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ESCOLA EXPERIMENTAL DE BONNEUIL: UM LUGAR PARA VIVER

A escola experimental de Bonneuil foi fundada em setembro de 1969, em Bonneuil-sur-Marne, na França, pela psicanalista Maud Mannoni. Essa instituição foi criada, pautada em uma perspectiva de não segregação, para acolher crianças e adolescentes excluídos do sistema escolar, familiar ou social, dentre eles autistas e psicóticos.

A criação dessa escola ocorreu em meio ao movimento antipsiquiátrico na Europa, em que a compreensão da doença mental e os modelos de tratamento das instituições psiquiátricas clássicas eram questionados e novas formas de atenção em saúde mental eram propostas. Voltolini (2004) afirma que Mannoni se tornou representante desse movimento; no entanto, alerta para o fato de que, talvez, a

psicanalista não concordasse que seu trabalho fosse situado no movimento antipsiquiátrico.

De todo modo, na Escola Experimental25 de Bonneuil, foi oferecido um lugar

para viver a esses sujeitos, bastante diferente dos hospitais psiquiátricos. Nessa

proposta, não permaneciam “mergulhados em banhos de tratamento”, pois buscava- se “acolher o sintoma mais do que analisá-lo”, como refere Mannoni em uma entrevista sobre a instituição (MANNONI, 1992, p. 59). Nesse sentido, o tratamento analítico não é realizado no interior de Bonneuil.

As crianças e os adolescentes recebidos em Bonneuil deixam “seus rótulos de loucura do lado de fora”, de forma que sua trajetória ou as atividades que serão realizadas não são predeterminadas com base em seus diagnósticos médicos. “Lá dentro, o importante é atravessar ainda que de forma precária, um processo de escolarização, ferramenta fundamental para uma futura reinserção no circuito social produtivo” (MANNONI, 1992, p. 58).

Para seu funcionamento, a escola era registrada oficialmente como um hospital-dia e um lar terapêutico à noite. Porém, Mannoni (1998) ressalta que o significante para crianças e adolescentes era o de escola (por vezes, escola de “loucos”, mas, ainda assim, uma escola) e não de um lugar de doentes. Tendo isso em vista, na porta de entrada, por exemplo, estava escrito somente Escola

Experimental. Evidentemente, o significante escola, ao invés de hospital ou

manicômio, produz efeitos para os sujeitos que frequentam a instituição. Conforme salienta Jerusalinsky (2004, p. 150), “a escola não é socialmente um depósito como o hospital psiquiátrico, a escola é um lugar para entrar e sair, [...] alguém que frequenta a escola se sente mais reconhecido socialmente do que aquele que não frequenta”.

Em Bonneuil, opera uma distinção entre adultos e crianças. Dentre os adultos, estão os estagiários, de fora de Bonneiul e, com frequência, de fora do país; os temporários, que vão à escola dois ou três dias por semana; e os permanentes que comparecem quase diariamente. Lérès (1998, p. 34) afirma que os adultos são

25 “Quando se fala de Bonneuil como um lugar experimental, é importante sublinhar que não se trata

de tomar o indivíduo como objeto de experiências [...]. Experimental deve ser entendido no sentido que Bonneuil não é o lugar de aplicação de uma regulamentação tradicional, mas sim um lugar onde qualquer coisa pode surgir a partir do lugar deixado vago ao imprevisto” (MANNONI, 1978, p. 46).

“aqueles que têm a tarefa de garantir o enquadre responsável pela criança” e “não devem se eximir frente à angústia que a criança traz no interior do enquadre”.

Em relação à psicanálise, em Bonneuil, ela não é utilizada como técnica de tratamento. Assim, a presença da psicanálise não é verificada da forma clássica, porém, paradoxalmente, tudo o que se faz em Bonneuil é baseado na teoria psicanalítica. Segundo a fundadora, na instituição há uma clareagem analítica, que orienta e ajuda a inventar (MANNONI, 1992).

O termo clareagem, traduzido do francês éclairage, é um neologismo na língua portuguesa. Éclairage poderia ser traduzido para o português como iluminação ou esclarecimento. No entanto, o primeiro termo confere uma ideia de luminosidade excessiva, uma vez que a expressão francesa “refere-se apenas ao ato de jogar um pequeno foco de luz”. O segundo termo denota imprecisão porque dá uma ideia de explicação que não corresponde ao sentido de éclairage analytique. Dessa forma, o termo clareagem corresponde mais precisamente ao significado da palavra francesa (KUPFER, 2001, p. 68).

Além da noção de clareagem, o conceito de instituição estourada baliza a montagem institucional da escola. Nesse sentido, é observada uma abertura da instituição para o mundo exterior, uma vez que Bonneuil é um lugar de passagem, do qual sempre se parte por determinado tempo ou definitivamente. Esse conceito visa proteger o sujeito do “perigo da institucionalização da sua ‘doença’” (MANNONI, 1977, p. 141). De acordo com Mannoni (1977, p. 79-80):

[...] em vez de oferecer permanência, a estrutura da instituição oferece, sobre uma base de permanência, aberturas para o exterior, brechas de todos os gêneros (por exemplo, estadas fora da instituição). O que sobra: um lugar de recolhimento, um retiro; mas o essencial da vida desenrola-se em outra parte – num trabalho ou num projeto exterior. Mediante essa oscilação de um lugar ao outro, poderá emergir um sujeito que se interrogue sobre o que quer.

Considerando a noção de instituição estourada, são oferecidas às crianças e aos adolescentes atividades dentro e fora da escola. Essas atividades contemplam os planos da imaginação e da realidade (MANNONI, 1992). No plano da imaginação, estão os ateliês, em que a criação tem papel de destaque, dos quais os sujeitos poderão escolher ou não participar. São oferecidos ateliês de música, teatro, pintura, dança, escultura, etc., sendo que outros podem ser criados por adultos, mediante o

interesse das crianças e dos adolescentes. Esses ateliês são organizados com rituais de início e de fim.

O plano da realidade é contemplado pelas atividades escolares propriamente ditas, por trabalhos realizados com artesãos da região e por trabalhos efetivos no exterior, como em construções, por exemplo. Assim, esse plano oferece, às crianças e aos adolescentes, atividades de escolarização no interior da instituição e trabalhos no exterior, visando a sua inserção social e a aprendizagem de um ofício. Em relação ao exterior, esses sujeitos circulam, sempre acompanhados pelos adultos, também em outros espaços, como o consultório de análise, sempre fora de Bonneuil, lieux d’accueiul26

(lugares de acolhida) e acampamentos de verão.

As atividades de escolarização propriamente ditas são desenvolvidas em aulas no período da manhã em pequenos grupos, de acordo com os interesses das crianças e dos adolescentes. Essas atividades contemplam, por exemplo, a escrita, a leitura e o cálculo. Em Bonneuil, é possibilitado ao sujeito participar dos programas de ensino oficiais, por meio da educação à distância ou com professoras do sistema de ensino público, para que possa ingressar ou retornar à escola comum. Para as crianças com dificuldades mais significativas, são criadas formas alternativas de aprendizagem (GEOFFROY, 2004).

Ainda em relação às atividades realizadas no interior de Bonneuil, há as tarefas na cozinha. Nesse espaço, adultos e crianças, designados para essa atividade, preparam a refeição durante um período da manhã. Nesse lugar, estão aquelas crianças, adolescentes e adultos responsáveis pelo almoço, mas também aqueles sujeitos que não suportam a permanência nas demais atividades. Na cozinha, circula a palavra, por meio de conversas durante o preparo dos alimentos e a refeição, assim como em todos os lares.

Para finalizar as considerações acerca da escola experimental de Bonneuil, apresento as ideias de duas autoras que são importantes para pensarmos as experiências de educação e de tratamento de orientação psicanalítica. A primeira é o questionamento, apresentado por Kupfer (2001), sobre a psicanálise estar ou não presente na montagem institucional de Bonneuil.

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Nos lugares de acolhida, as crianças e os adolescentes vivem com os adultos no período em que não estão na escola. Esses lugares ficam fora de Bonneuil. Segundo Benvenutti (1998, p. 36), o lieu

d’accueil “é um lugar em que as crianças entram para sair, para fazer um percurso, para não viver em

família. (...) Eles estão aí justamente com a ideia de separação da família, onde não entra a família, com todos os riscos que isso supõe”.

De acordo com a autora, o conceito de instituição estourada é fundamentado na leitura psicanalítica da psicose. A partir dessa compreensão, é proposta a alternância de lugares. As crianças e os adolescentes circulam dentro de Bonneuil, entre aulas, ateliês e cozinha, por exemplo, e circulam também fora da escola, indo para os lieux d’accueil, as atividades com os artesãos ou de trabalho efetivo, os tratamentos analíticos ou para suas residências. Assim, vemos operar a alternância na instituição. Nas palavras de Kupfer (2001, p. 75):

Para Mannoni, a alternância pode criar uma dialética de presença/ausência decisiva para o psicótico, para quem justamente a “noção” de ausência, de falta, não foi estabelecida, e não pode por isso produzir seus efeitos estruturantes.

As observações feitas em Bonneuil mostram que a alternância produz de fato efeitos estruturantes.

A equipe de estagiários também é, para a autora, um dispositivo criado por Mannoni com base na noção de alternância. O papel dos estagiários, oriundos de diferentes culturas e com diferentes idiomas, na instituição, é destacado como muito significativo por Mannoni (1990, 1998). Segundo a autora, esse banho de línguas “permitiu que determinadas crianças escapassem do terror da língua materna e habitassem em outra língua com uma menor sensação de perigo” (MANNONI, 1998, p. 23). Desse modo, crianças que não falavam em francês passaram a se comunicar em outro idioma. Ademais, Mannoni (1990) destaca os questionamentos trazidos pelos estagiários como importantes para a não estagnação da instituição.

Além disso, o fato de as análises de crianças e adolescentes serem realizadas fora da instituição evidencia a orientação psicanalítica na montagem institucional. Dessa forma, conclui Kupfer (2001, p. 75), “a própria montagem institucional poderá ser, assim, terapêutica”.

A segunda ideia é discutida por Bernardino (2007, p. 50) ao afirmar que Mannoni utiliza o conceito psicanalítico de sujeito do inconsciente, estendendo-o “a todas as crianças, até aquelas consideradas apenas ‘treináveis’, como uma aposta, para que as condições de surgimento do sujeito – sua antecipação por parte de um outro desejante – encontrem-se presentes”. Conforme a autora, Mannoni evidenciou que não havia um lugar para o sujeito em instituições criadas para atender a crianças e adolescentes com problemas na estruturação subjetiva ou no

desenvolvimento. Essa aposta no sujeito, por parte da escola de Bonneuil, é bastante evidente nos textos e relatos que tratam dessa instituição.

As postulações dessas duas autoras foram destacadas, pois perpassarão, de certa forma, a próxima instituição a ser abordada.