figura 43 - Exemplo da séria usada por Guanais

Fonte: Guanais (2019).

Esses acima são os últimos compassos da peça, concluída exatamente com um motivo construído a partir da escala dodecafônica.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O interesse dos compositores em relação ao contrabaixo tem se ampliado a partir dessa segunda década do século XXI e a contribuição do trabalho colaborativo tem sido significativa. Pode-se considerar que grande parte desse fenômeno deve-se à busca cada vez maior pelo trabalho colaborativo entre compositor e intérprete e, em grande parte, pela iniciativa do performer, “tomando a frente”. O nosso trabalho colaborativo com Guanais se desenvolveu durante quase dois anos, iniciando-se em dezembro de 2017, quando começamos um percurso que foi aos poucos se modificando e ao mesmo tempo, ampliando-se. Outro tema que surgiu naturalmente durante o processo de colaboração, diz respeito a importância da visão do intérprete para a definição de aspectos idiomáticos, penso que para que esse processo dê certo, é preciso haver uma abertura para diálogo e confiança mútua, nas referências encontradas para este trabalho, vimos que as relações entre compositor e interprete são consideradas fundamentais para que o processo no trabalho colaborativo obtenha bons

Documentos relacionados