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1.2 P ENSAR TECNOLOGIA E GÊNERO

1.4.3 I NCORPORAÇÃO DE VALORES E CONSCIÊNCIA CRÍTICA

Nos caminhos para o equilíbrio sugeridos por Lacey, a conscientização está, em maior ou menor medida, relacionada a processos de mudança. Uma consciência crítica da ciência e da tecnologia baseia entendimentos de que estas são atividades humanas e

poderiam colaborar para uma convivência mais harmônica do homem com a natureza, para a solidariedade e ajuda mútua entre os povos, para diminuir desigualdades sociais, por exemplo, em vez de asseverar valores como egoísmo, individualismo, intolerância, competição, etc, ou se dar na direção do acúmulo de conhecimentos para o progresso da humanidade.

Há níveis de consciência diferenciados, assim como a sua ausência significa um referencial a ser compreendido e transformado. Imbricados nesses níveis ou lhes causando tensão – até mesmo alimentando contradições – estão os valores. Ao discutir níveis de consciência, eu pretendo concluir os fundamentos teóricos da possibilidade do conhecimento dialogicamente situado, estabelecendo também alguns parâmetros para uma análise posterior.

Assim como Lacey, Goldmann (1986) não desconsidera a capacidade de transformação do sujeito. De acordo com esse autor, “toda a manifestação é obra de seu autor individual e exprime o seu pensamento e a sua maneira de sentir” (Idem, p. 106). Esses modos de pensar e sentir, entretanto, não podem ser entidades independentes em relação às ações e aos comportamentos dos homens. Por isso, ele diz que “só podem ser compreendidas em suas relações inter-individuais, que lhe conferem toda a riqueza” (Ibidem). Na dinâmica das relações inter-individuais ou inter-pessoais institui-se a consciência coletiva. Ela se forma quando a “estrutura que exprime não é particular a seu autor, mas comum aos diferentes membros constituintes do grupo social” (Idem, p. 107). É nesse âmbito que Goldmann enceta a “consciência máxima possível”.

No contexto desta pesquisa, a consciência máxima possível é aquela que representa um sujeito consciente da ciência e da tecnologia como atividades humanas sociohistoricamente construídas e capaz de refletir sobre elas em sua interação com a sociedade, em vez de encontrá-las como “autônomas da cultura, valoritivamente neutras ou uma aliança heróica de conquista cognitiva e material da natureza (BAZZO; VON LINSINGEN; PEREIRA, 2003, p. 13). Considere-se aqui as possibilidades de transformação no exercício de um diálogo com o mundo.

No conhecimento dialogicamente situado, a consciência crítica da ciência e da tecnologia pode contribuir para que se diminua a brecha entre o pensar e o agir. Ou seja, o valor (e aqui relevamos os valores humanistas) antes retido na esfera do pensamento passa a ser incorporados pelo sujeito, que terá a consciência das relações inerentes a esse processo. Uma série de pesquisas empíricas, mais uma extensa reflexão teórica, têm debatido a parca consciência das relações entra a ciência, a tecnologia e a sociedade e a

necessidade de se pesquisar esse tema também como forma de encontrar questões a serem problematizadas (AULER, 2002; AULER; DELIZOICOV, 2001). E quanto ao gênero?

Temos, de um lado, um valor histórico associado às mulheres, que, entretanto, necessita de uma reconstituição com uma abordagem feminista. De outro, temos a própria atitude feminista – na forma de movimentos de reivindicação política ou como um valor pessoal e social – que foi e é responsável pela expressão da voz e reivindicação femininas. Quero dizer também que não apenas mulheres, mas também homens poderiam ser sujeitos de tal processo, que é transformador do sujeito em seu tempo e espaço. Identifico a atitude feminista a essa postura crítica. Porém, no que tange a este trabalho de pesquisa inclino-me a focalizar o sujeito conjugado no feminino.

Uma atitude crítica, portanto, rompe a estagnação do valor na esfera exclusiva do pensamento, mas força esse mesmo pensamento à esfera do senso crítico, sem o qual não se desvela os mitos que recobrem o fazer científico e tecnológico. Esse sujeito crítico é dotado de uma situacionalidade muito própria, a das mulheres, e que se funda no diálogo como processo edificante do ser e da ação.

A visão tradicional não incluiu as mulheres, seus valores, sua história. Só uma visão crítica abre caminho para abarcar tudo isso. A consciência dessa situacionalidade está na base do conhecimento dialogicamente situado.

Para localizar a situação desse sujeito em relação a esse nível de consciência crítica – e traçar, se for o caso, estratégias para processos de consciencialização –, é preciso verificar a sua consciência real, no caso em estudo, da ciência e da tecnologia, e em alguma medida em relação a uma atitude feminista também. Não apenas saber, mas tomá- la como uma situação a ser transformada, pelo próprio sujeito, em seu diálogo consigo e com o mundo.

Na consciência real, diz Goldmann, é possível identificar “múltiplos obstáculos e desvios que diferentes fatores da realidade empírica colocam em oposição e submetem à realização de se efetivar” (GOLDMANN, op. cit., P. 99).

Um dos principais obstáculos que poderiam ser identificados – tanto para a incorporação de valores, quanto para a consciência crítica (eu considero esses processos complementares) – diz respeito a uma percepção mitificada da atividade científica e tecnológica e a ausência ou uma visão parcial do que enseja uma atitude feminista. Essa percepção mitificada foi edificada graças a uma narrativa histórica que acabou prestigiando certos aspectos/elementos em detrimento de outros, de forma a dar a entender que, por exemplo, o desenvolvimento econômico seria diretamente proporcional a um

desenvolvimento científico e tecnológico, que, por sua vez, produziria ganhos sociais. Esse é um pensar determinista, embalado no berço de uma ideologia cientificista.

A noção de controle da natureza que herdamos da modernidade não pode ser discutida sem que se lembre algumas de suas contribuições filosóficas e também a imagem de tecnologia que vem sendo construída e criticada até este século. As idéias do filósofo e político inglês Francis Bacon, por exemplo, encontraram um solo fértil, já na Renascença, para germinar e se engavinhar na sociedade altamente avançada científica e tecnologicamente que temos hoje e no entendimento que fazemos do controle que esse conhecimento privilegiado exerce sobre a sociedade contemporânea.

Na verdade, embora o conhecimento científico e tecnológico tenha acumulado um saber extraordinário – principalmente com a sua estruturação e sistematização a partir da chamada Ciência Moderna – o foi sem muitos limites. Ou como expressa Hugh Lacey,

o mundo tem sido receptivo ao extenso exercício de controle a que assistimos nos tempos modernos. Mas permanece aberta a questão sobre os limites que o mundo pode ainda impor à sua expansão e as condições sociais sob as quais tal expansão deve ou não ocorrer (1998, p. 122.).

Essa desmedida ação foi capaz de edificar os chamados “tecnopólios”, uma expressão com a qual o americano Neil Postamn (1994) trata sociedades como a que vive, nos Estados Unidos da América, assoberbadas de artefatos e sistemas tecnológicos.

De uma certa forma, em sua obra, Francis Bacon prenunciava o tecnopólio. Os axiomas dos dois livros do Novum Organum, por exemplo, mostram quão impelido estava o filósofo inglês a defender um método indutivo para a ciência, reivindicando de Aristóteles e Tomás de Aquino mais do que as “causas”. O que Bacon defende é que se passe da causa a uma ação através da indução e que essa ação possa surtir efeitos na sua forma. No aforismo 40 do primeiro livro do Novum Organum, afirma:

A formação de noções e axiomas pela verdadeira indução é, sem dúvida, o remédio apropriado para afastar e repelir os ídolos17. Será, contudo, de grande préstimo indicar no que consistem, posto que a doutrina dos ídolos tem a ver com a interpretação da natureza o mesmo que a doutrina dos elencos sofísticos com a dialética vulgar. (1984, p. 21)

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Esse filósofo contribui em muito para a idéia, já comentada anteriormente, de um progresso da humanidade como conseqüência direta da evolução científica e tecnológica. Ainda no Novum Organum, critica a ciência da época como incapaz de cumprir sua verdadeira meta – “dotar a vida humana de novos inventos e recursos”. Na sua concepção,

é manifestamente impraticável, sem o concurso de instrumentos ou máquinas, conseguir -se em qualquer grande obra a ser empreendida pela mão do homem o aumento do seu poder, simplesmente, pelo fortalecimento de cada um dos indivíduos ou pela reunião de muitos deles. (Idem, p. 7)

O método o qual defendia Bacon e outros pensadores empiristas trata-se de uma forma de descobrir leis e fenômenos (BAZZO; VON LINSINGEN; PEREIRA, op. cit., 2003, p. 15). Esse método “permitia construir enunciados gerais hipotéticos acerca da evidência empírica, a partir de um conjunto limitado de evidências empíricas constituídas por enunciados particulares de observação” (Idem, op. cit.). Com o tempo, isso passou a significar também uma necessidade de enunciação precisa e formal dos cálculos que daí advinham, tornando-se o objetivo tradicional da reflexão profissional sobre a ciência (GONZÁLEZ GARCÍA; LÓPEZ CEREZO; LUJÁN LÓPEZ, 1996, p. 29).

Fatores externos, ou seja, não epistêmicos, serão exortados por um movimento que, no início do século XX, retoma a concepção tradicional de ciência, reforçando seu caráter de autonomia e neutralidade. Falo do Círculo de Viena, que funda o Empirismo Lógico, também conhecido como Positivismo Lógico. Sua doutrina teve um espraiamento tal que hoje em dia (“embora não se possa chamar exatamente de empirismo lógico uma boa parte da filosofia da ciência que se pratica atualmente”) é sobre muitas de suas vias que ela está caminhando (Idem. op. cit., p. 29).

Todo esse chão intelectual, conforme González García et al (op. cit., 1996), acabou atribuindo à tecnologia uma imagem de certa forma depreciativa, como a que se traduz numa das noções mais comuns, que é a de ser tão somente ciência aplicada. Se se considera a tecnologia apenas como uma aplicação da ciência, esta admite concretude nada mais do que em artefatos, desconsiderando, pois, os sistemas tecnológicos que a humanidade viu surgir no século XX e mesmo ignorando a possibilidade de se expandir o conceito para o de uma prática tecnológica. Outro ponto a ser considerado é que se tecnologia é ciência aplicada, os mesmos códigos de racionalidade e autonomia se lhe aplicam. Assim, também a tecnologia estaria envolta de uma neutralidade que a tornaria

isenta de ideologia, ou seja, neutra. O que se vê edificar aqui em muito se assemelha ao que o renascentista Francis Bacon grafou em sua filosofia e que se costuma denominar relação linear entre ciência tecnologia e progresso humano. González García et al (op. cit., 1996) adota a expressão unidirecional e assim a caracteriza: progresso científico – progresso tecnológico – progresso econômico – progresso social. Essa dinâmica conjuga- se na ideologia do cientificismo.

Nas palavras de García, a ideologia cientificista tem como espinha dorsal considerar “a ciência como um corpo de conhecimento fidedigno que avança inexoravelmente em direção à verdade, uma verdade que, através da tecnologia, nos proverá com a realização dos ideais ilustrados”. Assim, é científico o que tem uma única solução correta, a partir de um método. Além disso, as soluções corretas são compatíveis entre si. Onde está a margem para o erro, para a dúvida? E a incerteza? E como se dá a ação do cientista nisso?

Pensar ciência como essa rua tão estreita, deixa o erro, a dúvida, a incerteza no campo do intangível. O cientista pode apenas ter hipóteses e tentar prová-las, não lhe cabendo questionar, nem a si, nem ao processo e as suas conseqüências. É um homem num espaço apartado do tempo, um homem sem laços sociais e históricos.

Esses princípios estão contemplados numa das correntes edificantes dessa ideologia cientificista. Num contexto histórico em que surgia a teoria da evolução de Darwin, o darwinismo social de Spencer, e também a antropologia criminal e o kardecismo, o positivismo que se erigiu das idéias de Auguste Comte foi precioso alimento para um entendimento da ciência – o paradigma do conhecimento válido da nossa época (CUPANI, 1985, p. 11) –, livre de valores do homem e da sociedade.

Esse cientificismo acaba alimentando a idéia de que a dinâmica que faz avançar os conhecimentos científicos e tecnológicos está ligada às crenças da neutralidade, imparcialidade e autonomia da ciência e da tecnologia, às atividades racionais por excelência, ações cujo produto é o que mais se aproxima da verdade.

Essa visão mitificada é uma espécie de barreira para entendimentos mais críticos, uma visão a ser explorada e desconstruída. Seria também um nível elementar como ponto de partida, pois expressa muito pouco ou nada da riqueza que é entender a ciência e a tecnologia em suas mais variadas relações com a sociedade. Nesse sentido, eu identifico essa visão mitificada com a consciência real efetiva.

Arraigados a essa mitificação original da neutralidade, estão percepções de que a ciência e a tecnologia são capazes de resolver os problemas da humanidade (salvacionismo); principalmente físicos, químicos, biólogos, engenheiros, etc, e governos, podem decidir sobre questões científicas e tecnológicas porque são eles que detêm o conhecimento, e a partir dessa instância o poder, menosprezando os cidadãos, incapazes de opinar, decidir (tecnocracia); e a idéia já expressa várias vezes no decorrer deste capítulo, de que o desenvolvimento social se dá linearmente a partir de avanços científicos e tecnológicos e suas conseqüências econômicas (determinismo).

Tanto mais arraigados esses mitos nas concepções de ciência e tecnologia das pessoas (e no caso desta pesquisa, das professoras da área tecnológica) mais distantes de uma consciência crítica; tanto mais próximas de uma desconsideração do gênero como uma construção cultural, mais distantes essas mulheres também estarão de uma atitude feminista.

De acordo com Auler (2000, p. 98), esses mitos acabam por expressar interesses de atores hegemônicos e se constituem, em parte, pelas possibilidades exageradas atribuídas à ciência e à tecnologia. Esse autor (op. cit., 2000, p. 103) interpreta que a perspectiva tecnocrática está relacionada a uma visão de mundo que quase não deixa espaço para a democracia nas decisões que afetam a tecnologia, considerando que esta se encontra presa a uma visão de progresso que exclui ambigüidades. O mesmo autor discute como teses que definem o determinismo tecnológico (1) a mudança tecnológica é a causa da mudança social e (2) a tecnologia é autônoma e independente de influências sociais. Tanto o modelo de decisões tecnocráticas quanto a visão determinista da tecnologia colaboram para uma visão linear de progresso, em que a ciência somada à tecnologia é igual a desenvolvimento econômico e este, por sua vez, traz desenvolvimento social. A esses mitos alia-se o da perspectiva salvacionista de ciência e tecnologia. Nesse caso, a ciência e a tecnologia conduzirão, no caminho de sua evolução, a humanidade a um bem-estar social (ÁLVARES, apud AULER, op. cit., p. 106).

Bazzo et al (2003, p. 141) diz que “a ciência aplicada e a tecnologia atual estão em geral demasiadamente vinculadas ao benefício imediato, a serviço dos ricos e dos governos poderosos (...). Somente uma pequena parcela da humanidade pode usufruir de seus benefícios e inovações”.

Não apenas mitos assim rondariam a consciência real dos sujeitos, mas também a passividade, o individualismo, a apatia estariam presentes18.

Verificar o nível de consciência real desses sujeitos é ir ao encontro da situação em que se situam para, a partir dela, promover uma transformação, transformação que desse sujeito surja. A mudança que daí pode se originar não tem como ponto de partida uma situação que não esteja próxima desses sujeitos, que não lhe seja afim.

É preciso compreender que o diálogo de que estamos falando é um processo dialético fundado na ação e na reflexão. Ao explicar a dialogicidade como essência de uma educação libertadora, Freire (2004, p. 77-120) refere-se ao diálogo como um encontro de homens “mediatizados pelo mundo, para pronunciá-lo, não se esgotando na relação eu-tu” (Idem, p. 78).

No que essas reflexões colaboram para a possibilidade do conhecimento dialogicamente situado?