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Ao discorrer sobre o autismo, é interessante iniciar pela análise de como essa nomeação e sua conceituação foram sendo construídas ao longo do tempo. O desenvolvimento desse conceito tem origem no campo médico, mais especificamente no da psiquiatria. O discurso médico, por meio de classificações nosológicas dos manuais psiquiátricos, é bastante presente nas políticas públicas de Educação Inclusiva contemporâneas, conforme afirmado anteriormente. Por isso, analisar a construção do conceito de autismo faz-se pertinente neste estudo.

No intuito de realizar esse movimento de olhar para a história do conceito de autismo, tomo como referência os três grandes períodos da psiquiatria infantil, estabelecidos por Bercherie (2001). Em um primeiro período, o retardamento mental era o único transtorno mental infantil considerado. De acordo com o autor, esse período “cobre os três primeiros quartos do século XIX. Ele é exclusivamente consagrado à discussão da noção de retardamento mental, tal como constituída por Esquirol já antes de 1820, sob o nome de idiotia” (BERCHERIE, 2001, p.130).

Dessa forma, os sujeitos com autismo ainda não haviam sido destacados da grande categoria da idiotia. É importante ressaltar a afirmação de Bercherie (2001), segundo a qual é possível observar facilmente descrições de casos nesse período, que correspondiam, na realidade, às psicoses infantis.

É nesse momento que iniciam as intervenções reeducativas, de caráter médico-pedagógico, para os sujeitos considerados idiotas. Data dessa época a tentativa de reeducação de Victor, da qual tratamos no capítulo anterior. Para Bercherie (2001, p. 132), Victor era uma criança que “apresenta múltiplos traços que a aproximam de uma criança autista, mas até a década de 1930, a noção global de idiotia recobre esse tipo de caso”.

O segundo período teve início na década de 1880, com as publicações dos primeiros tratados de psiquiatria infantil. Segundo Bercherie (2001, p. 133), esse período, que perdura até 1930, “caracteriza-se pela constituição de uma clínica

psiquiátrica que é, essencialmente, o decalque da clínica e da nosologia elaboradas no adulto durante o período correspondente”. Dessa forma, a classificação das doenças mentais infantis seguia os moldes da nosologia psiquiátrica dos adultos.

Assim, o saber médico recorta da grande categoria da idiotia sujeitos que, na infância, apresentavam manifestações que não se restringiam à deficiência intelectual, a limitações cognitivas. Em 1906, Sanctis, psiquiatra italiano, destacou a demência precocíssima dos casos de idiotia. Esse médico publicou uma série de artigos tratando dessa entidade para descrever casos de demência precoce de Kraepelin30, com início na primeira infância. Para Sanctis, as crianças com demência precocíssima:

Escapan al diagnóstico de idiocia o de imbecilidad y má bien se les debe considerar bajo el concepto de demência precoz, en el sentido de que presentan los sintomas de esta psicoses, tales como buena memoria, buena capacidade de percepción, cosas todas que contrastan com uma inestabilidad extrema de la atención, uma debilidade o ausencia de formación de pensamento de orden superior, perturbacionas graves de la actividad voluntaria, del carácter y de las actitudes, tales como negativismo, tendência a las acciones rítmicas, impulsividad (SANCTIS, 1909 apud POSTEL; QUÉTEL, 1987, p. 519).

No mesmo ano, Theodor Heller, educador austríaco, faz uma “descrição autônoma” da demência precocíssima. Nessa descrição, são apresentados casos de crianças que, após três ou quatro anos de desenvolvimento normal, apresentaram perda da linguagem, um estado de indiferença e negativismo, bem como cólera e ansiedade, seguidas de transtornos motores bastante característicos: agitação, estereotipias e maneirismos (CIRINO, 2001). Esse quadro descrito por Heller constava no DSM – IV, vigente até 2013, como um dos transtornos globais do desenvolvimento, nomeado de transtorno desintegrativo da infância.

Em 1911, Bleuler publica seu tratado sobre esquizofrenia, renomeando o quadro de demência precoce proposto por Kraepelin. Em 1926, Homburger transpõe a noção de esquizofrenia para o campo da infância, designando essa entidade de esquizofrenia infantil. Nessa época, começa a se constituir a noção moderna de psicose infantil (BERCHERIE, 2001). É possível perceber, então, que as alterações

30

Psiquiatra alemão, nascido em 1856, escreveu oito edições do Tratado de Psiquiatria (de 1883 a 1915), considerado um dos pilares de fundação da psiquiatria moderna (PEREIRA, 2001).

nos comportamentos das crianças, como maneirismos, isolamento e tendência a estereotipias, começam a ser descritas como entidades diferenciadas da idiotia.

O terceiro período citado por Bercherie (2001) tem início na década de 1930 e é marcado pela influência das ideias da psicanálise. Nesse período, é apresentado o caso Dick, discutido por Melanie Klein. Dick tinha quatro anos e, ao chegar para o tratamento com a psicanalista, não brincava, isolava-se, “na maior parte do tempo articulava sons ininteligíveis e repetia constantemente certos ruídos”, e, ao falar, “utilizava incorretamente seu escasso vocabulário” (CIRINO, 2001, p. 82). Cirino (2001) questiona se não seria este um caso de um distúrbio do contato infantil, conforme as proposições do psiquiatra Leo Kanner.

Kanner nomeou e descreveu o autismo, em 1943, em um artigo intitulado “Distúrbios autísticos de contato afetivo”. Nesse texto, Kanner descreveu onze casos de crianças que apresentavam manifestações bastante peculiares e fez a distinção desse quadro que estava descrevendo de outras formas da esquizofrenia infantil, diferenciando-o da demência precocíssima de Sanctis e da demência infantil de Heller. Nas palavras de Kanner (1997, p. 167):

Em primeiro lugar, mesmo nos casos mais precoces conhecidos de entrada na esquizofrenia, o que inclui a demência precocíssima de Sanctis e a demência infantil de Heller, as primeiras manifestações observáveis foram precedidas por dois anos, pelo menos, de desenvolvimento normal, e os estudos de caso insistem especificamente na mudança mais ou menos gradual do comportamento do paciente. Todas as crianças de nosso grupo mostraram, desde o começo da vida, um fechamento extremo, não reagindo a nada do que proviesse do mundo exterior. Isto é expresso da forma mais característica pelo relato constantemente feito do fracasso da criança em adotar uma atitude antecipatória antes de ser carregada e em ajustar a posição de seu corpo ao da pessoa que a segura nos braços.

O psiquiatra destacou o início das manifestações como um marcador diferencial da síndrome que descreve em relação às outras. No autismo, segundo ele, essas manifestações, como o fechamento extremo, são observáveis desde o início da vida da criança. Além do fechamento extremo (autismo extremo), Kanner apresenta como signos do autismo as estereotipias, a ecolalia, a incapacidade de estabelecer relações com o outro, a excelente memória, o horror a ruídos fortes, as repetições monótonas e a dificuldade para utilizar pronomes pessoais.

É interessante observar que o termo “autismo” foi introduzido na literatura psiquiátrica, em 1911, por Bleuler. O psiquiatra utilizou esse termo para descrever um dos sintomas da esquizofrenia no adulto: a perda do contato com a realidade.

Kanner apropria-se do termo para nomear esse novo quadro, causa de tanto fascínio. De acordo com Kupfer (2001, p. 48), a descrição de Kanner difundiu-se rapidamente pelo mundo do entreguerras e particularmente nos Estados Unidos, pois “o mundo já parecia estar preparado e mesmo aguardando o recorte que Kanner acabara de criar. E fascinou-se”.

Após essa descrição de Kanner, o autismo apareceu como entidade nosográfica pela primeira vez no DSM – III (1980), como uma subcategoria dos transtornos globais do desenvolvimento. Na quarta edição do DSM, do ano de 1994, o autismo segue fazendo parte dessa categoria. Em 2013, na última edição desse manual psiquiátrico, o DSM – 5, ocorre a substituição dos transtornos globais do desenvolvimento pela categoria única chamada transtorno do espectro autista (MPASP, 2015).

Na atualidade é possível observar a proliferação de diagnósticos de autismo, em parte devido à eliminação de outras categorias nos manuais psiquiátricos, como a psicose infantil e a síndrome de Aspeger, para a adoção do continuum do espectro autista. Segundo Laurent (2014, p. 65), “o tal espectro dos autismos ampliou-se tanto que a quantidade de sujeitos supostamente afetados multiplicou-se por dez em apenas 20 anos, até atingir a frequência de uma criança a cada cem”. No contexto educacional, o aumento do número de alunos com diagnóstico de autismo também tem sido observado.

Após o esboço desse panorama da construção do conceito de autismo no campo psiquiátrico, proponho-me a tratar da abordagem psicanalítica desse problema psíquico. Essa introdução ao desenvolvimento infantil e, mais especificamente, ao autismo, com base no referencial psicanalítico, antecede a leitura sobre as práticas escolares propostas na inclusão desses alunos na rede municipal de ensino de Santa Maria/RS.

3.2 O OLHAR DA PSICANÁLISE: DESENVOLVIMENTO INFANTIL, SUJEITO