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CAPÍTULO II – MAU TRATO INFANTIL FAMILIAR E SOCIAL

EPIDEMIOLÓGICAS

Nas últimas décadas, as pesquisas realizadas no domínio da violência e especificamente da violência na infância têm contribuído para a construção de uma base conceptual nesta área, assente na evidência científica. De facto, a necessidade de haver um consenso na sua definição conceptual e operacional tem mantido aceso debate na comunidade científica que procura construir linhas orientadoras que ajudem a definir o mau trato infantil e a desenvolver políticas e programas de treino apropriados, tendo em vista a sua prevenção e a promoção do bem estar infantil.

Assim, especialmente a partir dos anos 90, a definição conceptual do mau trato infantil, a sua tipificação, a definição dos seus indicadores e a sua interpretação têm sido uma preocupação de entidades, investigadores e profissionais que diariamente lidam com crianças vítimas de acções maltratantes (Calheiros & Monteiro, 2000; Duncan, 2001; Aracena, Balladares, Román & Weiss, 2002).

Uma análise sistemática da literatura, permite constatar que a conceptualização dos construtos de mau trato e negligência tem sido feita com base no julgamento dos comportamentos parentais (actos ou omissões), a partir dos efeitos resultantes destes comportamentos na criança ou nos efeitos decorrentes da interacção entre a criança, os pais e a comunidade. É exemplo desta concepção a definição apresentada por Calheiros e Monteiro (2000) ao referirem o envolvimento de:

“ (…) três tópicos interrelacionados: 1) as dimensões ou subtipos em que se organizam as diferentes formas de mau trato; 2) os critérios com que se fazem as definições (comportamentos parentais versus as consequências para a criança); e

74 3) os objectivos que as próprias definições servem - intervenção clínica ou diagnóstico para decisão judicial.” (p. 149).

Numa perspectiva sociológica, Almeida (1998) refere que o conceito de mau trato implica um juízo de valor neutro, socialmente mediado, sobre uma situação de infância. Considera não ser suficiente que o comportamento do adulto face à criança seja apreciado como prejudicial, mas que seja julgado desajustado socialmente por violar normas sociais e padrões de comportamento prevalecentes numa comunidade.

Na perspectiva de Barroso (2004) o mau trato infantil pode ser definido como a:

“existência de um sujeito em condições superiores (idade, força, posição social ou económica, inteligência, autoridade) que comete um dano físico, psicológico ou sexual (de forma intencional, não acidental), contrariamente à vontade da vítima ou por consentimento obtido a partir da indução ou sedução enganosa” (p. 4).

Os actos de mau trato podem ser causados por omissão, supressão ou transgressão aos seus direitos e definidos legal ou culturalmente. Segundo a autora, citando Lourenço, Lisboa e Pais (1997), estes variam de acordo com os contextos, os critérios usados no julgamento e o seu significado temporal e espacial. Esta opinião foi também referida por Duncan (2001) e Aracena, Balladares, Román & Weiss (2002) e partilhada por Maćkowicz (2007) ao afirmarem que a sua definição depende do critério adoptado, por exemplo, o tipo de comportamento, as intenções do agressor ou efeitos da violência, podendo a sua abordagem ser diferente consoante o país e a cultura.

Algumas organizações de apoio à infância também têm feito um esforço no sentido da clarificação do conceito. O Centro Internacional da Infância de Paris defendeu que mau trato era qualquer acto que privasse as crianças da sua liberdade e dos seus direitos ou que dificultasse o seu desenvolvimento harmonioso, podendo ser por acção ou omissão e nele intervir indivíduos, instituições ou a sociedade (Asociación Murciana de Apoyo a la Infancia Maltratada, 1996).

Apesar da diversidade de definições, o conceito proposto pela WHO e ISPCAN (2006) reúne consensos no seio da comunidade científica. Este é definido como:

“todas as formas de mau tratamento físico e/ou emocional, abuso sexual, negligência ou tratamento negligente ou comércio ou outra exploração, resultando em ofensa actual ou potencial para a saúde da criança, sobrevivência, desenvolvimento ou dignidade no contexto de uma relação de responsabilidade, confiança ou poder” (p. 9).

De acordo com Dausen (2006), as agências de protecção infantil, nomeadamente a National Clearinghouse on Child Abuse and Neglect Information, apontam que a presença de um único sinal de mau trato não pode necessariamente provar que a criança é maltratada, contudo a combinação de vários sinais ou a sua ocorrência repetida implicam um olhar mais atento, salientando ainda que os quatro tipos de maus tratos são muitas vezes encontrados combinados entre si, em vez de isolados.

Habitualmente, o quadro de referência tipológica da violência é dividido em três categorias definidas em função dos contextos em que ela ocorre (Krug et al., 2002): a violência auto-dirigida (a vítima e o agressor são a mesma pessoa), a violência interpessoal (esta categoria abarca a violência familiar, a intimidação entre pares, sejam as cometidas por crianças, parceiros ou adultos e a comunitária, em que os agressores podem ser conhecidos ou estranhos à vítima) e a violência colectiva (cometida por grandes grupos, podendo ser divida em social, política e económica).

Em relação aos autores do mau trato, estes podem ser familiares da criança, extra- familiares e institucionais. No primeiro caso, os autores são principalmente familiares em primeiro grau e no segundo caso, não há uma relação de parentesco entre ambos. Do ponto de vista institucional, os maus tratos são provocados por instituições e pela sociedade, isto é, não há um sujeito concreto responsável mas um conjunto de circunstâncias na vida dos progenitores que impedem a atenção ou cuidados adequados à criança.

Quanto ao momento em que ocorre o mau trato, ele pode ser pré-natal quando acontece antes do nascimento ou pós-natal, se ocorre durante a vida extra-uterina.

Transversalmente a estas categorias, os actos perpetrados, quanto à sua natureza, podem ser de ordem física, sexual, psicológica e de privação ou de negligência (Krug et al., 2002; Aracena, Balladares, Román & Weiss, 2002; Crosson-Tower, 2003; Magalhães, 2005; Cicchetti & Toth, 2005).

76 De facto, no que concerne às acções concretas, a maioria dos investigadores concorda com a definição proposta nos anos 90 por Barnett et al. como é referenciado por Cicchetti e Toth (2005) que distingue quatro categorias no mau trato infantil: o abuso físico que envolve as lesões físicas causadas por situações não acidentais, o abuso sexual que inclui o contacto sexual ou a sua tentativa levada a cabo por um adulto; o mau trato emocional que envolve a não satisfação das necessidades emocionais da criança e a negligência que abrange a falência em providenciar os cuidados mínimos e a ausência de supervisão.

Apesar deste consenso, alguns autores, nomeadamente Moura et al. (2000) e Hockenberry, Wilson e Inkelstein (2006) mencionam um quinto tipo de mau trato que designam por mau trato por procuração ou Síndrome de Munchausen.

Numa perspectiva de harmonização internacional a WHO e ISPCAN (2006), uniformizaram a tipificação dos maus tratos enquadrando-os só em quatro categorias: abuso físico, sexual, emocional e psicológico e negligência.

Em Portugal, a Comissão Nacional de Protecção de Crianças e Jovens em Risco (CNPCJR) e as Comissões de Protecção de Crianças e Jovens (CPCJ) assumem um papel de relevância no que diz respeito ao sistema de protecção das crianças e jovens em perigo. Por isso, tendo o dever e a responsabilidade de promoção, defesa e respeito dos direitos das crianças, consideram que a criança ou o jovem está em perigo quando se encontra numa das seguintes situações (CNPCJR, 2005):

 Está abandonada ou vive entregue a si própria;

 Sofre maus tratos físicos ou psíquicos ou é vítima de abusos sexuais;

 Não recebe os cuidados ou a afeição adequados à sua idade e situação pessoal;

 É obrigada a actividade ou trabalhos excessivos ou inadequados à sua idade, dignidade e situação pessoal ou prejudiciais à sua formação ou desenvolvimento;

 Está sujeita, de forma directa ou indirecta, a comportamentos que afectem gravemente a sua segurança ou o seu equilíbrio emocional; e/ou,

 Assume comportamentos ou se entrega a actividades ou consumos que afectem gravemente a sua saúde, segurança, formação, educação ou desenvolvimento sem que os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de factos se oponham adequadamente com o objectivo de corrigir a situação.

Neste sentido, e para uma melhor identificação das crianças em situação de risco, as entidades com responsabilidade em matéria de infância procuraram operacionalizar conceptualmente as situações de perigo para a criança e jovem, explicitando os seus indicadores e requisitos (Quadro 1).

78 Quadro 1: Tipologia das situações de perigo para a criança e jovem

DEFINIÇÃO INDICADORES REQUISITOS