• Nenhum resultado encontrado

Escrever uma resenha é como fabricar uma mercadoria e depois colocá-la em circulação para consumo anônimo. Na verdade não conheço meu leitor, nada sei de suas taras e virtudes, não consigo imaginar com quantos paus costuma fazer sua canoa. Medito com meus botões: neste exato momento que obscuras idéias ou que impulsos nobres percorrem a delicada alma de quem me lê? Ante o profundo silêncio creio ser possível, não obstante, um par de suposições.

Certamente estarei sendo injusto se imaginar que meu leitor não é versado em sortidas frivolidades, ou que não morre de curiosidade para saber da vida alheia. Afinal, somos todos humanos. Outrossim, creio não estar desabonando a verdade ao supor que, em questões de literatura, meu solicitado leitor não seja nenhuma sumidade. Não vejo,

i

todavia, motivo para melindres: afinal, existe por aí um bom par de doutores nas belas letras que certamente roubam a nosso sensível leitor a primazia em questões de ignorância literária. Mas vohemos à vaca fiia.

A natureza que generosamente favoreceu o leitor com suficiente dose de bom senso não fez mais do que prepará-lo para certas ocasiões, em que o contato com assunto especializado requer atividade do espírito e inércia do corpo. Se o caro leitor neste momento pratica seu matinal teste de Cooper, ou espoja-se nos lençóis à espera do sono, peço a fineza de mudar de canal.

Aos gatos pingados que sobraram presto informações: a meta desta resenha é comentar o livro O Escorpião Encalacrado, de Davi Arrigucci Jr. Ao contrário do que os mais argutos estão supondo, não se trata de monografia sobre insetos venenosos, mas sim de estudo crítico sobre o conjunto da obra do escritor argentino Julio Cortázar.

Vejam a complicação arrumada: pretendo falar sobre um livro, que fala sobre uma obra, que pretende falar da realidade, e ainda espero que meu leitor forme, sobre as mal traçadas linhas que lê, sua própria opinião. Mas se observarmos atentamente, veremos que a enorme distância que separa os pontos extremos desta seleção (a realidade da qual parte Cortázar, e esta resenha, da qual parte o leitor) é apenas aparente. E por uma razão ao mesmo tempo simples e fundamental: é que a realidade da qual parte Cortázar é, virtualmente, a mesma na qual vive o leitor, e que não por coincidência é ainda comum ao autor do livro que devo comentar, e também a mim, que pretendo fazê-lo. Ou seja; é porque existe um mundo comum a todos nós, produtos de nossa própria prática histórica, que podemos nos entender. As várias formas de linguagens , seja a ficção ou sua critica, seja esta resenha ou qualquer conversa de rua, todas elas se referem, com mais ou menos mediações, à mesma realidade.

Vejamos, p. ex., imi ponto a partir do qual a experiência vivida mais imediata de meu leitor pode servir de perfeito fio condutor para introduzi-lo no tema “especializado” que trataremos. Sempre que um indivíduo lê um romance ou entra em contato com outras formas de ficção, é levado a tomar posição e manifestar seu “gosto” pessoal por tais obras. Gostar ou não gostar, ou mesmo ficar indiferente, são modos de reagir que prefiguram, num nível ainda elementar e pré-teórico, um problema central da crítica artística: a questão do valor das obras.

Para comentar o livro de Davi Arrigucci mudarei de tom e de registro, fenômeno que pode ser interpretado como expediente técnico. Antes do término da resenha, solicitarei novamente a colaboração mais direta do leitor, com quem espero trocar algumas idéias.

A quem a obra presta contas

A obra literária, como qualquer outro produto humano, pode ser de boa ou de má qualidade, pode ser dotada de maior ou menor grau de autonomia, etc. Como qualquer outro objeto que é fhio de construção, a ficção também esbarra com o inevitável problema do

valor. A obra não está aí para ter sua existência meramente constatada

ou descrita, mas acima de tudo está exigindo interpretação. Neutralidade diante de coisas desiguais, na ficção ou na vida, só é possível na imaginação de quem acha que é possível, mas fora dela não é.

Por outro lado, que critérios são estes que autorizam o critico a emitir juízos de valor sem ser arbitrário? Se a obra literária é objeto construído, é de se supor que a crítica trabalha nos limites desta construção, no âmbito de sua lógica interna, pesquisando o grau de coerência e integração entre os elementos formadores daquele mundo ficcional. Em poucas palavras, o que interessa são os problemas de composição, ligados a estrutura da obra e sua autonomia.

Progredimos um pouco, mas chegamos num outro ponto de partida: pois da ótica da interpretação do valor artístico, é precisamente aqui que os problemas começam. Com que ingredientes e materiais o escritor trabalha? Sua liberdade de inventar é absoluta, função de talento e arbítrio pessoais, ou sofi^e restrições do lado do próprio objeto literário? A quem presta contas a obra: às fixações de seu criador, à autoridade do crítico, ao gosto do leitor ou à si mesma?

Se a interpretação de qualquer obra passa por todos esses pontos, a interpretação da obra de Julio Cortázar leva tais indagações às úkimas conseqüências. A extrema complexidade de tal literatura coloca questões que são duro desafio para a crítica, exigindo dela que passe pelos mesmos riscos e relativizações por que passou seu próprio objeto. Ao nosso ver o enorme mérito de Davi Arrigucci está em ter dado uma

posição de O escorpião encalacrado nos quadros de nossa vida intelectual acadêmica falaremos mais tarde. Veremos agora o problema central colocado pela literatura de Cortázar à ficção moderna, para que por ele possamos medir o alcance e a profundidade que nos ocupa.

A tradição experimental da arte moderna, somada ao radicalismo natural que daí emerge, tem revelado em algumas de suas principais tendências, o que poderíamos entender como vocação a certo

niilismo estético. A chamada arte moderna carrega em seu próprio

ventre o veneno que dissolve, é como se sua estrutura fosse lentamente incorporando impulsos internos de autodestruição, e a fatalidade desse movimento, aparentemente, parece fiigir ao controle dos próprios artistas.

É dentro desta tradição moderna que Davi Arrigucci vai situar o projeto de Cortázar, sua tentativa de expressar uma realidade inalcançável e plena: “A exigência de se atingir o que as palavras não podem dizer acaba por exigir também a tematização do próprio ato de narrar, ou melhor, da sua possibilidade. É como se a narrativa se tomasse uma narrativa em busca de sua própria essência, centrando-se sobre si mesma. A narrativa de uma busca se faz uma busca da narrativa. Ao tematizar uma busca essencial, tematiza-se a si própria”, (pág. 21).

Já não se trata apenas, como no romance tradicional, de contar o itinerário sem saída de um herói problemático, mas sim de uma

narrativa problemática. Davi prossegue: “Não é somente o herói que

não consegue alcançar os valores autênticos ao fim da busca; a própria narrativa, enquanto linguagem da busca, titubeia quanto ao modo de indagar esses valores adequadamente, ou, pelo menos, apresenta como crítica essa investigação. Incorpora, por isso, a hesitação ambígua à sua técnica de construção: defi^ontando-se consigo mesma, encaracola-se, volta-se contra si própria. A linguagem criadora é minada pela metalinguagem. 0 projeto para construir transforma-se, paradoxalmente, num projeto para destruir. A poética da busca se faz uma poética da destruição” (pág. 22).

Esse projeto rigorosamente radical de busca e rebelião permanente diante das próprias possibilidades da narrativa , lança a obra de Cortázar num labirinto dentro do qual sempre “voltam as voltas”, onde o ponto de chegada repõe surpreendentemente as condições iniciais de partida, onde a progressão não progride.

Acionando um poderosos arsenal de técnicas corrosivas, entre as quais a paródia, o efeito da dissonância, a fragmentação minuciosa da palavra, da sintaxe da frase, do texto inteiro e do próprio livro, a colagem de textos alheios, a exposição de um discurso teórico implícito que critica a ficção que o contém , etc., tudo isso leva a obra de Cortázar a extremos de ambigüidades que a fazem oscilar entre a desintegração caótica e o mais completo silêncio.

O exame dessa atitude destruidora em face da linguagem permite situar amplamente a estirpe à qual pertence Cortázar, e que atravessa o Romantismo, o Simbolismo, para atingir o ápice da força demolidora como o Dadaismo e o Surrealismo, e seus desdobramentos contemporâneos. Mas a evolução de nosso autor é bem mais diversa do que aquele que ocorre com os nomes mais típicos do experimentalismo moderno, Mallarmé e Joyce, que parecem conduzir suas obras de modo linear e progressivo ruma ao impossível, através de um crescente estilhaçamento da linguagem. Como nota Davi, “mesmo após uma radicalização do aspecto demolidor de Rayuela, voltam os poemas (até sonetos) em que se imbricam as metáforas e os contos fantásticos, ao lado de reflexões críticas e da própria meditação sobre a impossibilidade de se ir adiante. Cortázar mantém em permanente tensão os pólos opostos que se digladiam na própria consciência criadora. A hesitação está no âmago da obra” (pág. 112).

Radical mas não suicida, Cortázar faz de seu projeto destruidor apenas um meio, sem dúvida sumamente problemático, para atingir uma forma superior de construção. Neste caso, quanto mais conseqüente for o autoquestionamento da narrativa, mais conseqüente será o resultado construído. Sem o risco da perfeição, não se atinge a perfeição do risco. É dentro desta sistemática que Davi estuda os três

(Elperseguidor), o da destruição visada {Los Babas dei Diabló) e o da

destruição arriscada (Rayuela). Nestes três ensaios, verdadeiros modelos de análise literária, Davi explicita, respectivamente, certos procedimentos sem os quais não seria inteligível a poética de Cortázar: o jazz, a fotografia e a montagem.

Convém agora insistir no ponto central, exatamente aquele onde os textos de Cortázar e o de Davi correm perigos semelhantes. Como interpretar, do ponto de vista de uma teoria literária, o experimentalismo técnico ininterrupto que reside o ritmo das vanguardas modernas? Como salvar a obra de Cortázar sem que seja preciso fazer concessões de método?

Alguns pontos polêmicos

O que pretendemos aqui é apenas chamar a atenção para certas dificuldades que surgem do lado da conceituação da literatura enquanto arte. Ao abrirmos o livro de Davi nos deparamos com algo surpreendente; onde estão aquelas intermináveis teorizações abstratas que são a marca registrada dos intelectuais brasileiros de agora? A novidade, e também o mérito, começam aqui: Davi não faz teoria da teoria, mas analisa obras. E é neste movimento essencialmente prático, sem o qual nenhuma teoria prova consistência, que expõe, implicitamente, sua visão orgânica da Literatura. E os problemas que é chamado a resolver em Cortázar são semelhantes àqueles que evita em sua própria análise, os impasses da metalinguagem. No âmbito da ficção, qual a importância temática de tais impasses?

Se o projeto básico de Cortázar é inseparável de uma busca de revelação do real, e se tal revelação não se fez sem a “desautomatização” dos moldes enrijecidos da linguagem, então cabe indagar sobre dois problemas centrais e vinculados: as novas relações que a linguagem artística deve estabelecer consigo mesma, para que

pretende revelar. Se a linguagem não tem história autônoma e nem é fonte exclusiva das significações que elabora, isso é porque subjacente a ela, e relativizando-a estão as significações mutáveis, pré-formadas pela História, e que são a matéria-prima natural de qualquer arte.

Ora, ao se lançar na aventura radical metalinguística, a tendência da literatura é perder sua função essencialmente mediadora, desIigando-se da História para ir à busca de um sentido que o transcende, e desde o início inatingível. É justamente esta vertigem do inalcançável que realimenta a retomada cada vez mais radical do projeto, o que, no plano da composição, parece liberar a linguagem para a possibilidade de um experimentalismo sem freios.

A perda da dimensão imanente das significações e de sua dependência estrita do caráter autoproduzido da história humana impede o reconhecimento de que, subjacente ao projeto de “invenção permanente”, pode estar se ocultando outro, aquele que tematiza a pura infinitude um vazio em constante variação técnico-formal. No limite, o que está em discussão é a viabilidade de uma renovação radical, não

formalista, das formas e técnicas artísticas de representação. Do ponto

de vista das categorias estéticas, trata-se de uma tomada de posição mais firme em relação ao valor problemático da alegoria (forma abstrata de significar) enquanto princípio estruturador da forma artística.

A obra de Cortázar está no centro destes problemas, e achamos que talvez haja, em certos pontos da interpretação de Davi Arrigucci, certa imprecisão a respeito. Por vezes temos a impressão de que o analista se deixou fascinar demais pelo texto que analisava, desta relação amorosa teria nascido certa cumplicidade capaz de interferir no julgamento. A enorme simpatia de Davi Arrigucci pela obra que estuda pode ser notada em seu próprio estilo, visivelmente inspirado na atmosfera criativa que emana da obra de Cortázar. Mas na raiz desta simpatia está uma atitude positiva, que cada vez mais vai se tomando rara entre nossos analistas da literatura.

o mistério do Rio e de São Paulo

O leitor que me acompanha até aqui está convidado a meditar sobre um tema que não deixa de ter o seu mistério. Vejamos: por que será que o trabalho intelectual que se faz em São Paulo é tradicionalmente tão mais sério, em todos os sentidos, do que aquele que vinga no Rio? Pelo menos no âmbito acadêmico isto me parece uma verdade desconcertante; um ensaio do gabarito de O escorpião

encalacrado dificilmente poderia ter sido feito no Rio, onde o estilo de

reflexão intelectual que predomina tem outras características.

Ficando apenas no nível da constatação, já que as razões explicativas estão fora do alcance desta resenha, seria possível enumerar ao acaso alguns sintomas desta diferença. Primeiramente noto, no livro de Davi, uma atitude que me parece modelar; o absoluto respeito e atenção pela autonomia da obra que analisa, subordinando a tarefa crítica ao trabalho paciente e minucioso de interpretação e explicitação de seus significados.

A concepção que prevalece nos meios acadêmicos cariocas é bem outra: a teoria é quase sempre reificada, passando a si bastar a si mesma, e as obras literárias são como que apenas toleradas, um fardo de que a teoria se deve desfazer na primeira oportunidade. O importante é a teoria de cada um: as obras são usadas crescentemente apenas como

casos ilustrativos, meras referências que servem para exemplificar a

onipotência auto-suficiente das teorias. O leitor que quiser ver com seus próprios olhos pode consultar qualquer exemplar da Revista de Cultura

Vozes.

Outro ponto que é notável no livro de Davi, altamente erudito e bem informado, é a ausência radical de qualquer concessão ao modismo intelectual, vício que na ilustração carioca é coisa crônica e de rotina. Correlata dessa atitude de Davi é a ausência de preconceitos e a completa independência intelectual com que incorpora á análise, sob controle rigoroso, as diversas contribuições de autores e teorias com quem não se identifica totalmente.

No prefácio escrito por Antonio Cândido iemos o seguinte: “É curioso que no método de análise usado aqui não haja marca nenhuma da corrente mais em moda até bem pouco, o Estruturalismo”. Na serenidade desta constatação não deixa de haver certa ponta de ironia, pois Davi solicita, sempre que precisa, as idéias de Roland Barthes, Claude Bremond, Lévi-Strauss, etc., mas apenas na hora certa e para finalidades específicas a que servem. Esta atitude é praticamente inexistente no Rio, onde prevalece feroz campeonato entre grupos teóricos rivais, cada um representando reHgiosamente a seita epistemológica a que pertence, geralmente com sede na França. Um pequeno teste de cultura geral para distrair meu leitor; quem é o representante de Jacques Lacan no Rio? e o de Althusser? e o de Greimas? e o de Foucault? E debaixo desse clima muda-se de idéias como quem muda de gravata.

Mas nunca será demais recordar que Davi Arrigucci faz parte de uma equipe de estudiosos e pesquisadores que se formou sob a orientação intelectual segura e incomparável de Antonio Cândido, sem nenhum favor nosso maior nome em assuntos de história e teoria literárias. Também não é demais antecipar a publicação próxima de uma tese sobre Machado de Assis, de um ex-assistente de Antonio Cândido, Roberto Schwarz, e que é dos ensaios de interpretação literária mais vigoroso já produzidos no Brasil. Caro leitor: quais seriam os motivos que explicam o modismo e superficialismo da vida intelectual carioca? Para concluir, vejamos um fato interessante. Quando passou pelo Brasil Cortázar deu uma entrevista para o jornal Opinião (n° 15). Perguntado sobre suas re41ações com a critica literária, respondeu: “Aqui no Brasil há um jovem chamado Davi Arrigucci, de São Paulo, que escreveu uma tese de doutorado sobre meus livros, que tem um titulo muito bonito em português. Fiquei fascinado porque é um livro maravilhoso. Não é um livro de elogio, é um livro de critica, é uma tentativa de buscar as direções, as linhas de força de toda a minha obra. Porque eu escrevo um livro após o outro, sem pensar no anterior nem no que virá. Ele, como crítico muito inteligente, faz síntese, tem

uma mentalidade sintética e me mostra coisas que eu não podia suspeitar. Neste sentido, a crítica me é muito útil”.

Opinião n° 71, de 18 de março de 1974 )