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Segunda fase de migração no bairro: nordestinos, paranaenses e outros

Capítulo 1 – História do bairro e da “Escola do São João”

1.3. Segunda fase de migração no bairro: nordestinos, paranaenses e outros

Já a segunda fase de migração na história do bairro São João é marcada pela mobilidade das famílias das classes populares, que se deslocaram de estados do Nordeste e de outras regiões do Brasil nas décadas de 1960-70, muitos vindos do Paraná e que se fixaram naquele ponto geográfico da cidade. A maioria era de trabalhadores rurais na terra de origem, mas aqui se estabeleceram como operários das fábricas, boa parte delas de grande porte ou multinacionais. Conforme diz Fausto Brito (2006) em O deslocamento da população brasileira para as metrópoles, o crescimento demográfico urbano, entre 1960 e 1980, deveu-se ao intenso fluxo migratório rural-urbano, quando milhões de brasileiros saíram do campo rumo às cidades, modificando o perfil da própria população urbana. Em 1970, mais da metade da população urbana já residia em cidades com mais de cem mil habitantes. “Pode-se afirmar que a acelerada urbanização no Brasil não só foi coexistente com o processo de concentração da população urbana, como, também, com a sua metropolização”. (p. 226)

Maria Elena Bernardes (2008), em Migração e Memória: Campinas, uma cidade acolhedora? problematiza que “nem sempre a cidade os acolheu com generosidade”, referindo-se aos migrantes sem escolaridade que se instalaram nas periferias mais distantes, e que serviram como “um verdadeiro exército de reserva de mão de obra para o crescimento industrial”. A pesquisadora explica que, com o desenvolvimento tecnológico, sua força de trabalho acabou sendo descartada pelo sistema econômico e, desse modo, pela

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Os recortes de jornal retratando a premiação do concurso estão guardados em arquivo na escola com a seguinte anotação da diretora para a coordenadora: “Edna, guardar a sete chaves”.

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impossibilidade de inserção regular no mercado de trabalho buscaram formas alternativas de sobrevivência, sendo muitas vezes portadores de estigma social.

Como exemplo, uma depoente descreve as limitações materiais sentidas pela família logo que chegaram à Campinas, pois viveram em casa modesta que tinha goteira quando chovia, o banheiro era fora de casa, tinham escassez de roupas e calçados, faltava dinheiro para participarem das quermesses na igreja e, desse modo, não ocupavam a mesma posição que os demais nas cerimônias católicas, cuja vida social a igreja era o centro.

Sentiam uma exclusão velada nos rituais e festas promovidos pela igreja, ficando muitas vezes do lado de fora sem terem como entrar, ou porque não havia bancos disponíveis (ocupados pelas famílias de maior prestígio) ou porque não tinham dinheiro para comprar os “comes e bebes” das barracas nas festas comunitárias. Nas procissões, não podendo atuar como “anjinhos”, contentavam-se em auxiliar as crianças participantes quando caía no chão alguma parte da fantasia litúrgica35. De acordo com Bosi (2003)

As práticas religiosas trazem para as pessoas simples os livros clássicos da fé e permitem que elas convivam com a grande arte: música, pintura, arquitetura, dança, poesia. Todas essas expressões simbólicas podem fazer parte do culto. (p. 195)

A família de Zenaide, nascida em 1964 em Araruna – PB, veio do Nordeste. Ela tinha três anos quando se mudou para Campinas com os pais, irmãos e o avô. O pai operário não especializado de uma multinacional (Singer) e a mãe costureira criaram os cinco filhos (os mais novos nascidos em Campinas) enfrentando algumas dificuldades no início.

O pai (já falecido) é natural do Rio Grande do Norte, era lavrador em Natal; em Campinas trabalhou em diversas metalúrgicas, como servente de pedreiro, como auxiliar hidráulico no aeroporto de Viracopos; a mãe é da Paraíba, onde trabalhava na roça, mas em

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A expressão contida neste parágrafo remete à obra de Norbert Elias (2006), Os Estabelecidos e os

Outsiders, quando o sociólogo apresenta este conceito como resultado de sua pesquisa etnográfica, numa

pequena cidade operária no interior da Inglaterra. Caracterizou o fenômeno da segregação, onde um grupo de moradores antigos cria estratégias de exclusão e discriminação aos novos moradores, classificando os padrões de comportamento tomados como parâmetro para diferenciar os moradores “superiores” e “inferiores”. Apesar de ambos os grupos constituírem-se de trabalhadores (ou seja, da mesma classe social), nacionalidade, religião, ascendência étnica e o mesmo nível de instrução, configurou-se um empoderamento daqueles que haviam se estabelecido no lugar há duas ou três gerações, em contraposição aos recém-chegados. Os padrões e normas tão bem assimilados pelo primeiro grupo foram sentidos como sendo “ameaçados” pelos comportamentos dos novos grupos, gerando conflitos na convivência social.

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Campinas sempre trabalhou como costureira, em fábricas ou em casa (costurou muito jeans para fábricas). Como sugere Bosi (2003):

O migrante perde a paisagem natal, a roça, as águas, as matas, a caça, a lenha, os animais, a casa, os vizinhos, as festas, a sua maneira de vestir, o entoado nativo de falar, de viver, de louvar a seu Deus... Suas múltiplas raízes se partem. (...) Seria mais justo pensar a cultura de um povo migrante em termos de desenraizamento. Não buscar o que se perdeu: as raízes já foram arrancadas, mas procurar o que pode renascer nessa terra de erosão. (p. 176-177)

A mãe de Zenaide começou a trabalhar fora para comprar material escolar para as crianças e, segundo conta, dividia a borracha escolar em pedaços e repartia para cada filho. Para vestir as filhas comprava um único tecido e costurava vestidos de modelos diferentes, para ela e a irmã, embora nos detalhes usasse retalhos para diferenciar bolsos, babados... Ela ficava constrangida, pois os tecidos eram idênticos, e elas iam vestidas assim para a missa. Disse: ‘Pelo menos a gente tinha roupa para vestir’.A depoente descreveu-me com emoção a vida solta pelos campos, as andanças da meninada pelos bairros vizinhos, o rio e córregos límpidos, as frutas que “roubavam” dos pés, a liberdade na natureza e a recordação da mãe brava pela demora dos filhos em voltarem para casa. Seu esposo, que é metalúrgico em São Paulo (capital) na função de modelador/gerente de produção, veio do Paraná com a família. Em 1971 ela já era aluna da escola. Lá estudou todo o ensino fundamental, assim como seu filho, que hoje é universitário e tem profissão como empreendedor (negócio próprio/microempresa).

Ângelo Pessoa (2004), organizador do livro Conhecer Campinas numa perspectiva histórica, avalia os contextos em que ocorreram os importantes fluxos migratórios na cidade a partir dos anos 1950. Destaca os anos 1960 como um momento decisivo no capitalismo brasileiro e que ocasionou o êxodo rural com os volumosos fluxos rural- urbanos no país. Em Campinas, desde os anos 1940, a emigração rural já se fazia significativa, mas nos anos 1960-70 o crescimento da população urbana toma proporções que irão culminar na formação da região metropolitana. A imigração de paulistas do restante do Estado, mineiros, paranaenses e nordestinos favoreceu seu desenvolvimento econômico, principalmente no setor secundário, no comércio e no setor de serviços. (Pessoa et. al., 2004)

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Na mesma perspectiva Von Simson (2008) esclarece:

Mas foi o final dos anos 60 e a década de 70 do século passado, o período de maior ampliação do traçado urbano campineiro, com a formação da grande periferia de nossa cidade. Com a segunda industrialização, que se caracterizou pela chegada das grandes empresas multinacionais à nossa região, Campinas se tornou nacionalmente conhecida.

Ela era vista como uma cidade com bom sistema educacional e serviços de saúde eficientes, além de oferecer fartas oportunidades de trabalho o que atraiu muitos migrantes internos que vieram tentar a vida, buscando no trabalho e pela educação de sua prole, uma possível ascensão sócio- econômica. (p. 8)

Nos anos 1960, quando a fábrica de ração animal Purina/Guabi foi instalada na divisa com o bairro São João, passou a compor um cenário urbano com expressivo simbolismo no qual triangulam igreja, escola e fábrica (a poucos metros uma da outra). Nesse processo, o urbano se estabeleceu quase definitivamente tentando encobrir as marcas do passado rural, com a imposição do modelo fabril.

Essas instituições essencialmente regidas pela disciplina, pelo rigor das normatizações, pelas crenças e repetição dos costumes que asseguram sua permanência, abarcam tradições seguidas por gerações as quais, em algum momento, imprimem nelas mudanças e reinventam suas práticas. Aglutinadores de cultura das famílias, tais instituições norteiam seus valores e asseguram seu lugar no mundo. A instalação da fábrica traz um novo tempo, um novo compasso, e um novo ritmo – o da produção em massa. Por isso,

É verdade... que nossos ritmos temporais foram subjugados pela sociedade industrial, que dobrou o tempo a seu ritmo, “racionalizando” as horas de vida. É o tempo da mercadoria na consciência humana, esmagando o tempo da amizade, o familiar, o religioso... (BOSI, 2003, p.53)

A fábrica que substituiu a fazenda... a escola moderna, laica e de massas que substituiu a escolinha da igreja... tal transformação transcorrera já nos anos 1970. A escola nova e equipada chegou nesse cenário em consonância com a vinda dos novos moradores, portadores de identidades diversas; o reflexo do surgimento da fábrica naquele lugar (e na

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sociedade) trouxe o ritmo da indústria para a vida social e escolar, reconfigurando a ordem, a disciplina e o saber que instrui e prepara para o trabalho.

De acordo com Gonçalves e Faria Filho (2005) em História das culturas e das práticas escolares:

os estudos sobre cultura escolar têm permitido desnaturalizar a escola e empreender estudos sobre o processo mesmo de emergência dessa como instituição de socialização nos tempos modernos. Articulada aos estudos do processo de escolarização, tal perspectiva coloca, desde logo, a necessidade de pensar a relação da escola com outras instituições responsáveis pela socialização da infância e da juventude, principalmente com a família, a Igreja e o mundo do trabalho. É aqui, penso, que se encontra um dos grandes limites à realização de nossas investigações: são

poucos os estudos historiográficos sobre a família, a Igreja e o mundo do trabalho que nos oferecem subsídios para pensarmos a relação desses com a cultura escolar. (p. 52) [grifo meu]

Pela pesquisa foi possível perceber que estas instituições (Gráfico 2) se convergiam numa rede de estrutura comunitária onde todos os membros nelas deveriam circular, tendo cada qual a sua função e sua contribuição na constituição identitária de cada sujeito, com a pretensão de estarem afinadas num todo orquestrado.

GRÁFICO 2 – Instituições sociais/culturais

Família

Escola Fábrica

Igreja

A reflexão sobre este gráfico vai ao encontro do estudo realizado por Cyntia A. Sarti (1996), que faz uma análise do movimento de famílias num bairro de periferia da cidade de São Paulo. A autora procura compreender com que categorias morais os pobres organizam, interpretam e dão sentido ao seu lugar no mundo. Dentre essas famílias, muitas migraram de outros estados, na maioria da região do nordeste brasileiro, reforçando a afirmação de

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que aqueles que aqui se instalaram e com muito trabalho se firmaram, constituem um referencial, e reafirmam um mundo próprio por eles valorizado, no qual se reconhecem e são reconhecidos.

Os pobres têm como referência o trabalho e a família, das quais constróem sua identidade social positiva. Este é o diferencial dos pobres trabalhadores e dos “outros” pobres, na visão dos pesquisados. O fato de sair da zona rural e ir para a cidade já representa para estes uma ascensão social, o que determina um diferencial entre os “outros”. As dificuldades de leitura e escrita, encontradas por eles, passaram a ser valorizadas em seus filhos, que na cidade encontrarão a oportunidade de estudar e assim se diferenciar entre os outros. (id. ibid.)

A comunidade do bairro São João se renovou com a chegada dos “novos moradores”, trabalhadores de origem distante, mas que se integraram, até certo ponto, compartilhando os valores já estabelecidos naquela localidade, como por exemplo, a prática da religiosidade católica. Analisando as falas da maioria dos depoentes, tanto da primeira fase de migração como na segunda é possível perceber a ênfase que dão em narrar o sucesso profissional dos filhos, ao mencionarem o nível superior de instrução, a colocação profissional em empresas e em alguns casos viagens dos filhos para o exterior (em experiência de estudo, trabalho ou lazer), apresentando outro padrão de vida em relação ao que os pais tiveram na infância.

Nessa interação, eu me tornei interlocutora num mecanismo no qual eles ouviam deles próprios, através da minha mediação, a mensagem de sucesso e ascensão social conquistados por eles, com muito esforço e reconhecimento. Buscaram mostrar o que tinham de melhor, desde a trajetória de migrantes, no passado, como trabalhadores, e a elevação de classe social – condição engendrada pelas novas gerações. Se no passado trabalharam enquanto crianças e estudaram muito pouco, hoje seus filhos e netos (em alguns casos, herdeiros de bens que a família acumulou), têm melhores oportunidades educacionais; nesse caso é possível questionar até que ponto a Educação foi (ou não) um fator preponderante nessa escalada pela ascensão social. De qualquer modo, segundo Bosi (2003)

Narrador e ouvinte irão participar de uma aventura comum e provarão, no final, um sentimento de gratidão pelo que ocorreu: o ouvinte, pelo que

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aprendeu; o narrador, pelo justo orgulho de ter um passado tão digno de rememorar quanto o das pessoas ditas importantes. (p. 61)

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Capítulo 2 – Vestígios da cultura escolar da Escola Mista do bairro Felipão nos