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Capítulo 1 – História do bairro e da “Escola do São João”

1.2. Primeira fase de imigração no bairro: os italianos e outros

1.2.3. Escola de periferia: escola pública

Historicamente, as cidades são segmentadas espacialmente seguindo critérios de diferenças e desigualdades, ou semelhanças e identidades que se atraem e se repelem. No artigo São Paulo, uma metrópole desigual, Taschner e Bógus (2001) afirmam que: “Toda grande cidade tem suas colônias raciais (...). são cidades dentro de cidades, cuja característica mais interessante é a de que são compostas por pessoas da mesma raça ou da

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mesma classe social”. De acordo com as autoras, divisões espaciais na cidade não são fato novo.

No bairro retratado identificamos uma comunidade que se formou a partir de características peculiares, numa região considerada periferia da cidade. A pesquisa nos fez refletir sobre a representação que temos de periferia, pelo senso comum, como lugares depreciados, e revelou-nos também outra impressão: de uma paisagem natural agradável atravessada pelo movimento da avenida, onde vivem pessoas acolhedoras com conforto em suas casas há várias gerações, onde quase todos se conhecem, estudaram na mesma escola e freqüentam a mesma igreja. No entanto, muitos filhos das novas gerações não moram mais no bairro e as crianças estudam em escolas particulares em áreas nobres da cidade.

Vale ressaltar que uma família composta por vários irmãos (e seus descendentes), filhos de um dos fundadores residem, quase todos, próximos um do outro numa mesma quadra, em casas de ótimo padrão. Mas não perderam a simplicidade e receptividade das pessoas do campo, o que faz lembrar uma cidadezinha dentro de Campinas, com casas espaçosas com varandas e jardins, onde as famílias ali criaram raízes.

Nesse movimento percebemos que

A fisionomia amadurece, as arestas se arredondam, as retas se abrandam e o bairro acompanha o ritmo da respiração e da vida dos seus moradores. Suas histórias se misturam e nós começamos a enxergar nas ruas o que nunca víramos, mas nos contaram. (BOSI, 2003, p. 74)

Lopes Jr. e Santos (2009), no artigo Novas centralidades na perspectiva da relação centro-periferia esclarecem que, na lógica da relação centro-periferia as novas centralidades levam ao questionamento da posição subalterna da periferia, ou do próprio termo periferia. Numa acepção tradicional, considerando a relação hierárquica entre os lugares intra-urbanos, a periferia estaria subordinada ao centro. Entretanto, na cidade polinucleada, o que seria a periferia uma vez que existem núcleos ou aglomerações em locais distantes e diferentes em seu tecido urbano? Nesse caso, as hierarquias são redefinidas, argumentam os autores. No processo de exclusão social ou integração social deve se considerar as particularidades dos lugares. Uma das dimensões da segregação social urbana dá-se através do agrupamento de habitantes urbanos - os “iguais”- ocorrendo

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uma homogeneidade que se define de forma subjetiva de acordo com diferentes critérios, podendo ser religioso, étnico, de origem migratória, etc.

Em Campinas, a entrada do século XX deu-se sob as tensões entre a oligarquia rural e a burguesia urbana, segundo Bittencourt (2009). A cidade foi crescendo no sentido horizontal (áreas populares e operárias do outro lado das ferrovias) e no sentido vertical (pela reforma urbana que redimensionou o centro antigo).

Para atribuir impostos, cria pela primeira vez a ideia de centro e periferia, tipologia urbanística que não existia até o Império, transferindo conceito europeu de racionalização e gerenciamento do espaço para os operários. (...) No final do século XIX, consolidados o traçado das ruas centrais com as novas construções, a política higienista e as obras de saneamento, a cidade avança sobre as áreas periféricas... (p. 56; 70)

No bairro Felipão/São João as histórias dessas famílias de imigrantes europeus que vieram para Campinas, como trabalhadores na colheita do café, revelam a construção de trajetórias individuais e coletivas que constituíram identidades daqueles sujeitos. Do ponto de vista socioeconômico, os sujeitos desta pesquisa representam famílias que ascenderam, sobretudo pelo trabalho, lidando com inúmeras barreiras. Estudaram muito pouco, mas, em alguns casos, seus filhos tiveram a oportunidade de ter formação de elevado nível.

É o caso da depoente Rute, de família de trabalhadores rurais vindos de Amparo, também descendentes de italianos, moravam e trabalhavam na Fazenda Taubaté (hoje região do Parque Oziel). Sua professora doava roupas usadas para sua mãe, que ia para a roça. Dona Rute casou-se com um rapaz também descendente de italianos e que na infância estudou na mesma Escola Mista com os outros irmãos. Ela narrou com orgulho a ascensão educacional dos dois filhos, que cursaram universidade de prestígio formando-se professores, sendo bem sucedidos na profissão. O registro feito por mim em diário de campo dá expressão à sua história:

Telefonei para Dona Rute para saber se poderia me receber, com o propósito de lhe devolver os materiais escolares que me forneceu: o diploma do primário, o caderno de lição, o caderno de desenho, o caderno de hinos e poesias do 4º ano, de 1961. Ela tinha doze anos, filha de pais humildes, era a melhor aluna de uma classe multisseriada (3º e 4º ano) com a professora Elza. Disse-me que a professora a presenteava todo mês com uma lembrança (material escolar como caixa de lápis de cor com 12 lápis, mapa do Brasil para colorir, terço para reza etc.), como forma de

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incentivo aos demais alunos. Ela conta com grande orgulho que era a aluna “nº 1” e tinha um vínculo afetivo com a professora.

Ela animou-se com meu aparecimento dando voz à sua história e valor aos seus “tesouros” guardados: os cadernos, o diploma (no verso: nota 100). Foi a melhor, com idade além da compatível à série, naquele mundo meio rural, meio urbano de famílias simples que estudavam o mínimo que era oferecido pelo Governo (até a 3ª/4ª série). Foi a melhor naquele mundo simples, modesto, cuja trajetória interrompida bruscamente deu-lhe forças para incentivar a carreira educacional dos filhos.

Dona Rute ia à pé e descalça para a escola quando criança. Nunca tinha dinheiro para comprar o pão com mortadela vendido como lanche na venda ao lado da escola (algumas crianças compravam). Perguntei sobre os desenhos que fez no Caderno de Desenhos, nas aulas que eram ministradas aos sábados (...). Nos desenhos sobre materiais escolares... há uma bolsa de carregar os materiais. Perguntei se todos tinham – ela disse que sim. Mas a bolsa sua mãe fazia de tecido – era uma sacola e não a

bolsa industrializada retratada em seu desenho idealizado. (Diário de Campo, 05/11/2009)

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Na fotografia extraída de seu arquivo pessoal (Foto 10)33, a ex-aluna Rute segura o diploma de conclusão do curso primário, em pose na frente da Escola Mista. Disse-me que alguém tirou a foto na época e deu para ela de recordação, porque seus pais não tinham nenhum recurso. Observou para mim um detalhe: o sapato que vestia era emprestado de sua irmã. Nota-se sua condição social, expressiva nos elementos da foto, juntamente com as informações que traz de recordação: a foto não foi tirada pela família, pois sua família era destituída de recursos, o que inviabilizava a possibilidade de ter o equipamento fotográfico ou contratar o serviço do fotógrafo. Vemos a aluna na fachada da Escola Mista, retratada defronte a porta e janela, no lado externo ao ar livre com intensa luminosidade, cuja claridade do sol faz “desaparecer” o diploma na imagem, ao fundo do vestido claro, que também se funde com a claridade da parede... Por que estaria sozinha com o diploma? Não houve cerimônia?

FOTO 10 - Ex-aluna Rute com o diploma da Escola Mista - 1961

33 Le Goff (2003), ao discorrer sobre a memória como propriedade de conservar informações... e como elemento essencial da identidade, individual ou coletiva, destaca que, entre as manifestações significativas da memória coletiva no início do século XX foi a “fotografia, que revoluciona a memória: multiplica-a e democratiza-a, dá-lhe uma precisão e uma verdade visuais nunca atingidas...” Cita Pierre Bourdieu quando este evidenciou o significado do ‘álbum de família’: “‘Fotografar as suas crianças é fazer-se historiógrafo da sua infância e preparar-lhes, como um legado, a imagem do que foram [...]. O álbum de família exprime a verdade da recordação social’” (BOURDIEU apud LE GOFF, 2003, p. 460)

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Passaram a ocupar lugar de prestígio as famílias tradicionais, fundadoras e que despontaram como “as pessoas de posse” do bairro São João. Por outro lado, outras famílias representavam os moradores recém chegados, na segunda metade do século XX, na condição de pobres, embora muitos tenham também prosperado como operários, adquirindo bens, etc.

Na chegada desses novos moradores povoando o bairro, freqüentando a igreja e a escola, seu lugar, no entanto, era secundário e sua integração deu-se de modo lento e ambíguo, pois

Em alguns lugares, ainda sobrevivem pequenas comunidades locais, do tipo antigo, em que pequenos proprietários, arrendatários, artesãos e trabalhadores conseguem colocar a sua situação de vizinhos acima de sua identificação com as classes a que pertencem. Jamais se deve idealizar esse tipo de comunidade, pois nos momentos decisivos, que ocorrem de vez em quando, as realidades da sociedade de classes normalmente se manifestam. No entanto, durante longos períodos de estabilidade ainda é possível existir uma atmosfera de cordialidade e mutualidade. (WILLIAMS, 1989, p. 151)

No relato da ex-diretora Marisa e da ex-professora Sônia, que atuaram nos anos 1970, é possível olharmos para a expressiva participação dos pais na escola, enquanto o Estado não assumia plenamente o financiamento da educação pública. A comunidade sempre teve um papel ativo no funcionamento da instituição escolar, ou seja, sempre interagiu positivamente com a escola oferecendo apoio, suporte, auxiliando no seu cotidiano (geralmente suprindo falhas das obrigações do Estado), que traduz em seu valor social.

Dona Marisa: Mas nós fazíamos no nosso tempo festas e mais

festas... e feijoada. Fechávamos o pátio e fazíamos feijoada, as mães ajudavam, sabe, no nosso tempo nós tínhamos feito ‘as dez mais do bairro’. Então eram as dez senhoras que nos ajudavam mais... Fazíamos APM (Associação de Pais e Mestres), naquele tempo funcionava... (Professora Sônia: os pais vinham, colaboravam... ajudavam) A gente combinava as festas, essas reuniões, e a gente mandava fazer valer, né. Ganhamos muito dinheiro naquela época...

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O depoimento da ex-diretora revela que “as dez mais” eram as mães de alunos e que pertenciam às famílias mais tradicionais, de posses.

Nessa época a prefeitura dava merenda, logo quando nós mudamos aqui, e uma dessas ‘dez mais’, que é a A. L., ela falou assim: ‘Marisa, vamos que chegou a merenda’... ‘Então vamos’. A gente ia buscar essa merenda. Então ela tinha um carro muito bonito, um carro grande... ia eu e a A. buscar essa merenda lá na prefeitura, e aí trazíamos pra cá. Isso foi durante uns bons anos, viu... uns dois, três anos. Naquela época eu era assistente de direção, tinha ora que eu era diretora, tinha ora que eu era assistente, você vê como é que é?

Além da educação formal cultivada com zelo pelas famílias, o catolicismo sempre simbolizou um traço cultural importante mantido pela tradição, retratado de forma expressiva nas duas famílias fundadoras pela representação de um filho padre em cada uma, o que confere enorme prestígio às famílias, sendo também motivo de orgulho para a comunidade.

Como a igreja e outras instituições, a escola representa um símbolo cultural/social de pertencimento. Passar por ela credencia os sujeitos a participarem da cidade, da sociedade que os recebe vindos de outro lugar.

A Escola Mista do bairro Felipão e o Grupo Escolar do bairro São João remontam à experiência do passado, nas duas primeiras fases da escola. A modesta escola “isolada” rural deixou de existir, e a escola refeita nos moldes modernos ressurge ampliando os horizontes educacionais dos alunos que foram se multiplicando a cada década. No entanto, é preciso encontrar “o sentido do passado como uma continuidade coletiva de experiência...” (Hobsbawn, 1998, p.32). Nessa história local as raízes da imigração (italiana principalmente) podem explicar seu surgimento em área rural do município de Campinas, atendendo a aspectos básicos do ensino com a finalidade de instruir as crianças das famílias desses trabalhadores na primeira metade do século XX. Resistiu ao tempo se metamorfoseando (em várias fases) e superando a simbiose Igreja-Escola em contexto de industrialização/urbanização paulista, quando adquiriu prédio próprio com instalações adequadas para o funcionamento de uma escola de massas, em plena Ditadura Militar.

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Em 2004, o aluno de 8ª série, Rodrigo Augusto Cardoso da Silva, de família migrante nos anos 60-70, ganhou o concurso de redação do Correio Popular34 no qual concorreram escolas públicas e particulares de Campinas. Ao término do ensino fundamental na EE Prof. Luiz Gonzaga da Costa, ele cursou o ensino médio no COTUCA (Colégio Técnico na Unicamp) e em 2010 ingressou na Unicamp no curso de engenharia da computação, exemplo que ilustra também o movimento de ascensão social deste outro grupo familiar.