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Júlio Medaglia tem carreira longa dentro do universo musical não somente brasileiro, como mundial e transita com maestria entre a música popular e a erudita. É regente, compositor, arranjador e ensaísta, além de apresentador de programas de rádio e televisão. Com Hans Joachim Koellreutter estudou regência na Universidade Federal da Bahia e, logo depois, foi para Europa, onde seguiu seus estudos pela Universidade de Freiburg. Foi amigo e tradutor de Joachim Ernst Berendt, importante crítico de jazz e produdor musical da Alemanha e, de volta ao Brasil, esteve presente em movimentos musicais importantes, como a Tropicália e a Música Nova. Escreveu dois livros que mostram o conhecimento musical abrangente que possui: Música Impopular e Música, maestro! Do canto gregoriano ao sintetizador.

Conhece toda a história da música ocidental e matém uma postura crítica diante do cenário musical contemporâneo. Nesta entrevista, ele fez questão de apresentar todo o cenário de onde surgiu a música popular urbana e afirmou que a música, hoje, acabou, uma vez que os músicos estão perdidos diante de tantas informações soltas. Para ele, os meios de comunicação estão brigados com a música, fato que prejudica ainda mais a assimilação e o direcionamento de tantas idéias que rondam o cenário cultural nestes anos 2000. Júlio começa esta entrevista, então, lá nos primórdios da música popular para explicar sobre as origens dessa música. Com vocês, o maestro:

Em primeiro lugar, o Jazz e a Música Popular Brasileira são filhos da mesma mãe, ambos vieram da música de salão europeia que, chegada no nos Estados Unidos, também, através do rio Mississipi, se instalou naqueles butiquins, onde os marinheiros, músicos e imigrantes faziam suas orgias sonoras. Era um ambiente propício para isso, onde muito da informação musical era procedente da música de salão européia. Importada tanto pelos Estados Unidos, quanto pelo Brasil. A diferença na assimilação se deu na pronúncia desenvolvida em cada país: junto do negro brasileiro essa linguagem musical caminhou no sentido do choro, a nossa música instrumental, mais voltada para o melodismo brasileiro, porque no Brasil, um país latino e por isso melancólico, a tendência é ser mais melódico. Com o negro americano, essa música se transformou em uma nova linguagem. O jazz desenvolveu ainda mais o lado instrumental, evoluiu mais neste sentido. Os Estados

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Unidos são um país mais rico, com mais instrumentos, mais recursos pra se fazer musica. Então a instrumentalidade se desenvolveu mais. O jazz ficou mais amplo em termos de linguagem. No livro que eu traduzi, O Jazz: do rag ao rock, do Berendt,

fica claro que nos EUA, a cada década o jazz se transformou em um estilo diferente. E no Brasil não tivemos tanta variedade. Nós temos uma musica inspiradíssima, mas a tendência é sempre cair no melodismo. Aqui, quando a música não é muito criativa, cai no melodismo.

O inicio do século começou com Chiquinha Gonzaga, praticamente. Nascia uma cultura brasileira mais espontânea, de origem das ruas, que nasceu e, de repente, ganhou status social. Já na segunda década foi menos, porque aí teve a guerra, foi um período mais melódico, foi quando começaram a chegar aquelas primeiras músicas da Europa. No final da segunda década surgiu o chorinho, aí toda a década de 20 foi fortíssima com Pixinguinhas da vida, com todo aquele vigor da música instrumental, que também era influencia norte americana. Porque o pessoal soltou a franga, né? Acabou a guerra, estava todo mundo feliz, todo mundo livre. Não tinha mais conflitos no mundo. Essa felicidade trouxe uma década de 20 bastante revolucionaria e espontânea, correspondente à segunda metade do século, na década de 60. Os anos 20 foram brilhantes e cheios de informações novas e de uma música instrumental rica. Na década de 30, esse entre guerras caiu num certo melancolismo, também na musica clássica. Não surgiu o neoclassicismo, né? Com todos os compositores choramingando o passado, copiando o passado. Vila Lobos imitando Bach. Os compositores norte americanos que não tinham tido classicismo faziam uma música pré-clássica. Nós estamos falando de um período de nostalgia. Aí chegaram os anos 40, explodiu tudo de novo. Nasceu o rádio e os meios de comunicação jogaram tudo para cima. No finalzinho dos anos 30 surgiu o swing, nos

Estados Unidos, que deu uma grande agitação. Ele não só apresentava altíssimo nível técnico de execução, como também era a musica popular americana da época. Com o aperfeiçoamento do rádio e do disco essa fúria toda se internacionalizou. Mas nos anos 50 já caiu outra vez no rame rame, aqui no Brasil, sobretudo;

enquanto nos Estados Unidos veio, neste final dos anos 50, o rock, mais dançante.

Aqui caiu no “ninguém me ama, ninguém me quer”, aquelas músicas trágicas, do Lupicinio Rodrigues, Maísa, Wilson Batista, Cauby Peixoto: “ah não deu certo”. “A Conceição veio do morro, virou puta na cidade e tal...” Depois, cansados de tanta

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tragédia, no final dos anos 50, surgiua Bossa Nova, que foi massacrada, na época. Todo esse pessoal que escreve livro sobre a Bossa Nova, que fala as melhores coisas; na época, caia de pau em cima.

Bossa Nova era um fenômeno paulista. O João Gilberto fez um dos primeiros programas de televisão aqui em São Paulo, na TV Tupi. Era aplaudidíssimo aqui. Walter Silva tinha um programa na rádio bandeirantes, que corria no Brasil inteiro:

Na cadeia verde amarela, que fazia um bruta sucesso. Do sucesso desses

programas é que levaram o Jobim para a tevê. Ele fazia o Bom Tom, onde, sentado

no piano, tocava com amigos em volta, fazendo aquela Bossa Nova bem transparente, rarefeita, econômica e que tinha influencia do jazz, porque, na realidade o jazz tinha uma harmonização mais moderna. Mas isso não quer dizer que era cópia do jazz. Ela tinha aprendido com o jazz e fazia uma musica mais sofisticada, de câmara. Porque o jazz, naquela época, também era uma música cool.

A Bossa Nova era enxuta, equilibrada, transparente e econômica, assim como as linhas de Niemeyer e a poesia Concreta. Tudo era enxuto, o cinema também, principalmente o francês. Não tinha grandes produções, se economizava no roteiro. Foi um período de concentração de elementos, de implosão de elementos. E assim foi a Bossa Nova que praticamente acabou com todo aquele rame rame e fez nascer

aquela música, feita por jovens da Zona Sul do Rio de Janeiro, que tinham estudo universitário, compravam discos, ouviam coisas. Eles também tinham formação no jazz, conheciam aquelas harmonias todas e tocavam no violão, no piano, etc. Era uma musica popular mais moderna. Isso tudo fez parte de uma grande evolução coerente.

No final dos anos 60, a música explodiu mais uma vez com o Tropicalismo. Aquilo que no início tinha sido implosão virou explosão. Eu participei, fiz arranjos que davam voz, na música brasileira, para tudo quanto era elemento aparentemente não musical. Cabia tudo ali dentro: música fina, cafona, de vanguarda, de retaguarda, grito, apito, canto, riso, portunhol, latim, etc... Tudo que era extremo, mesmo os incompatíveis e aparentemente antagônicos, apareciam juntos numa mesma música. Foi um momento de grande criatividade, que realmente trouxe uma importância muito grande para música popular brasileira, que puxava o carro da movimentação cultural do Brasil.

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Nos anos 70 já caiu outra vez no rame rame: Joana, Simone, Marina e Ângela Rô

Rô voltaram a choramingar outra vez. Mas nos anos 80 explodiu de novo com Arrigo Barnabé, Itamar Assunção e esse tipo de gente. Arrigo Barnabé foi líder desse movimento todo. Na década de 90, outra vez, caimos no rame rame com as duplas

caipiras, que no fundo não faziam música sertaneja, coisa nenhuma. Aquilo não passava de um bolerão brega de puteiro de cais de porto. Tinha também aqueles falsos pagodes. Todos eles juntos não valem uma pausa do Cartola. E, assim, a música brasileira foi, de década em década, evoluindo.

- E agora nos anos 2000, como você percebe a música?

Agora tá tudo misturado, porque a música no Brasil acabou. Os meios de comunicação se afastaram da musica brasileira e perdeu-se uma relação produção- consumo. Nas rádios, só porcaria. Nas televisões aboliram completamente a música. No horário nobre não tem absolutamente nada. Na Globo, a última coisa que

apresentaram de bom no horário nobre foi Chico e Caetano, em 1986. De lá pra cá aboliram a música, completamente. Nem no Fantástico você vê uma pessoa cantando ou tocando violão, nunca tem uma única música. Às vezes morre alguém, aí colocam o cara lá, leva 4 segundos e já tiram do ar. Eles odeiam música. O grande desafio do século XXI é voltar a acontecer uma relação entre os maravilhosos meios de comunicação e essa tecnologia sensacional, com o talento musical. Atualmente essas coisas não estão sabendo como se relacionar.

- Os artistas das vanguardas brasileiras, Bossa Nova e Tropicália, foram ajudados pelos meios de comunicação? Fabricados por eles?

Ajudados, não. Os meios de comunicação é que faziam questão de participar daquilo. Afinal, desde que o rádio foi criado no Brasil, sempre exibiu o que havia de melhor. Você pode imaginar que coisa maravilhosa: em 1936 cria-se uma rádio no Rio de Janeiro e Radamés Gnattali, Guerra-Peixe, Claudio Santoro, Lyrio Panicali, Gabriel Migliori, os melhores músicos do Brasil, estavam escrevendo arranjos para ela. Orquestras sinfônicas eram criadas para tocar ali. Eles tinham um senso de responsabilidade em relação ao público consumidor que os fazia oferecer para o ouvinte o que havia de melhor. Depois Getúlio Vargas percebeu que aquele circo era útil para ele, encheu a rádio nacional de dinheiro. E ela dava lucro. Foi a grande

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universidade da cultura popular brasileira musical, que tinha realmente um altíssimo nível. Os arranjos, os participantes, as orquestras...

A música brasileira, na década de 60, também teve a tevê como divulgadora. O que havia de melhor ia pra televisão. Eu participei dos festivais da TV Record. Eu me lembro, por exemplo, que o festival que foi considerado o mais importante e criativo de todos, que foi o de 67, deu 94 pontos de audiência, foi parar no Guinness Book. O Paulinho Machado de Carvalho, dono da TV Record, que morreu agora, mandou colocar o boletim do ibope de 94% num quadro e dependurou na parede, porque foi o maior ibope da história. Quer dizer, quanto mais subia a qualidade, mais subia a audiência. Uma prova de que o brasileiro realmente é musical e sabe identificar o que é bom. Ou seja, não foi uma coisa forçada pelos meios de comunicação. O problema é que, hoje, o mundo inteiro esta baseado na pancada, na adrenalina. Você liga a televisão, assiste a dez canais de cinema e só o que se vê é violência atrás de violência, uma pior que a outra. Então a música brasileira também partiu para fazer coisas desse tipo, do ponto de vista mercadológico, mais simples. Não sei o que toca nas rádios, mas de qualquer maneira, eles acham que, baixando o nível a coisa vende mais, quando a historia prova exatamente o contrário: quanto mais subir a qualidade, mais os meios de comunicação vão lucrar. A Record ganhava muito dinheiro com as Elis Reginas da vida.

Os artistas brasileiros é que não souberam corresponder a esse ritmo de consumo, ficaram felizes ganhando milhões e milhões, sempre aparecendo na mídia. Uma vez eu até falei com o Paulinho Machado de Carvalho: “olha, segura essa turma aí, que nem Frank Sinatra, se cantar toda noite aqui na TV Record você vai aguentar depois de algum tempo”. Aí chegou um ponto que foi cansando, ninguém conseguia mais ouvir a Elis Regina. E isso não tem nada a ver com a ditadura. Absolutamente nada. A ditadura não atrapalhou em nada a coisa. Ao contrário, o período mais criativo da musica brasileira dos últimos anos foi exatamente no período áureo da repressão. - O nacionalismo exacerbado de Getúlio Vargas influenciou na difícil aceitação desses movimentos vanguardistas, no Brasil?

Esse nacionalismo era justificável, porque existia a Grande Guerra Mundial, era uma época em que os nacionalismos no mundo inteiro estavam sendo exaltados. Mas

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existiam os Pixinguinhas da vida que adoravam ouvir os músicos de jazz, eles se vestiam iguais a eles, faziam grupos semelhantes aos de King Oliver e Hot Five lá de Nova Orleans e todos aqueles grupos de jazz americanos.

- Isso falando dos músicos, porque a realidade das críticas jornalísticas era outra... Esses críticos primitivos, porque, com raríssimas exceções, nós nunca tivemos grandes críticos. Era fácil ouvir o João Gilberto tocando harmonias mais carregadas e dizer: “ah! isso é jazz”. Fácil dizer isso. No entanto, o pessoal do jazz, quando ouviu o João Gilberto e o Jobim, ficou de butuca em cima deles. Os jazzistas sugavam os músicos brasileiros, tiravam, arrancavam aquela musicalidade. Há 40 anos nenhum musico influenciou tanto o jazz nos Estados Unidos quanto João Gilberto, uma admiração absolutamente fora do comum. E ele ganhou e continua ganhando cachês astronômicos. Nós influenciamos mais. Nenhum músico do cool jazz foi tão cool quanto João Gilberto. Quem é que fazia aquela coisa tão anti-

musical como ele? Uma vez eu fiquei hospedado lá na casa do João Gilberto e o Gil Evans, aquele que foi o grande revolucionário da orquestração, ficou impressionando quando ouviu ele tocar. Quer dizer, ao contrário, a música brasileira é que influenciou muito o jazz e com elementos humanos, inclusive. Quando Egberto Gismonti e César Camargo Mariano me ligaram pedindo conselhos para os shows que fariam nos Estados Unidos, eu disse: “esqueça o piano horizontal. Pense no piano vertical. O que vocês sabem fazer é de cima pra baixo, é fazer ritmos brasileiros em um piano percussivo, porque o piano horizontal é com eles, só eles correm de um lado para o outro com tanta desenvoltura”.

- Como se deu o novo espírito crítico trazido pelos concretistas, Augusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari, no Brasil?

Esse pessoal foi quem entendeu a música brasileira melhor que os críticos. Eu frequentava a casa deles duas vezes por semana. Eles criaram a poesia concreta e eu criei as oralizações da poesia concreta, fazia aquelas letrinhas virarem som, inventei umas partituras onde seria possível oralizar aqueles poemas. A gente convivia muito. Quando eu os conheci, para minha surpresa, percebi que eles entendiam mais de música do que todos nós. Porque eles olhavam a música de fora e tinham uma visão muito aprofundada de todas as outras manifestações artísticas.

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Eles viam a música como fenômeno cultural, com muito mais liberdade. Investigavam as grandes linguagens musicais do século XX, mais do que todos nós. Augusto tinha todas as gravações de Schöenberg, Webern, Alban Berg, que não tinha na casa de nenhum músico. Foi lá que eu ouvi pela primeira vez os quartetos de Schöenberg, Pierrot Lunaire do Schöenberg, uma gravação maravilhosa. Eram

coisas assim que eles pesquisavam, e tinha a ver com a pesquisa da arte de vanguarda do século XX. Pra eles a música se enquadrava dentro desse quadro revolucionário que foi o século XX, século mais revolucionário da história. Eles nos ensinavam que Erik Satie era o precursor do século XX, embora satirizado por nós, que dizíamos que sua obra era igual a sopa de quartel, dez gramas de carne e o prato cheio de água. Para os concretos, aqueles 20 gramas de música era uma anti- música em relação à Mahler.

Muitos críticos não tinham liberdade suficiente para poder observar todas aquelas transformações com o distanciamento que a coisa necessitava, ficavam presos em algum lugar, como acontece no jazz: tem gente que acha que vai até certo ponto, que termina em determinada época, ou então acredita que só suas raízes são verdadeiras. O jazz, quando chegou aos anos 60, seu período free, diluiu uma série

de componentes que faziam parte de uma linguagem jazzística. Essa desintegração houve na música clássica, também. E a música virou happening, virou tudo. O final

do século XX foi o período da diluição em todas as áreas. Todos os sistemas montados foram desmontados. Quando Caetano e Gil foram presos, logo depois de soltos, fui visitá-los, e sabe o que disse o geral para eles? “Vocês, com esse negócio de fazerem da realidade uma pasta informe, diluírem valores constituídos, estão agindo como uma das formas mais modernas de subversão, talvez a única”. Quer dizer, os milicos entenderam mais do que ninguém como é que a coisa funcionava. O duro veio depois de tanta abertura, depois de tanta liberdade, depois de tanta coisa se misturando... Ficou muito difícil disciplinar uma idéia para trabalhar em cima dela. Isso ninguém resolveu. Nem o jazz, nem a música brasileira, nem os compositores de música erudita, nem ninguém. Nem o próprio cinema. Ficou difícil concentrar tanta poluição, tantos elementos soltos, para trabalhar numa idéia e disciplinar essa idéia. Tudo está tão solto, tem tanta informação, que fica difícil encontrar caminhos. A música não tem mais tendências, aliás, nenhuma arte de modo geral.

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