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Capítulo I 43 O Sofrimento no cruzamento das relações complexas entre o Homem e a Organização do Trabalho

7. ERGONOMIA E PSICODINÂMICA DO TRABALHO

A psicopatologia do trabalho dos anos 70, tinha-se desenvolvido num duplo diálogo com as ciências da saúde, por um lado e do trabalho, por outro, recor- rendo de forma particular aos contributos da psicanálise e da ergonomia. E o debate não se terá interrompido mais (Dejours, 2000a).

Como já o sublinhamos o coração da ergonomia da actividade, tem na análise ergonómica do trabalho o seu recurso privilegiado, uma metodologia baseada na observação das situações reais para estudar o homem no trabalho e assen- ta numa descoberta fundamental: "a existência duma décalage irredutível entre a tarefa prescrita e a actividade real do trabalho" (Ombredane & Faverge, 1955; Leplat&Cuny 1983).

E a psicodinâmica do trabalho acabou por fazer também seus, os conceitos ergonómicos de trabalho prescrito e de trabalho real que, tal como o realçou Davezies (1993), abrem a via para a compreensão da dimensão fundamental- mente enigmática do trabalho.

7.1. Trabalho prescrito e Trabalho real - Efeitos na saúde do trabalhador

Para a psicodinâmica do trabalho então,

existe sempre uma décalage entre o trabalho prescrito pela hierarquia e a situ- ação real de trabalho que não pode reduzir-se a uma simples execução técnica em função de regras preestabelecidas, sendo dada a impossibilidade de estan- dardizar todos os procedimentos de produção ou, daí, antecipar a intensidade

por todos os indivíduos" (Vézina, 1999:210, tradução livre).

É neste afastamento que pode estar a fonte de saúde ou de sofrimento mental, dependendo do grau de flexibilização potencial da organização do trabalho. Se esta permite ao trabalhador arbitrar a décalage e encontrar, pela sua "inteligên- cia da prática", as microrregulações necessárias à solução dos problemas en- contrados no trabalho, então está perante uma organização dita estruturante para a identidade da pessoa. O trabalhador tem, neste contexto, uma margem

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de manobra que lhe permite interpretar as ordens recebidas pela hierarquia, de forma a usar a sua habilidade e criatividade, para elaborar novas regras que se adaptem melhor à situação de trabalho e que sejam coerentes com os objecti- vos da empresa.

Um contexto organizacional deste tipo, que permite ao trabalhador desenvol- ver-se como pessoa, proporcionando-lhe a construção da sua identidade, na medida em que autoriza que utilize as suas habilidades e desenvolva novas, concorre para a sua realização como pessoa e, consequentemente, como pes- soa saudável.

Percebemos assim que para Dejours (2000a), o trabalho é uma actividade de produção, onde se podem concretizar e se objectivar a inteligência e as habili- dades humanas e onde se constrói a identidade, a armadura da saúde mental. Contudo o trabalhador pode estar perante uma organização do trabalho rígida, em que o afastamento entre o prescrito e o real pode não ser negociável. Este tipo de organização impõe uma vasta divisão de tarefas e uma estandardização excessiva dos procedimentos e dos resultados, não dando espaço à iniciativa e criatividade do trabalhador e mesmo considerando estas, como sinal de incom- petência ou de delito e anulações às regras prescritas - trata-se então de uma organização do trabalho com consequências na saúde do indivíduo porquanto afecta o seu equilíbrio psíquico a sua relação com o real e a construção da sua identidade (Vézina, 1999).

A rigidez, característica deste tipo de organização do trabalho, não tem em conta as idiossincrasias individuais e pode ser fonte de tensão para o trabalha- dor, na medida em que se vê colocado na difícil tarefa de "conciliar o projecto de automatização da sua actividade com a variabilidade temporal, que o carac- teriza como ser vivo e com as exigências da sua vida psíquica, que o caracteri- zam como ser humano" (Davezies, 1993:37, tradução livre).

Por isso, parece claro que uma organização do trabalho flexível, que respeita as singularidades e tem em conta a subjectividade na actividade de trabalho, é favorecedora do equilíbrio psíquico do indivíduo concertando tarefas, modos operatórios e dimensão temporal do trabalho.

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.2. Inteligência da prática. O saber-fazer do trabalhador

Tratar o trabalho como um enigma, parece ser uma afirmação paradoxal, dado que o trabalho é assunto de numerosos peritos, desde o jurista que fala de con- trato de trabalho ao especialista de prevenção, que lembra os riscos inerentes à situação de trabalho e propõe medidas preventivas, passando pelo chefe da empresa que evoca os objectivos ou os custos do trabalho: numerosos saberes são, pois, mobilizados para conceber e prescrever o trabalho mas, de facto, não são suficientes para que haja produção - para tal, é necessário que haja alguém que ocupe o lugar para onde convergem todos estes saberes especia- lizados e "dê vida a este conjunto", isto é, alguém que trabalhe (Davezies, 1993).

Todavia esta experiência é banalizada, eufemizada pela organização do traba- lho. Ora, como refere Teiger (1993), o trabalho não é um conceito abstracto, mas um "conceito personificado" porque pertence a um espaço, a um tempo e a um corpo.

A compreensão desta experiência exige assim ultrapassar a articulação das várias dimensões da prescrição e a recusa de uma concepção do saber, ape- nas dividido em especialidades.

Aliás o trabalhador pouco qualificado que não domina os saberes especializa- dos, tem de fazer face às questões colocadas pela articulação das diferentes exigências, às quais está sujeito: exigências relacionadas com a produção, com o seu lugar no sistema social em questão e com o que se relaciona com a preservação da sua saúde (Davezies, 1993).

Neste sentido, faz apelo à sua inteligência da prática, cuja característica princi- pal é para Dejours (1993) ser fundamentalmente enraizada no corpo, guiada pela intuição sensível como o faro, o odor, o relance de olhos, a destreza e ha- bilidades diversas. Não é uma inteligência "especializada": é uma inteligência "astuciosa"16," em que se recorre a todo o tipo de astúcias nomeadamente

Sobre esta "inteligência astuciosa" Détienne e Vernant, citados por Dejours e Abdoucheli (1994), propõem uma análise, tomando como fonte a vida quotidiana na Grécia Antiga.

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quando surge uma situação inusitada (Molinier, 1995). Trata-se de um tipo de inteligência em constante ruptura com as normas e com as regras.

Por isso, "o trabalho, é a mobilização dos homens e das mulheres face ao que não é previsto pela prescrição, face ao que não é dado pela organização" (Da- vezies,1993:37, tradução livre); para trabalhar é preciso interpretar as prescri- ções, improvisar regras e truques, disfarçar, criar astúcias, sair da execução pura e simples.

Mas esta inteligência prática situa-se, intrinsecamente, no espaço de sofrimen- to individual, "do qual ela é um dos resultados com a diferença de que ela leva não apenas à atenuação do sofrimento, mas a atingir, como contrapartida de seu exercício, bem sucedido, o prazer" (Dejours e Abdoucheli, 1994:134).