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ESCREVER DE FORA, NARRAR DEPOIS — Las geneaLogías, DE MARGO GLANTZ

1. Escrever de fora

Gostaria de refletir aqui sobre algumas narrativas contemporâneas em que se revisita uma experiência marcante do século XX e persistente ainda hoje: os diferentes tipos de movimentos migratórios, sejam eles de emigrados, re- fugiados, exilados etc. Essas narrativas trabalham ora com referências às emi- grações do início do século em direção à América, ora aos êxodos ao longo da Segunda Guerra Mundial ou ainda ao exílio durante as ditaduras dos anos de 1970 na América Latina, assinalando os modos como as marcas desses deslo- camentos ainda hoje se fazem sentir. Suas viagens são sobretudo releituras de outras viagens. Seus narradores e personagens são herdeiros dessas experiên- cias, vividas por outros, em outro tempo. Eles podem se deslocar ou não, mas colocam em circulação uma discussão sobre o que significa e o que significou escrever de fora da nação. Para citar alguns exemplos, poderiam ser incluídas nestas reflexões Museo de la revolución (2006), de Martín Kohan, Yo nunca te prometí la eternidad (2005), de Tununa Mercado, Si hubiéramos vivido aça (1998), de Roberto

Raschella, e Las genealogias (1996), de Margo Glantz, livro do qual tratarei mais

detalhadamente adiante.

A literatura que viaja tem uma longa tradição na América Latina e um pa- pel fundamental na construção das diferentes culturas nacionais. Desde o século XIX, como indica Florencia Garramuño, “a passagem pelo estrangeiro define um preâmbulo freqüentemente indispensável para a constituição das linguagens artísticas e literárias”24. De lá para cá, desdobram-se vários tipos de viagens re-

alizadas por intelectuais, artistas e escritores, redefinindo a relação com a nação bem como a relação com a escrita.

24 GARRAMUÑO, Florencia. Modernidades primitivas: tango, samba y nación. Buenos

Aires: Fondo de Cultura Económica, 2007. p.149. Todas as traduções cujas referências estão no original são de minha autoria.

Um caso emblemático é o de Cortazar, que, vivendo em Paris desde 1951, explorou em O jogo da amarelinha os dilemas do lugar ambivalente do escri-

tor latino-americano, começando pela epígrafe irônica que abre um livro cons- truído a distância para dar conta de uma identidade que se quer tão cosmopolita quanto local. A citação está sugestivamente em francês: “Rien ne vous tues un homme comme d´être obligé de représenter un pays” (“Nada mata mais um homem do que ser

obrigado a representar um país”). Já no Diario de Andrés Fava, datado de 1950 e

publicado postumamente, ele explicava a necessidade da viagem: “Meu ambiente de vida me causa repentinamente horror porque é minha petrificação irreparável, a constância de que sou isso e não A ou B. Viajar é inventar o futuro espacial”. Em

seguida, citava um tango: “E sempre igual, telefone ocupado... / — Garçom, me traga um pingado / e diga quanto é!”. E depois acrescentava: “A viagem não é a solução. Não cair na imbecilidade de acreditar nisso. Vale — e tanto — como re- problematização. Quem der uma voltinha, e manter os olhos abertos, conhecerá melhor a forma de sua jaula, os ângulos e os passos que preparam as evasões”25.

Enquanto desdobramento da viagem romântica, a viagem de um escritor como Cortázar retoma com certo distanciamento irônico o desígnio de forma- ção de um olhar sobre o próprio através do contato com o estrangeiro. Tal modo de viajar terá ainda outros desdobramentos ao longo do século XX, como a viagem do exílio, em que o distanciamento da pátria já não aparece como a possi- bilidade construtiva de elaboração da identidade e de criação de um espaço para a escrita, mas como cisão traumática que colocará em questão a possibilidade de simbolização do horror. A nação será então sinônimo de repressão e a viagem tenderá ao silêncio, que alguns romperão como uma forma de sobrevivência. Pode-se pensar ainda — um outro desdobramento — na viagem da insubmissão, que ressignifica o romantismo através de uma relação impertinente com a nação, se pensarmos nas estratégias de deslocamento da literatura de um Nestor Perlon- gher ou de um Copi em direção a um espaço transnacional, em que a literatura poderia circular por um público mais amplo liberada da tarefa de ter que dar conta das questões que afligem a nação26 — ainda que esses escritores, via uma

linguagem despudorada e blasfema, escrevam ainda contra a nação, num forte

espelhamento com ela.

25 CORTÁZAR, Julio. Diario de Andrés Fava. Buenos Aires: Alfaguara, 1995. p. 94-95.

26 Em relação a esses viajantes, ver o artigo de Pablo Gasparini, “Patria y filiatrías (exilio y

transnacionalidad en Gombrowicz, Copi y Perlongher)”, Hispamérica. Revista de Literatura,

Em tempos de reconfiguração dos papéis da nação, é preciso pensar como se atualizam essas questões que atravessam desde a modernidade as relações entre literatura e viagem. É provável que haja uma redefinição do sentido da viagem num mapa mundial até certo ponto redefinido pela globalização. Sem aderir ao triunfa- lismo da diluição das fronteiras, é preciso admitir que o mundo contemporâneo tem visto surgir outras formas de relações culturais, sociais e políticas para além dos laços configurados pela nação. A literatura, por sua vez, tem viajado muito; há inúmeros programas e projetos que incluem a viagem no processo da escrita e muitas narrativas têm surgido dessa experiência. Penso que diante dessa profusão caberiam algumas indagações: quais os efeitos hoje de se escrever de fora da nação? Viaja-se para ter uma outra visão de dentro? Que tipo de deslocamento em relação à nação se produz com a viagem? Ainda faz sentido falar que se é um escritor “de tal lugar”? A relação com a nação ainda é determinante no que se escreve?