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Como é sabido, o Brasil vem de um longo período de escravidão, que infelizmente, ainda possui resquícios na atualidade e que será parte do estudo do Caso Fazenda Brasil Verde. Neste tópico, será feita uma breve passagem nos principais fatos referentes a escravidão no país, desde os primórdios do descobrimento até a contemporaneidade.

Nesse sentido, conforme Vanise M. Ribeiro e Carla M. J. Anastasia (2015, p.217):

Na base da sociedade colonial, nos três primeiros séculos de colonização, estavam as pessoas escravizadas. Eram essas pessoas que davam conta de todo o trabalho pesado, fosse na lavoura ou na produção do açúcar, fosse nas casas de fazenda ou nas vilas e, posteriormente, cidades. Mesmo depois de extinta a escravidão, na base da pirâmide social brasileira, eram os ex-escravizados e seus descendentes que compunham a maioria da população pobre brasileira.

A primeira mão de obra escrava utilizada pelos colonizadores foi a dos índios que já habitavam as terras brasileiras. Porém, com o passar do tempo, as razões da opção pelo trabalho escravo africano foram muitas.

A escravização do índio chocou-se com uma série de inconvenientes[...]. Não eram vadios ou preguiçosos. Apenas faziam o necessário para garantir sua subsistência, o que não era difícil em uma época de peixes abundantes, frutas e animais [...]. As noções de trabalho contínuo ou do que hoje chamaríamos de produtividade eram totalmente estranhas a eles. (FAUSTO, 2000, p. 49).

Os indígenas eram capturados por traficantes e vendidos aos senhores de engenho. Para tentar fugir da escravização, os indígenas começaram a ir para o interior ou passaram a viver em aldeias administradas por missionários religiosos (RIBEIRO; ANASTASIA, 2015, p. 218).

A dificuldade em escravizar os índios se tornou muito maior pelo fato de, ao contrário dos africanos, os índios estarem em casa, conhecendo o lugar em que se encontravam, facilitando então as fugas, por exemplo. Outro fator que colaborou para a sua resistência à escravidão, se deu pelos padres jesuítas os catequizarem, ensinando-lhes a forma “europeia” de trabalho e os tornando um pouco civilizados, ainda que nem os padres acreditassem que os índios fossem humanos, mas sim cães, eles os defenderam perante os colonos que queriam a sua mão de obra, surgindo então inúmeros atritos entre colonos e padres. E ainda, após o contato com os brancos, uma grande catástrofe demográfica que ocorreu entre os anos de 1562 e 1563, fez com que milhares de índios morressem em consequência de contrair doenças como sarampo, varíola, gripe, as quais não possuíam defesa biológica (FAUSTO, 2000).

A partir da década de 1570 incentivou-se a importação de africanos, e a Coroa começou a tomar medidas através de várias leis “para tentar impedir o morticínio e a escravização desenfreada dos índios”. No século XV, os portugueses haviam começado o tráfico de africanos. Nas últimas décadas do século XVI, não só o comércio negreiro estava razoavelmente montado como vinha demonstrando sua lucratividade. Os africanos tinham uma capacidade produtiva muito superior à dos índios (FAUSTO, 2000).

O historiador americano Stuart Schwatz calcula que, durante a primeira metade do século XVII, nos anos de apogeu da economia do açúcar, o custo de aquisição de um escravo negro era amortizado entre treze dezesseis meses de trabalho e, mesmo depois de uma forte alta nos preços de compra de cativos após 1700, um escravo se pagava em trinta meses. (FAUSTO, 2000, p. 51).

Estima-se que entre os anos de 1550 e 1855 entraram nos portos brasileiros cerca de 4 milhões de escravos, na maioria eram jovens e homens. Os negros que traziam para o Brasil eram de muitas tribos ou reinos, “por exemplo: os iorubas, jejes, tapas, hauçás, entre os sudaneses; e os angolas, bengalas, monjolos, moçambiques, entre os bantos. ” Salvador e Rio de Janeiro foram os principais centros importadores de escravos (FAUSTO, 2000).

Porém, não é pelo fato de a escravização dos índios ter sido menos acessível que a dos negros tenha sido fácil. Houveram inúmeras fugas individuais e em massa, agressões contra senhores entre outras formas de resistência. Os negros que escapavam, passaram a formar os conhecidos Quilombos, que era o lugar onde se instalava, e recompunham sua organização social semelhante à sua sociedade de origem. Apesar de todas as resistências, não foram suficientes para desestabilizar o trabalho compulsório. Os escravos viram-se obrigados a “adaptar- se”, por bem ou por mal, à escravidão. Ressaltando ainda, que diferentemente dos índios, nem a Igreja se opôs ao trabalho escravo negro (FAUSTO, 2000).

Quando um escravizado era capturado após uma tentativa de fuga, recebia açoites no tronco (de 50 a 100 chibatadas), e era condenado a usar uma corrente de ferro no pescoço (gargalheira) para impedir novas fugas. Em casos de assassinato ou outro tipo de agressão aos feitores, senhores e seus parentes, o escravizado responsável recebia a pena de morte por enforcamento. (RIBEIRO; ANASTASIA, 2015, p. 222).

O negro era considerado bicho, uma “coisa” sem inteligência, somente pelo tamanho de seu crânio ou estatura corporal. Não possuíam direito algum, não eram dignos de nada, nem alimentação decente, quem dirá moradia.

A escravidão sempre teve relação com a violência, uma vez que se os escravos não seguiam as regras dos senhores, eram castigados. Durante o período

colonial, castigar fisicamente o escravizado era visto como um direito dos senhores, possuindo apoio estatal e religioso para o feito. Somente se recomendava que os castigos não causassem a perda do escravizado, uma vez que ele era visto como patrimônio (RIBEIRO; ANASTASIA, 2015).

Em meados de 1773, foi criada uma carta-lei, a qual acabou com a distinção entre cristãos novos e antigos. Antes disso, havia o princípio de pureza de sangue, que distinguia e excluía determinadas categorias sociais. “Impuros eram os cristãos- novos, os negros, mesmo quando livres, os índios em certa medida e as várias espécies de mestiços. Eles não podiam ocupar cargos de governo, receber títulos de nobreza, participar de irmandades de prestígio etc.” (FAUSTO, 2000, p. 65). Porém, é óbvio, que por mais que tenha sido acabada com a distinção social, o preconceito ainda prevaleceria por muito tempo.

A condição de livre ou de escravo estava muito ligada à etnia e à cor, pois escravos eram, em primeiro lugar negros, depois, índios e mestiços. Toda uma nomenclatura se aplicava aos mestiços, distinguindo-se os mulatos, os mamelucos, curibocas ou caboclos, nascidos da união entre branco e índio; os cafuzos, resultantes da união entre negro e índio. (FAUSTO, p.65, 2000).

Havia distinção entre a escravidão indígena e negra. Desde o início da colonização até o fim da escravidão, houveram índios cativos e os chamados administrados, que eram os índios capturados e postos sob tutela dos colonizadores. Como dito antes, os índios possuíam um tipo de proteção da Igreja, desse modo, a Coroa chegou até a criar uma política menos discriminatória. Um alvará, criado em 1755 que estimulava casamentos mistos entre índios e brancos. Diferentemente de casamentos entre índios e negros, como exemplo, o ocorrido com um índio que era capitão-mor e o vice-rei do Brasil mandou dar baixa em seu posto por ter casado com uma negra, porque “se mostrara de tão baixos sentimentos que casou com uma preta, manchando seu sangue com esta aliança tornando-se assim indigno de exercer o referido posto” (FAUSTO, 2000, p. 68).

As relações escravistas envolviam também terceiros, não sendo apenas entre senhor e escravo. Havia cativos alugados para prestação de serviços nos centros urbanos, erma os “escravos de ganho”. “Os senhores permitiam que os escravos fizessem seu ganho”, prestando serviços ou vendendo mercadorias e cobravam

deles, em troca, uma quantia fixa paga por dia ou por semana”. Desse modo, vê-se que entre os escravos existia distinções, algumas se referiam ao trabalho que exerciam, à nacionalidade, ao tempo de permanência no país ou à cor da pele (FAUSTO, 2000).

A escravidão foi uma instituição nacional. Penetrou toda a sociedade, condicionando se modo de agir e de pensar. O desejo de ser dono de escravos, o esforço para obtê-los ia da classe dominante ao modesto artesão branco das cidades. Houve senhores de engenho e proprietários de minas com centenas de escravos, pequenos lavradores com dois ou três, lares domésticos, nas cidades, com apenas um escravo. O preconceito conta o negro ultrapassou o fim da escravidão e chegou modificado a nossos dias. Até pelo menos a introdução em massa de trabalhadores europeus no centro-sul do Brasil, o trabalho manual foi socialmente desprezado como “coisa de negro”. (FAUSTO, 2000, p. 69).

No ano de 1826, implantou no Brasil um tratado que, após três anos da sua ratificação, o tráfico de escravos para o Brasil, de qualquer proveniência, seria declarado ilegal. E assim, em 1831 uma lei tentou pôr em andamento, prevendo punições severas a quem praticasse o tráfico e que todos os cativos que entrassem no Brasil após a data da ratificação, seriam declarados livres. A lei foi aprovada pois havia diminuído o fluxo de escravos, porém, um tempo depois, o fluxo aumentos e com ele o tráfico, desse modo, a lei praticamente não foi aplicada. Os júris absolviam quem praticava o delito, e a lei passou a ser vista como uma lei “para inglês ver”, indicando uma atitude que é mera aparência e não para valer (FAUSTO, 2000).

Em setembro de 1848, partiu do Ministério da Justiça um projeto de lei, retomando e reforçando as medidas da lei de 1831. O projeto tornou-se lei em setembro de 1850 e dessa vez funcionou, diminuindo de 54 mil cativos que entravam no país em 1849, para 3.300 no ano de 1851, praticamente desaparecendo o tráfico negreiro. Iniciava então, o processo do fim da escravidão (FAUSTO, 2000).

A escravatura se encaminhava por etapas até o final, em 1888. Uma das principais leis antes da abolição da escravatura foi a Lei do Ventre Livre, em 1871, que declarava livres os filhos de mulher escrava nascidos após a lei, os quais ficariam em poder dos senhores de suas mães até a idade de oito anos. A partir

dessa idade, os senhores optavam entre receber do Estado uma indenização ou utilizar os serviços do menor até completar 21 anos (FAUSTO, 2000).

Essa lei produziu poucos efeitos, pois os senhores não entregavam os meninos maiores de 21 anos, porém, a partir do ano de 1880 o movimento abolicionista ganhou força através de associações, jornais e com o avanço da propaganda, ajudando na eficácia dessa lei. Ainda em 1885, foi aprovada a Lei dos Sexagenários, que “concedia liberdade aos cativos maiores de sessenta anos e estabelecia normas para a libertação gradual de todos os escravos, mediante indenização. A lei foi pensada como forma de se deter o abolicionismo radical e não alcançou seu objetivo ” (FAUSTO, 2000, p. 219).

E então, após tantos altos e baixos, sofrimento, desigualdade, total descaso com os escravos, enfim, a “abolição sem restrições, [...], foi aprovada por grande maioria parlamentar, sancionada em 13 de maio de 1888 pela Princesa Isabel, que se encontrava na regência do trono” (FAUSTO, 2000, p. 220).

Apesar da abolição legal, a pobreza e a concentração da propriedade das terras foram causas estruturais que provocaram a continuidade do trabalho escravo no Brasil. Por não terem propriedade nem condições de adquirir uma, em meio a falta de opção de emprego, muitos viam-se obrigados ao trabalho forçado, sem que pudessem ter uma vida digna. Durante as décadas de 1960 e 1970, o trabalho escravo no Brasil aumentou devido à expansão de técnicas mais modernas de trabalho rural, que se fazia necessário um maior número de trabalhadores (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2016, p. 27).

No século XX, “intensificou-se a industrialização na região amazônica, e o fenômeno de posse ilegal e adjudicação descontrolada de terras públicas foi favorecido, propiciando com isso a consolidação de práticas de trabalho escravo em fazendas de empresas privadas ou empresas familiares possuidoras de amplas extensões de terra. ” Nesse meio, o Estado perdeu o controle sobre a fiscalização desse tipo de trabalho no norte do Brasil e ainda, algumas autoridades regionais aliaram-se aos fazendeiros. “No ano de 1995, o Estado começou a reconhecer oficialmente a existência de trabalho escravo no Brasil. Segundo a OIT, em 2010

existiam no mundo 12.3 milhões de pessoas submetidas a trabalho forçado, 25.000 das quais estariam no Brasil” (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2016, p. 27).

Sendo assim, é possível verificar que em pleno século XXI ainda se depara com a escravidão, apesar de ocorrer toda a modernização que ocorreu entre o início da escravidão no Brasil e os dias atuais, apesar do trabalho escravo contemporâneo ser diferente do antigo, descrito anteriormente, fere da mesma forma os direitos humanos daqueles que são submetidos a ele.

Segundo o Código Penal Brasileiro, em seu artigo 149, trabalho em condição análoga ao de escravo se caracteriza por “reduzir alguém, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto” (BRASIL, Código Penal Brasileiro, 1940).

A característica mais marcante da escravização contemporânea no Brasil é que as pessoas exploradas são pobres e em sua maioria negras. “O Brasil escraviza o seu próprio povo, por meio da exclusão social estruturalmente integrada à cultura nacional”. A partir do momento em que o tráfico internacional de pessoas foi proibido, o tráfico interno se intensificou, sendo uma forma mais lucrativa para os proprietários de fazenda, que conseguem mão-de-obra submetendo seus “peões” a condições miseráveis (JESUS, 2005, p. 65).

Segundo a Comissão Pastoral da Terra, organização pioneira em apontar para a existência do trabalho escravo no Brasil, em 1984 foi confirmada a primeira grande denúncia de trabalho escravo, no sul do Pará (JESUS, 2005).

Relendo a sua própria experiência de vida no combate ao trabalho escravo, enquanto participante da Comissão Pastoral da Terra, Figueira (2004) reforça a existência do caráter migratório, sócio-econômico e de gênero do fluxo de trabalhadores escravizados (segundo o autor, 96,3% dos escravizados são homens), ou seja, pessoas são aliciadas pelos “gatos”, intermediários nesse tráfico de seres humanos, para se deslocarem de suas precárias condições de vida por uma falsa impressão de melhorias nas condições econômicas. (JESUS, 2005, p. 66 apud FIGUEIRA, 2004).

Os casos de trabalho escravo no Brasil, em sua maioria, se baseiam em servidão por dívida, “na qual os fazendeiros atribuem aos trabalhadores gastos indevidos relacionados a transporte, alimentação e uso dos equipamentos de trabalho, para que os mesmos fiquem presos à atividade para a qual foram contratados, impossibilitados de cobrir a suposta dívida”, submetendo-os a condições completamente indignas, tendo até que caçar a própria comida para que possam se alimentar (JESUS, 2005).

Os escravocratas são latifundiários, atuando na condução da sociedade brasileira como políticos e empresários, que empregam intermediários, denominados “gatos”, para aliciar trabalhadores pouco instruídos e sem proteção de qualquer rede social, obtendo grandes lucros com a exploração do trabalho alheio. Os gatos têm como uma de suas principais atribuições manter a ordem no local de trabalho, especialmente por meio de ameaças, agressões e, em alguns casos, assassinato, portanto, sempre portam e exibem aos 73 trabalhadores suas armas, às vezes de grosso calibre, com as quais podem matá-los a qualquer momento, ao seu alvedrio. (JESUS, 2005, p. 72-73).

A partir de 1995 o Brasil passou a reconhecer a existência do trabalho escravo no Brasil, então promulgou o Decreto número 1.538, através do qual criou o Grupo Interministerial para Erradicar o Trabalho Forçado (GERTRAF), composto por diversos ministérios e coordenado pelo Ministério do Trabalho, com a participação de várias entidades, instituições e da própria Organização Internacional do Trabalho (OIT). Além disso, foi criado o “Grupo Especial de Fiscalização Móvel”, com atribuições para atuar em zonas rurais e investigar denúncias de trabalho escravo expropriadas (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2016, p. 30).

Em 2002 promulgou a Lei número 10608/2002, relativa ao seguro desemprego de trabalhadores resgatados sob o regime de trabalho forçado ou condição análoga à de escravo. Nos anos seguintes, o Estado promulgou leis que garantissem a proteção de pessoas submetidas ao trabalho escravo, maior fiscalização no território nacional, tudo em prol do combate a escravidão no país. Em 5 de junho de 2014, aprovou a Emenda Constitucional número 81, que em seu artigo 243 determinou que as propriedades urbanas e rurais de qualquer região do país

onde forem localizadas, entre outras, exploração de trabalho escravo, seriam expropriadas (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2016, p. 30).

Após essa breve explanação sobre a escravidão contemporânea no Brasil, segue-se para o próximo tópico, onde será feita a análise de um caso específico de escravidão contemporânea ocorrida no estado do Pará, o qual fora julgado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.

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