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26. Por fim, eu gostaria de registrar os teus comentários sobre a tua participação na minha pesquisa e também sobre o questionário Se há alguma questão não contemplada e sobre a qual tu gostarias de falar a respeito,

3.1. P ANORAMA : INDICADORES

3.2.2 A GERAÇÃO DAS PIONEIRAS

3.2.2.2 V ERA DO V ALE P EREIRA E O GRUPO DE ENGENHEIRAS DA MECÂNICA

Um dos mais antigos prédios da Universidade Federal de Santa Catarina é conhecido como o bloco ‘B’ da Engenharia Mecânica. É um espaço ocupado principalmente por laboratórios, onde trabalham dezenas de alunos, professores e técnicos. Logo à entrada de um desses espaços de pesquisa, um painel com fotografias antigas convida a uma parada. Diversas fotos em preto e branco exibem professores, ex-alunos – registro do ensino universitário no final da década de 60. Uma delas tornou-se especialmente célebre. Em meio ao registro dos novos engenheiros mecânicos brasileiros – os primeiros da Escola de Engenharia Industrial fundada poucos anos antes em Florianópolis – uma moça bonita, vestido longo, cabelo com penteado no estilo bolo de noiva. A única. É Vera Lúcia do Vale Pereira, primeira engenheira mecânica formada em Santa Catarina. Vera foi capaz de encarar o desafio de ingressar numa carreira pouco afeita à presença das mulheres e de tentar anos mais tarde unir a “classe” criando um grupo de engenheiras mecânicas na UFSC. Reuniões aconteceram nas décadas de 80 e 90, com finalidades de adesão e fortalecimento. É um movimento de caráter feminista incógnito na área tecnológica.

No Rio de Janeiro, estudou no Colégio Sagrado Coração de Maria, fundado em 1911 pelas freiras Maria de Aquino Vieira e Maria de Assis e Santa Fé, da ordem religiosa francesa Instituto das Religiosas do Sagrado Coração de Maria. Era um colégio de moças, na época em que Vera o freqüentou. Algum tempo depois, a escola passou a aceitar meninos.

Lá tinha... não sei se era incentivo [...]. As cinco maiores médias ganhavam uma estrelinha. Minha tia Carmem desenhou um buraquinho pra botar a estrelinha pra não rasgar a roupa, porque era raro o mês que eu não recebia estrelinha. Era um incentivo, porque as próprias freiras incentivavam. (PEREIRA, 2006).

Gostava de estudar e a tia, residente em Florianópolis, foi quem lhe sugeriu pela primeira vez a engenharia, uma profissão em que não tinha pensado. Seu pai era médico veterinário, a mãe das áreas de administração, contábeis e professora. Só o tio de Florianópolis era engenheiro civil. Recém saída do ‘segundo grau’, fez o vestibular para a EEI em abril de 1962.

Na época, segundo Vera, as pessoas lhe perguntaram se como engenheira mecânica, “ia mexer com carro”.

Era uma pergunta freqüente naquela época. Com o tempo, notou que essa imagem da engenharia mecânica foi sendo um pouco desconstruída.

A experiência que trazia por ter estudado muitos anos em colégio “só de meninas” contribuiu para o “impacto” que sentiu nos primeiros tempos do curso de engenharia industrial. Logo, porém, já era tratada como a “Verinha”. O apelido carinhoso era compartilhado com outro, tendendo ao jocoso: “Jane”.

Há, sim, semelhança com a ficção criada por Burroughs5 em 1914, porque a sede

número 1 da EEI, onde os alunos tiveram suas primeiras aulas, uma pequena casa de madeira na rua Bocaiúva, no Cento de Florianópolis, era chamada a “casinha do Tarzan”.

Apelidos à parte, Vera sentia-se “superprotegida”, tinha amigos e acabou se casando com um colega dessa primeira turma de engenheiros de Santa Catarina: Hypólito do Vale Pereira.

no que deu (ri). Mas em termos da minha turma, era uma turma unida e por eu ser a única mulher eu tinha realmente algumas raízes, alguns deles os pais conheciam a minha mãe e eu tinha um relacionamento, entendeu? (PEREIRA,

2006)

Vera relembra a formalidade da época, evidenciada nos comportamentos e hábitos. As aulas eram ministradas por professores vestidos com terno e gravata, traje adotado por alguns alunos também.

Naquela época, professor era realmente catedrático. Era o senhor dentro da sala de aula. Você ia pra sala de aula, respeitava, não tinha brincadeira nem nada. Hoje em dia, existe já uma camaradagem entre professor e aluno, porque antigamente era muito difícil. [...] Tem que haver um diálogo, não só para o aluno, como também para o professor, porque você também cresce profissionalmente. (PEREIRA, 2006)

Vera graduou-se em engenharia mecânica em 1966. E em 1970, já casada, foi com o marido para os Estados Unidos, onde ele realizaria seu doutorado na Universidade de Houston, no Texas. Foi lá que a professora, ao iniciar um curso de mestrado, teve o primeiro contato com uma agremiação de mulheres engenheiras.

Quando estivemos nos Estados Unidos eu fazia parte dessa associação de engenheiras mecânicas, de engenheiras. Foi em 1970-74 [...]. Então, eu fazia parte, recebia correspondência, tudo. Isso foi uma coisa que me motivou: chegar ao Brasil e formar o mesmo grupo. Todo mundo diz assim: “engenheiras mecânicas há poucas”. Nem tão poucas assim. (PEREIRA, 2006)

Essa associação, da qual Vera não recorda o nome, enviou-lhe uma correspondência, convidando-a a participar. A professora cogita que, por ter ingressado no mestrado, seu nome passou a estar disponível para essa agremiação através da secretaria do curso. Essa prática não parece corrente no Brasil.

Por meio de correspondências, principalmente, a professora conhecia a realidade das engenheiras mecânicas americanas. Algo marcante pra ela foi uma publicação em que se discutia o papel da engenheira no mercado de trabalho. Outros livros, com assuntos

pois seu tempo precisava ser distribuído para atender aos estudos, à casa e à filha pequena. Na mudança para o Brasil, em 1974, muitas publicações acumuladas nos quatro anos acabaram ficando em território norte-americano ou foram, por necessidade, descartadas. No entanto, a experiência vivenciada na associação de engenheiras mecânicas não foi esquecida. Pelo contrário, nasceu o desejo de empreender algo parecido na UFSC.

O retorno foi difícil para a família Vale Pereira. Era um reinício de vida.

Nós moramos lá quatro anos e meio, os seis primeiros meses foram difíceis. E, aqui, realmente os seis primeiros meses foram difíceis. [...] nós não tínhamos nada, começamos adquirir. Primeiro, o aluguel; depois, fomos comprar a nossa casa. Você fica nessa lida do dia-a-dia [...]. (PEREIRA, 2006)

A semente feminista que trouxe dos Estados Unidos só encontrou chão para germinar nos anos 80, um pouco antes de Vera realizar seu doutorado, no Programa de Pós- Graduação em Engenharia Mecânica, na década de 90 (1990 a 1995).

O grupo era formado exclusivamente por engenheiras mecânicas e estudantes da área. Não havia um estatuto, porém o grupo se reunia para conversar sobre os vários assuntos que afetavam aquelas mulheres. Os encontros eram “informais”, e poucas pessoas sabiam daquela mobilização das engenheiras. O momento de maior movimentação chegou a reunir 15 engenheiras.

[...] Basicamente , reforçar o nosso papel de mulher, como engenheiras mecânicas, e pra ter uma idéia de como é que elas estavam no mercado de trabalho. O objetivo era para fortalecer, formar um grupo forte para a gente começar a ter influências. Só que a gente não vingou. (PEREIRA, 2006)

As engenheiras pareciam não almejar a dissolução que acabou ocorrendo, pois conjuntos menores estavam sendo formados para desenvolver atividades específicas. A atuação já acontecia na direção de criar uma rede de relações para verificar oportunidades no mercado de trabalho ou resolver situações e problemas profissionais existentes naquele momento.

Um outro ponto de atuação era mostrar que o pequeno número de engenheiras não significava necessariamente que estavam submissas ou apassivadas.

Não. Não. Ao contrário. Elas estavam bem atuantes em termos de mercado de trabalho [...] como profissionais. [...] Todas que participaram do grupo sempre foram excelentes alunas. É um curso difícil realmente. É realmente pr’as que têm aptidão, e se saem muito bem. As que eu conheço – quase todas (risos).

(PEREIRA, 2006)

Como aluna e professora, Vera diz que sempre procurou colocar a sua voz, sua maneira de pensar, sua opinião, mesmo sendo uma presença solitária na graduação e uma das poucas professoras da área tecnológica na universidade. Ela acredita que essa postura ajuda a barrar atitudes discriminatórias. “Nunca tive esse tipo de problema, com nenhum professor, com nenhum colega, no departamento. Ao contrário, entendeu? Sempre que eu falava, eu era ouvida”, disse a professora, que admite que discriminação pode acontecer, “mas não abertamente”.

Vera lastima-se de o grupo não ter prosseguido, e avalia que talvez devesse ter aberto a possibilidade de participação a engenheiras de outras áreas.

Talvez o erro tenha sido de ser um grupo muito fechado – de ser só engenheiras mecânicas. [...]. É, esse era o intuito [abrir para outras áreas] realmente. Se fossem realmente outras engenheiras que participassem, talvez visões diferentes. E a gente fosse pra frente. [...] Foi só o início a gente tentou estruturar – “vamos começar com a mecânica, depois já está mais ou menos estruturado, a gente chama outros grupos”. (PEREIRA, 2006)

E por que não vingou? Falta de interesse das participantes? Alteração em seus focos de interesse? Mudança para outras cidades?

A partir do relato da professora, o que se pode concluir, é que o grupo se dispersou. As engenheiras iam concluindo o doutorado, voltando para suas cidades ou instituições de origem, conquistando postos em universidades fora de Florianópolis. Não houve novas integrantes, e no ritmo da equação instaurada subtraíram-se as possibilidades de fortalecimento e continuidade.

Vera nunca foi vinculada a nenhum movimento feminista organizado, mas pensa ter na sua vida uma atitude feminista, no sentido de “união da classe”. O grupo que liderou entre as décadas de 80 e 90 é fruto dessa postura, como também o desejo de ver essa

como engenheira mecânica, como aluna daqui, como primeira mulher formada pela UFSC como engenheira mecânica, se sinto lisonjeada. E como tal gostaria que fosse registrado todo esse histórico”.

Em novembro deste ano, Vera fará uma espécie de passeio no tempo. Reencontrará os colegas da graduação em engenharia, e como única, mas atuante voz feminina marcará a sua presença como uma das líderes da confraternização de 40 anos da formatura da primeira turma de engenheiros da Universidade Federal de Santa Catarina.