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3.2.3.4 “Deus perguntou: queres ser bonita ou fazer engenharia?”

3.2.4 Exame crítico

3.2.4.1 Minorias também fazem história

A entrada das professoras que entrevistei em universidades coincide com a expansão do ensino superior brasileiro. Embora algumas instituições desse nível educacional tivessem pipocado em várias regiões brasileiras, a partir dos anos 20, é a década de 1960 que marca o aumento do número de universidades federais em todo o país (SILVA, 2003). Segundo Durham (1998) apud Silva (op. cit., 2003), o número de matrículas que em 1964 era de cerca de 143 mil alunos passou a aproximadamente 1,3 milhão em 1980, em grande parte fruto da concentração urbana, que aumentava, e a exigência de melhor formação para a mão-de-obra industrial e de serviços (LETTA, op. cit.).

Em terras catarinenses também se assistiu, em 1960, a criação da Universidade de Santa Catarina, como relatei. E é o mesmo ano do início do funcionamento da Escola de Engenharia Industrial (EEI).

Foi na década de 1970 que as professoras que entrevistei ingressaram no ensino superior, mais especificamente entre 1972 e 1978, geralmente em suas cidades ou próximas dali, com exceção de Beta e Zeta que realizaram seus cursos de graduação em Florianópolis, mas eram respectivamente, de Chapecó e do Rio de Janeiro. Esse é o decênio em que o interesse das mulheres em carreiras da área tecnológica parece aumentar, não só na Universidade Federal de Santa Catarina, mas também em outros estados brasileiros.

Na Universidade de São Paulo (USP), por exemplo, os anos 70 marcam um grande crescimento no número de mulheres formadas na Escola Politécnica. Foram 157 alunas que concluíram os cursos de Engenharia Civil (77), Mecânica (5), Elétrica (25), Química (29), Produção (16), Minas e Metalurgia (3) e Naval (2). Nos 10 anos seguintes, esse número, na USP, dobrou e continuou progredindo (SAMARA; FACCIOTI, 2004). Nos anos 80, nessa mesma instituição, as engenheiras começam a se interessar também por realizar dissertações de mestrado e teses de doutorado para se tornarem professoras.

9,15% do total de 470 professores14. Nos Departamentos de Engenharia Química e de Computação e Sistemas Digitais a porcentagem feminina sobe para 25,71%. Em contraste, nos Departamentos de Engenharia Mecânica, Naval e de Minas e Petróleo não há nenhuma professora (Idem, 2004).

Um trabalho semelhante, realizado por Fanny Tabak, na Escola Politécnica da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), também no início dos anos 2000, apurou que as mulheres constituíam 10,7% do total de 241 docentes. Em Engenharia Mecânica, Eletrônica, Naval e Nuclear havia apenas uma professora; em Eletrotécnica, Metalurgia Industrial e Transportes, duas; o maior número de professoras está no Departamento de Construção Civil. (TABAK, 2002).

No Centro Tecnológico da UFSC, dos 348 professores, menos de 15%15 são mulheres, o que indica que há uma pequena diferença, para mais, em relação a essas duas instituições de ensino superior públicas brasileiras, no rol das maiores e mais importantes em produção científica e em registro de patentes.

As décadas de 80 e 90 foram, para as professoras que participam da minha pesquisa, a largada para a formação acadêmica de mestrado e doutorado. Duas delas, Zeta e Delta, fizeram seus cursos de pós-graduação na UFSC. As seis professoras terminaram seus doutorados de 1989 a 1990. Isso significou períodos de formação que variaram de nove a 15 anos. Na escola Politécnica da USP, como registrou a pesquisa de Sâmara e Faccioti, a partir da década de 80 as mulheres começaram a se interessar por uma formação acadêmica para dar aulas e pesquisar. No Centro Tecnológico isso apenas aconteceu em parte porque até esse período haviam sido criados três mestrados e três doutorados em Engenharia Mecânica, de Produção e Elétrica. Foi a partir dos anos 90 que outros cursos foram sendo implementados. Essa década representa um crescimento na pesquisa desse centro. E é também um marco para as professoras cujos relatos interpreto porque suas contratações ocorreram de 1980 a 1996, nesse movimento progressivo de criação de novos departamentos de ensino, grupos e áreas de pesquisa.

14 Dados coletados no arquivo histórico da (POLI/USP) até o segundo semestre de 2003, por Samara e

Faccioti.

15

Esse percentual inclui o Departamento de Arquitetura e Urbanismo. Sem ele, o índice cai para cerca de 12%.

mulheres na grande área engenharia e ciência da computação, que é de aproximadamente 25%. Penso que essa demografia numérica não pode ser olhada com pessimismo porque, historicamente, ela representa um crescimento, mesmo que lento, das mulheres nesse espaço tão tradicionalmente masculino como é a engenharia. No entanto, ao lado desse tipo de interpretação deve se aliar àquela que, como venho dizendo, aproxima o olhar para ver o que está acontecendo localmente.

Fazer parte da criação do Departamento de Engenharia Química e Engenharia de Alimentos, no início dos anos 80, significou para Gama e Delta poder se posicionar em relação às estruturas de ensino e pesquisa. Assim, o currículo, as metodologias de ensino, o corpo docente e discente e as atividades de pesquisa puderam ser discutidos por elas, que também tiveram liberdade para escolher seus caminhos. O lugar de fundadoras lhes concede um status e um respeito, entendo, perante os colegas, mesmo não sendo maioria.

Essa tendência ao equilíbrio de gênero parece favorecer as escolhas das mulheres e lhes possibilitar um ambiente em que se sintam mais à vontade. Isso não quer dizer, como as próprias professoras relataram, que não haja obstáculos em seus caminhos. A família, o casamento e a maternidade têm um peso grande em suas vidas e conciliar os papéis que a sociedade lhes cobra com o desejo de uma carreira que necessita tanta dedicação como a acadêmica requer grande organização e equilíbrio dessas mulheres. Além disso, há barreiras “invisíveis”, mas reais, dentro dos próprios locais de trabalho, independente da relação quantitativa homem x mulher, que as impedem que alçar certos vôos, como a chefia de departamento. Existe um momento em que essas barreiras são particularmente problemáticas, o da institucionalização. Ele tem, historicamente, favorecido mais aos homens do que as mulheres em determinadas instâncias, sobretudo as de cunho político.

No Departamento de Engenharia Civil, por exemplo, não há a mesma proporção de homens e mulheres, em relação à Engenharia Química e Engenharia de Alimentos, mas a diferença de gênero não tão acentuada colabora para um ambiente bem diferente daquele relatado por Zeta, que, no Departamento de Engenharia Elétrica, tem a companhia de apenas mais duas mulheres, dentre 42 homens. Na Engenharia Civil há 39 docentes, sendo 11 mulheres e 28 homens.

Elétrica, mas no que respeita à entrada das primeiras professoras há sete anos como distância. Enquanto Helena Stemmer era contratada em 1969, um ano depois de iniciado o curso, outra Helena, de sobrenome Naspolini, entrava no curso de graduação em Engenharia Elétrica apenas em 1976. Nesse caso, a participação das mulheres na construção das estruturas de ensino e pesquisa dos departamentos não foi equânime. Além disso, na civil, na década de 80, conforme o relato de Beta, já haviam várias professoras. Mas em quase 50 anos, só passaram quatro professoras no EEL, sendo que uma delas aposentou-se em 2004.

O caso de Épsilon também ajuda a entender as relações entre os professores e as professoras nos departamentos. Hidráulica e Saneamento era um núcleo do Departamento de Engenharia Civil e em 1986 tornou-se departamento (o EA). Épsilon foi a primeira professora contratada para a área de Saneamento na UFSC e uma das fundadoras do departamento. Mesmo assim, e tendo colaborado com currículos, criação de laboratórios, etc, não goza do mesmo ambiente de Gama e Delta.

Abandono uma relação de proporcionalidade aqui para questionar se não haveria, da parte de Épsilon, um nível de consciência de gênero que a fizesse enxergar mais e incorporar essa visão em seu discurso do que as outras duas professoras. De qualquer forma, em 27 anos da existência do curso de Engenharia Sanitária e 19 do curso de graduação do EA apenas duas mulheres foram contratadas como professoras. A partir de 2002, Épsilon passou a ser a única docente.

O número de professoras e alunas tem uma influência nas relações no departamento, mas a postura delas diante das questões vivenciadas também tem sua dose de participação nas atividades de ensino, pesquisa e na liderança que exercem. Um ambiente com mais mulheres, como o da engenharia química e engenharia de alimentos, possibilita tipos de relação que tendem a ser mais iguais, do que aqueles em que isso não acontece. É preciso, entretanto, como ressaltei, pensar nos níveis de consciência dessas professoras. No que respeita à consciência, a análise posterior iluminará essa leitura com novos elementos.

É certo também que um ambiente inóspito pouco contribui para o crescimento pessoal e/ou profissional de uma professora. É o contexto de Zeta.

graduação e pesquisa, traduzindo-se em funções em coordenadorias ou subcoordenadorias e supervisão de laboratórios. No entanto, somente Helena Stemmer, na engenharia, e Edla Maria Faust Ramos, nas ciências da computação, foram chefes de departamento.

Isso também mostra que, afastadas de uma liderança política em seus departamentos, elas podem ter encontrado um espaço mais diretamente relacionado com os alunos, seja nas coordenadorias de cursos de graduação e pós, subchefias e mesmo nos laboratórios. É um espaço privilegiado para a construção de valores humanistas – talvez pouco explorado conscientemente por elas.

Observo que a liderança em departamentos é uma esfera difícil de alcançar também em outros centros brasileiras de ensino e pesquisa na área tecnológica, como a POLI/USP. Lá, apenas em 2003 uma professora, Inés Pereyra, que foi a segunda titular daquela escola, assumiu a chefia de um departamento.

Esse cenário aponta a existência de barreiras nos próprios departamentos, onde impera uma cultura calcada em estratégia de manutenção da ordem de dominação masculina – muito embora as professoras entrevistadas pertençam a um grupo que com avançada formação intelectual, experiência acadêmica no ensino e na pesquisa, status profissional e maturidade possam gerir a estrutura da qual fazem parte. Mas talvez seja preciso perguntar mais explicitamente a elas se essa chefia seria um desejo ou não e o quanto isso representaria em suas vidas e carreiras. Pode ocorrer que não queiram se envolver nesse tipo de disputa ou terem sido desmotivadas ou desencorajadas a tal. Outra hipótese é que, silenciosamente, e ainda invisível historicamente, elas estejam construindo um espaço de relações humanas e profissionais no fazer científico e tecnológico que esboça uma certa resistência à ordem masculina vigente, mas talvez não a suplante.

A apresentação e a análise dos níveis de consciência e dos valores das professoras entrevistas pretende estender a discussão gênero, ciência e tecnologia para a dimensão epistemológica. Penso que a verificação desses níveis de consciência, ao estabelecer o referencial da consciência real do coletivo, pode oferecer elementos a serem futuramente problematizados.

3.3

P

ERCEPÇÕES DE CIÊNCIA E TECNOLOGIA

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VALORES