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Ouvi de João Carlos Horta um caso engraçado ocorrido entre o mesmo e Murilo Mendes, no período romano do poeta de Poesia em Pânico. Iam ambos caminhando e conversando fiado quando João Carlos teria balbuciado em voz alta algo assim: “Curioso como o chão de Roma é bem mais duro que o chão lá do Brasil...”, uma dessas gratuidades que o indivíduo diz motivado pela intuição e pelo amor ao disparate. Uns dois dias depois Murilo, que na ocasião não fizera qualquer comentário, ao reencontrar o parceiro arrasta-o para um canto e confidencia: “Sabe que é aquilo mesmo!

E eu aqui esse tempo todo e ainda não tinha me dado conta!” A anedota é quase essa e capta bem um aspecto permanente da personalidade humana^ e literária de Murilo Mendes, sempre decidido^ a abolir fi-onteiras entre reinos, disposto a tomar possível a coexistência do possível e do impossível, desmantelando hierarquias e embaralhando planos, dono de uma visão incomum das coisas e da poesia. Um pouco sob o impacto da estréia de Murilo em 1930, com Poemas, Mário de Andrade observava que além de seu método de “essencialização poética”, como se o poeta reescrevesse o mesmo poema

’ Publicado no livro Não quero prosa, página 173 a 176, com algumas alterações e com o título Uma Antologia de Murilo Mendes.

^ No livro, originalidade humana. ^ No livro, disposto.

todas as vezes, “o que me entusiasma sobretudo nele (...) é a integração da vulgaridade da vida na maior exasperação sonhadora ou alucinada”. E ajuntava; “É inconcebível a leveza, a elasticidade, a naturalidade com que o poeta passa do plano corriqueiro pro da alucinação e os confunde”. A poesia de Murilo, a um tempo abstratíssima e ultrapessoal, é em muitos aspectos a criação mais original e complexa de todo o modernismo brasileiro, mas também uma das menos conhecidas do público maior. Por tudo isso é mais que louvável o recente lançamento de uma atualizada Antologia Poética de Murilo, com seleção de João Cabral, a quem o livro é dedicado, e introdução crítica de José Guilherme Merquior. Ora, antologiar Murilo, fazer de seus poemas uma seleção literariamente criteriosa e bem cuidada, é uma missão praticamente impossível de ser feita, e isso por uma imposição mesma dessa poesia, dos procedimentos que adota e sistematiza. Fato que desde já isenta João Cabral de qualquer risco de falha mas que também toma redundantes e supérfluos os seus eventuais acertos... Aliás, um dos modos de classificar os poetas é esse: existem os facilmente antologiáveis, mas que por isso mesmo são os que justificam e exigem a função de um antologiador criterioso; e há os mais refratários à antologia, mas que também por isso tomam sem peso a competência do antologiador, em seu lugar qualquer mortal teria feito tão bem ou tão mal. Por isso não deixa de ter sua graça o que vai anunciado na contracapa; “a presente antologia é escolha de João Cabral de Melo Neto, o que lhe assegura a precisão e o rigor^’. A fi-ase revela, por outro lado, como estão fortemente associadas as noções de rigor, precisão, etc., a qualquer atividade que porventura João Cabral desempenhe. Mas o fato é que em Murilo qualquer combinação de poemas tem muita chance de resuhar em antologia apreciável, o que de jeito nenhum é o caso da grande maioria dos restantes grandes poetas brasileiros.

Essa originalidade da poesia de Murilo Mendes não passou desapercebida a Mário de Andrade, que fez dela até agora a melhor leitura de que dispomos. O que Mário descobre de essencial na poesia do outro é que nela os defeitos, as irregularidades, quando existiam, não contavam ponto negativo, pois apareciam estranhamente dotados de uma equivalência com os valores

positivos do poema, seus momentos de êxito. O jeito pessoal de Murilo ser surrealista consiste em dar vida, em sua poesia, a uma simultaneidade de planos e ao mesmo tempo desierarquizá-los entre si, cancelando supremacias e precariedades, distribuindo o mesmo valor ao valor e à sua falta, que nesse

caso não falta, sendo mesmo um dos sete paus com que se faz a tal canoa../

É mais ou menos assim; na poesia de Murilo a precariedade não prejudica e o excesso não sobra. Dessa desierarquização sistematizada dos elementos e planos do poema vai decorrer uma desierarquização entre os poemas, de agora em diante nenhum é muito pior nem muito melhor que os outros,^ o que tem como custo, segundo Mário de Andrade, fazer “desaparecer fortemente a possibilidade da obra-prima, da obra completa em si e inesquecível como objeto”. E acrescenta: “Se o Tanto Gentile, st o Alma Minha, se As Pomhas^ se distinguirão sempre entre milhares de sonetos, e são logo inconflindíveis: se em Gonçalves Dias o Y-Juca-Pirama é uma obra-prima e tal outro poema é medíocre, nesta nova ordem de criação utilizada por Murilo Mendes essa possibilidade de distinção desaparece estranhamente. Um ou outro verso, tal ou qual momento do poema saltam por mais belos, mais comoventes, mais profundos, porém as obras se enlaçam umas nas outras, vazam umas pras outras, pairam numa indiferença iluminada em que não é preciso mais distinguir a grande invenção da invenção menos forte (...) E se o trato quotidiano do livro permite aos poucos a gente ir afeiçoando mais tal poema e distinguindo este outro, a gente não possui mais razão pra separar a obra-prima e a justificar”.

O que acontece é que Murilo desparticulariza as imagens de seu imaginário poético, num movimento de alegorização que Mário de Andrade descreve^;

“Do mesmo jeito com que em Cícero Dias as formas assumem valores de universal, em sínteses tão abstratas que nele um cachorro se confunde com

Trecho que não aparece na versão do livro. Está deslocada para para o fim do texto. Cf nota

10.

® No livro, a fi:ase termina aqui.

um burro, é o Quadrúpede, a pomba se confundindo com o urubu é a Ave; do o

mesmo jeito com que sem particularízação individualista , os seus assuntos

são primários e genéricos, a sexualidade (se confundindo com o amor), o assunto da morte, o do prazer, o do Além; também em Murilo Mendes os assuntos são genéricos e esses mesmos, os ritmos se tomam impessoais...”

Em Murilo, pelo fato de rarear a possibilidade da “obra completa em si”, e também porque “as obras se enlaçam uma nas outras, vazam umas pras outras”, seus poemas vão funcionar como se fossem fragmentos. José Guilherme Merqior observa esse aspecto do problema ao falar, na introdução, da “energia centrífuga da semiose muriliana”, do seu surrealismo “semanticamente explosivo”. E comenta: “ Mário de Andrade intuiu algo disto quando notou a antidiscursividade de Murilo; mas infelizmente confundiu o fenômeno com falta de artesania, fraqueza de forma”. Ora, ^justamente Mário se preocupa, ao lado de identificar a insuficiência artística de Murilo, em chamar a atenção para sua relativa desimportância, e mesmo seu papel formativo.^° Escrevendo sobre Poesia em Pânico, em 1939, e registrando suas imperfeições técnicas, Mário concluiria certo: “Até que ponto o varrimento de tudo isso prejudicaria a grandeza mesma deste poema? Em verdade todo este cisco concorda com a higiene sentimental do livro e concorre para lhe dar o seu caráter”.

’ No livro: “que Mário de Andrade descreve assim:”

* Trecho que não aparece no livro. Há, no entanto, indicação de que algo foi cortado. A citação de Mário de Andrade ficou assim no livro: “Do mesmo jeito com que em Cícero Dias as formas assumem valores de universal, em sínteses tão abstratas que nele um cachorro se confunde com um burro, é o Quadrúpede, a pomba se confundindo com o urubu é a Ave (...) os seus assuntos são primários e genéricos (...): também em Murilo os assuntos são genéricos e esses mesmos, os ritmos se tomam impessoais...”.

® No livro, foi acrescentado um mas: “Ora, mas justamente Mário...”.

No livro, foi acrescentada uma fiase: “A insuficiência em Murilo é mesmo imi dos sete paus com que se faz a tal canoa”. Esta frase é a que falta em outro trecho. Cf nota 4.

Revista Novos Estudos Cebrap, n.° 14, p. 68-70, fevereiro de 1986