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A OBRA Três casos de estudo

56. Esboço da Sagrada Família

57. Interior da nave da Igreja da Colónia Guell

O Carácter e a Memória

Muito mais do que o simples conhecimento da superfície física da Ilha da Madeira, dos seus materiais e técnicas construtivas, da cor e elementos formais da arquitectura popular e vernacular, noções fundamentais mas relativamente fáceis de se adquirir, Chorão Ramalho compreendeu a personalidade e carácter do povo que a edificou, demonstrando na sua arquitectura um “sentir madeirense”. Como Victor Mestre refere, “há valores abstractos que não são fáceis de contabilizar, caracterizar ou mesmo explicar, mas que se «sentem».” (Mestre, 2002: 162) É o que acontece nas

obras de Chorão Ramalho onde se podem registar subtilezas que, não correspondendo a um aspecto específico da arquitectura vernacular da Madeira, sugerem algo do carácter madeirense, seja em relação à arquitectura como objecto, seja em relação à forma de vivenciá-la. É o caso da importância dada à vegetação, na cobertura ajardinada da garagem da casa paroquial, e na larga floreira que funciona como guarda à varanda, que conferem uma integração harmoniosa com a paisagem, profundamente apreciada e valorizada na Ilha. Também o tratamento dos jardins que envolvem a Igreja em socalcos, suportados através de muros de suporte em aparelho de pedra basáltica, para além de constituírem uma solução engenhosa que permite vencer o forte desnível do terreno, invocam a memória dos conhecidos poios madeirenses, simbolizando o esforço do povo madeirense que, ágil e arduamente, domou a terra para o seu sustento e seu orgulho.

Relação Interior / Exterior

A Igreja do Imaculado surge, como já vimos, numa época em que a Igreja Católica vinha sofrendo alterações, tornando-se mais receptiva a uma revisão e possível renovação litúrgica, numa tentativa de se modernizar e adaptar aos progressos da vida contemporânea, privilegiando cada vez mais a ideia de templo aberto à participação dos fiéis, em detrimento do edifício religioso como casa de Deus. É nesta tentativa de incentivar a participação mais activa dos fiéis, chamando o Homem contemporâneo para dentro do templo ou, numa atitude inversa, trazendo a cerimónia para seio da comunidade no exterior, que Chorão Ramalho, numa proposta inovadora, transfere o baptistério, totalmente envidraçado, para o exterior do templo.

A ideia de se abrir acesso ao baptistério pelo exterior tinha já sido experimentada na arquitectura moderna no início do século por Pardal Monteiro [1897 – 1957] na já referida Igreja de Nossa Senhora de Fátima de 1934-38, em Lisboa. Esta igreja terá sido a primeira em Lisboa a desafiar os códigos revivalistas tradicionais, essencialmente através da volumetria exterior, onde é adoptada uma linguagem claramente moderna, manifestada através da articulação e distinção dos volumes do corpo principal, do baptistério e da torre. No entanto, o baptistério permanece ainda independente do corpo central da Igreja, numa cota inferior à da nave e apenas evidenciado volumetricamente no exterior já que, espacialmente, não recebe grande destaque. Já dentro do espírito do MRAR, na Igreja de Moscavide, em 1953, o baptistério é inserido no interior do templo, sucedendo a entrada no alinhamento do eixo central, o que “envolve uma proposta interessante de acentuação da sua importância litúrgica, embora ressinta da falta de espaço próprio, tratado com diferente intenção psicológica.” (Portas, 1957: 25) Na Igreja do Imaculado, Chorão Ramalho não se limita a colocar o baptistério no eixo central, como o transporta para o exterior integrado num alpendre que se encosta à fachada do templo, e a partir do qual se ergue, “como uma pequena torre zimbório” (Freitas, 2010: 43), ampliando desta

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Se na Igreja de Moscavide o baptistério ressente da falta de espaço próprio, na Igreja do Imaculado ele simplesmente renega qualquer necessidade de um local destinado a si no interior templo, optando pela apropriação de todo o espaço exterior do adro. De facto, se, como afirma Manuel Gaspar de Freitas (2010: 43), o adro da Igreja do Imaculado, por ser percorrido a Norte por uma galeria exterior coberta faz referência a um claustro, então o baptistério será o seu centro espiritual, uma vez que, apesar de não se encontrar no centro físico do adro, é definitivamente o foco de toda a atenção nesta zona. Esta tentativa de transportar a cerimónia para o exterior do templo terá o seu expoente na Capela de Nossa Senhora de Fátima, do Conjunto Hidroeléctrico de Picote, construída em 1958, da autoria de Manuel Nunes de Almeida (1924). Aqui, em vez do baptistério, onde se concretiza o sacramento dos fiéis, é o próprio púlpito que se localiza no exterior, inserido no alpendre, possibilitando a celebração da cerimónia ao ar livre. Não se sabe se uma obra terá influenciado a outra, pois apesar da Igreja do Imaculado ter sido projectada já em 1955, a sua construção ter-se-á prolongado até 1978, altura em que se terminou o conjunto. No entanto, influências mútuas não seriam de estranhar uma vez que Chorão Ramalho, enquanto arquitecto “residente” da Comissão Administrativa dos Aproveitamentos Hidráulicos da Madeira (Freitas, 2010: 50) e autor do projecto de todas as centrais e equipamentos ligados a esta actividade, certamente estaria atento à construção do Conjunto Hidroeléctrico do Picote, e vice-versa.

A relação entre o interior e o exterior baseia-se assim, não numa distinção entre o público e o privado como é normal noutro tipo de programa, mas no momento de passagem do mundo profano para o sagrado. Esta passagem é feita através da transição entre ambientes distintos – desde o espaço aberto e descoberto do adro, em contacto com a densa vegetação dos jardins exterior, passando pelo espaço exterior coberto do alpendre onde se insere o baptistério envidraçado, e antes de finalmente se entrar para o espaço interior do templo, o vestíbulo, espaço semi- interno protegido por portas envidraçadas, onde o pavimento exterior do adro penetra. A localização do baptistério acompanha assim a ideia de que o fiel, antes de entrar para o mundo sagrado, tem que passar pelo baptismo, o primeiro sacramento, praticado na pia baptismal, aqui de desenho purista em mármore branco.

58 59 60 61 62 58. Igreja de Nossa Senhora de Fátima em Lisboa 59. Capela de Nossa Senhora do Picote (vista da fachada com o púlpito no exterior) 60. Planta do piso térreo da Igreja de Moscavide 61. Fachada principal da Igreja de Moscavide 62. Torre sineira da Igreja de Moscavide

63. Fachada da Casa