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DE POESIA CONTEMPORâNEA

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Viviana Bosi DTLLC/FFLCH/USP

Quando visitei o museu do Inhotim, perto de Belo Horizonte, dedica- do às artes visuais contemporâneas, já antecipava, intuitivamente, o que esperar. Imaginava encontrar enigmáticas instalações nas quais nem sempre as partes e o todo coalescem; supunha que os artistas ali representados descenderiam dos questionamentos radicais sobre moldura e pedestal que começaram nas van- guardas históricas — ou, dizendo em outras palavras, uma alteração da própria concepção de obra em sua intersecção com o mundo em comum. Enfim, sabia que a maioria teria uma atitude pós-duchampiana de crise em relação ao objeto artístico e tentaria criar algo que incluísse uma pergunta sobre o que é arte, como se esta não pudesse mais prescindir da crítica de si mesma e da necessidade de autocertificação — aquilo que Habermas caracteriza como moderno: a funda- mentação do artista a partir de seu próprio presente, rompendo com formas convencionalizadas e considerando o seu tempo como fundador de parâmetros. Isto é, basicamente, os visitantes desse museu se deparam, na arte dita contem- porânea (aquela que teria se iniciado à volta dos anos 60 e 70 do século passado), com um aguçamento de posições inauguradas pelas vanguardas.

John Ashbery, poeta contemporâneo norte-americano, que é também crítico de arte, conclui algo similar a respeito da pintura. Para ele, embora os manifestos surrealistas tenham proposto uma arte que surgiria diretamente das pulsões do inconsciente, emancipada portanto de regras constituídas por con- venções ou de qualquer mediação construtiva, a verdade é que os pintores surre- alistas (tais como De Chirico, Dali, Magritte) dominavam uma técnica de pintura que podemos considerar até clássica. Mesmo que os conteúdos sejam oníricos, absurdos, a forma é trabalhada de modo totalmente lúcido, apesar de possíveis protestos em contrário. Para Ashbery, porém, o que as vanguardas proporciona- ram foi essa possibilidade de ruptura com as formas consagradas, de modo que

14 Este texto deriva de minha pesquisa de doutorado, publicada em 1999, conforme cita- ção nas referências. Algumas partes são novas, outras são extraídas ou adaptadas do livro.

os action painters, como Pollock, e os expressionistas abstratos, como Motherwell,

Kline, depois Rothko e outros, puderam pintar de um modo cada vez mais livre, como se a tela projetasse sensações espirituais ou físicas coletivas.

A escrita automática (neste caso, a “pintura automática”) de fato talvez só tenha se realizado a partir dali. Em relação à poesia, porém, Ashbery conclui duas coisas diferentes que se complementam: de um lado, os modernistas histó- ricos, por mais revolucionários que se propusessem ser, jamais atentaram contra as regras sagradas da sintaxe. Mesmo quando faltam junções e cotovelos nos poemas, estes se constituem como uma câmara de ecos reverberantes que su- gerem um ou mais significados figurados. Por outro lado, segundo acredita, não há motivo para prescindir da composição e do que ele chama de editorialização, pois, afinal, por que haveria mais liberdade nas associações do inconsciente, ao deixar de lado a exploração dos caminhos da razão e da escolha quando se escre- ve? Seria como amputar um dos aspectos do artista, em nome do temor de uma racionalidade supostamente já domesticada. Cito:

[...] escrita automática, mas o que é tão livre nela? Liberdade real seria usar esse método onde ele fosse útil e corrigi-lo com a mente consciente onde indicado. E, de fato, a melhor escrita dos surrealistas é produto do consciente e do inconsciente trabalhando de mãos dadas, como os poetas sempre fizeram em todas as eras. [...] O surrealismo, na estreita interpre- tação de seus teólogos, é [...] insatisfatório, mas do ponto de vista amplo que todos nós intuímos, é verdadeiramente uma força de renovação. Uma vez entrevistei o poeta Henri Michaux, que disse que, embora ele não se considerasse um surrealista, o surrealismo havia sido a sua principal influ- ência como escritor porque lhe deu a permissão (la grande permission foi sua

expressão) para escrever como desejasse. Neste sentido, todos nós somos devedores do surrealismo; a arte significativa de nosso tempo não poderia ter sido produzida sem ele (entrevista a R. Labrie, 1984).

Assim, embora Ashbery reconheça, como também muitos outros po- etas, sua dívida em relação aos seus antecessores das vanguardas, alguma coisa parece haver se deslocado. Esta poderia ser uma descrença em relação a qualquer dogma, até mesmo àqueles propostos pelos manifestos em suas diversas verten- tes — sejam os mais construtivistas, sejam os mais dadá. A tradição, como queria Eliot, precisa ser conquistada, e no caso da poesia contemporânea, muitas linhas diferentes convergem para o mesmo artista, que articula o seu próprio universo

de referências. Uns dirão que isso resulta num ecletismo inconsequente — pode acontecer, claro —, mas, para o artista mais maduro, que sabe se apropriar, com- põe um tempero particular e saboroso.

Por isso, alinho-me com Hal Foster (1996) quando enxerga na arte contem- porânea um tipo de ação deferida típica de períodos pós-traumáticos, acreditando num retorno de concepções das vanguardas com variações e consciência nova — em contexto bastante diferente e com outros problemas. De certa forma, os questiona- mentos advindos do modernismo são, segundo ele, sempre atualizados.

Ou ainda, sigo o que desenvolveu uma vez Andreas Huyssen (1988) acerca do modernismo americano em contraste com o europeu: sendo os E.U.A. um país novo, a insurgência contra as instituições culturais e contra o objeto museificado ou mercadológico só ocorreu de fato nos anos de 1960 com a contracultura — pois apenas naquele momento a indústria cultural, a massificação, a produção em série, carreiam para essas neovanguardas motivos de revolta radicalizada.

Por isso, quando leio Ashbery e outros poetas que estão na raiz do con- temporâneo, não posso concordar que sejam uma imitação esmaecida do mo- derno (“estilo dominante mas morto”?, perguntava Habermas): parecem-me so- bretudo uma continuidade apurada — uma reflexão sutil sobre as alterações da vida presente. Pois se a poesia transmite a flama do instante, tal como o fogo que procura sua forma (como disse uma vez Blake a respeito do seu impetuoso tigre, metáfora do artista demiurgo romântico), é impossível que tenha perdido a sua capacidade para a concentração irradiante, ou então deixou de existir:

Hoje tem aquela especial e lapidar

Hojidade (Todayness) que a luz solar reproduz

Fielmente ao lançar sombras de ramos em jubilosas Calçadas. Nenhum dia anterior poderia ter sido como este. Antes eu achava que eles eram todos iguais,

Que o presente parecia sempre o mesmo para todo mundo Mas esta confusão esgota-se uma vez que cada um Está sempre a galgar a crista de seu presente.

(John Ashbery, “Auto-retrato num espelho convexo”, 1975, vv. 379-386)

Parece-me que a oposição entre um moderno experimental e um con- temporâneo esvaziado de potencial crítico e criativo considera apenas o que a mídia apresenta de forma espetacular e projeta, sobre a produção atual, o pessi-

mismo por vezes enrijecido de um Peter Bürger, por exemplo, que em sua Teoria da vanguarda (2008) leva em conta sobretudo como linha dominante do moderno

o impulso destrutivo contra o que ele batizou de “instituição arte” por algumas vanguardas, sem considerar tantos outros artistas que, tendo incluído em sua obra a antiarte, o prosaísmo, a montagem, abrem uma ampla fronteira, e continu- am o repto de Rimbaud de encontrar uma língua e transmiti-la, mesmo quando informe, pois o poeta, ladrão de fogo, se assemelha aos “horríveis trabalhadores” que caminham até o limite, atingindo a quantidade de desconhecido que uma época pode compreender sobre si mesma. Outros momentos de seu livro são, pelo contrário, muito ilustrativos e pertinentes, quando Bürger reflete sobre os procedimentos da vanguarda, porém partindo da premissa que, quando retoma- dos ou acentuados pelas chamadas neovanguardas dos anos de 1960, haveria ora estetização fútil, ora brutalismo inconsequente (uma entrega arbitrária ao acaso), que no fundo conteria algo de cínico, ao repetirem procedimentos antes trans- gressivos sem o mesmo élan, cientes de antemão da impossibilidade de destruir o reino autônomo da arte, e imaginando, por vezes ingenuamente, que seria possí- vel pular para fora do círculo da obra e mudar a vida. Assim, ele acaba por propor um paradigma para a arte moderna que termina em impasse.

Na pintura, alguns críticos tendem a se deter sobre a execração do pop que imita a seriação industrial como o padrão do contemporâneo (Andy Warhol e seguidores), ou sobre esses artistas francamente comerciais (por exemplo, Jeff Koons ou Damien Hirst) — crítica importante, sem dúvida —, mas sem levar em conta tantas experiências interessantes de artistas como Kitaj, Freud, Kiefer, Guston, da contundente portuguesa Paula Rego, ou ainda do nosso profundo Iberê Camargo da última fase, todos renovadores de um figurativismo peculiar que revela (e constrói) aspectos do real antes nunca percebidos. Na poesia, a força extraordinária de um Herberto Helder ou de um Enzensberger, o qual, a despeito de seu mau humor com as neovanguardas, não deixa de também ex- perimentar vozes polifônicas, passagens do minúsculo da dor de barriga do vi- zinho que clama por Omeprazol para o painel histórico da crise política atual, aglutinando jornal, experiência biográfica, leituras, sonhos, epifanias, num único poema, sem ater-se a dogmatismos de qualquer ordem.

Saber que a história não pode mais ser lida como um monolito teleoló- gico é certamente uma conquista do contemporâneo:

Tantas coisas foram reprimidas e ocultadas porque não encaixavam no en- redo ou o tom não se coadunava com o todo. Tantas foram descartadas, e agora elas se elevam à beira da continuidade, rodeando-a como penhascos escuros sobre um regato do vale. [...] Os capítulos rejeitados assumiram o comando. Por um longo tempo foi como se apenas o erudito mais pa- ciente ou o próprio anjo registrador fosse se interessar por elas. Agora parece que aquele anjo começa a dominar toda a estória: ele que deveria somente transcrever tudo se aliou às partes deformadas, desajustadas, que nunca foram destinadas a ser incluídas mas, na melhor das hipóteses, ficar à margem, de forma a ressaltar como tudo o mais se coadunava, e a mon- tanha de informações resultante nos ameaça; quase conseguimos ouvir o começo do colapso lírico quando tudo será perdido e pulverizado, trans- formado de novo em átomos prontos a recomeçarem em novas combi- nações e formas, novas tendências mais ousadas, tão estranhas ao que nós havíamos colocado cuidadosamente ou excluído, como uma nova tabela de elementos ou outro planeta — inimagináveis, numa palavra (John Ash- bery, trecho de “O sistema”, Three poems, 1972).

Assim, talvez, o acicate de estudar aspectos da poética contemporânea seja resgatar o momento em que alguns poetas agem como o “brilhante pássaro esvoaçando à beira do abismo” (adaptando essa figura de Baudelaire ao nosso con- texto) e se propõem a esticar ou romper o contorno do que antes se atribuía à obra artística. Para a arte hoje se pode admitir, como fez Jameson, que “o espectador é convidado a elevar-se a um nível em que a percepção vívida da diferença radical e” [elevar-se a] “uma nova maneira de entender o que se costuma chamar de relações: algo para que a palavra ‘collage’ é uma designação ainda muito fraca” (1996, p. 57). Tal procedimento talvez derive em resultados fugazes quando o artista prescinde da lenta acumulação em que o gosto e a técnica vão se apurando e entende estas palavras sem tomar em consideração o trabalho de conquista nele envolvido.

Ao refletir sobre a modernidade e a arte contemporânea, Rancière (2007) repropõe, na dinâmica interna da obra de arte, o enlace entre vibração e duração do monumento perene, observando nesse movimento o reflexo da própria questão continuada da arte até agora: essa promessa de felicidade, em que se anuncia um futuro em que arte e vida não seriam mais separadas, no qual todos participariam da “partilha do sensível”. Como se a arte contemporânea encerrasse como objetivo sua própria supressão ou constituísse um caminho para que política, economia e cultura se fundissem numa nova forma de vida coletiva e na construção de um mundo comum — mas, ao mesmo tempo,

fosse necessário manter a tensão entre autodestruição e recusa aos simulacros de reconciliação — permanecendo entre a fúria iconoclasta e a relação com o passado reprimido novamente trazido à luz — e mantendo-se a certa distância em relação ao desejo de imergir na vida, sempre deferido, dado o temor de fal- sos rompimentos de sua esfera autônoma (tais como ocorrem em momentos de estetização da política ou da mercadoria).

Porque estar no presente, mantendo distância e proximidade, é um apro- ximar-se interrogativo contínuo de algo por vir. Declara Ashbery no poema “So- nata azul”: “Seria trágico encaixar-se / no espaço criado pelo nosso não ter che- gado ainda / Pronunciar o discurso que pertence ao que virá / Pois o progresso ocorre através da reinvenção / Das palavras a partir de uma rememoração delas” (Houseboat Days, 1977). A tensão se manifesta entre os discursos prontos de an-

temão, que se adiantam ao que está por ocorrer, e a necessidade de evocar pala- vras que só podem ser reinventadas quando se relembra o que significaram. Sem ter lido o prestigioso ensaio de Agamben “O que é o contemporâneo?” (2009), bastante benjaminiano por sinal, Ashbery talvez tenha pensado na realização de desejos recônditos do passado nos quais reside a energia para mudar o futuro.

Passo dessa introdução mais geral, em que esbocei rapidamente uma po- sição, para a apreciação de três aspectos fortes que reconheço em John Ashbery como muito característicos, e com os quais me deparo em outros poetas con- temporâneos. Não pretendo com isso, nem seria possível, apresentar um painel ou um panorama de tendências. Mas tento, ainda assim, responder parcialmente à pergunta: o que faz um poema contemporâneo ser contemporâneo? Ter esco- lhido um grande poeta que ostenta uma obra consolidada e amadurecida para, atendo-me a seus versos, buscar direções é, obviamente, parcial, mas revelador. Selecionei de sua poesia tópicos de discussão que vejo também se apresentarem em parte na poesia brasileira contemporânea15.

1) Um traço que a poesia de Ashbery compartilha com outros poetas contemporâneos é a descentralização do “eu poético”. O “shifting I” ou “floa- ting pronoun” de Ashbery acentua uma tendência presente na modernidade, que ocorre ao lado da fragmentação do símbolo.

15 O motivo pelo qual escolhi, nos últimos anos, estudar poetas que começaram a es- crever à volta dos anos de 1960 e 1970 deve-se a esta percepção, ou crença, de que dali germina o “contemporâneo”, quando acontece esse salto tanto para a reinvenção quanto para a rememoração, em direção a ambos os limites, em tensão necessária, num enlace entre composição criativa de formas e reflexão de novas direções para a arte.

Embora a relativização do eu como identidade coesa seja notada por vá- rios autores como aspecto dominante de certo contemporâneo, já as vanguardas prenunciavam tal direção. Cito trecho do Manifesto Dada, intitulado “O senhor Aa o antifilósofo envia-nos este manifesto”, de Tristan Tzara:

Cravo os meus 60 dedos na cabeleira das noções e sacudo com brutalidade a cortina, os dentes, os ferrolhos das articulações. [...] Se existe um sistema na falta de sistema — o das minhas proporções — nunca o aplico. Ou seja, minto [...] porque o eu próprio nunca foi o eu próprio. [...] Eu: mistura cozinha teatro (republ. 1987, p. 13 e 37).

E, para contrastar, uma entrevista de Ashbery:

Os pronomes pessoais no meu trabalho parecem, com frequência, variá- veis numa equação. “Você” pode ser eu mesmo ou outra pessoa, alguém com quem eu converso, e assim também o “ele” ou “ela”, da mesma for- ma, ou o “nós” [...], isso não importa muito, porque nós somos todos, de alguma forma, aspectos de uma consciência que faz nascer o poema. [...] Eu acho que não tenho um senso muito forte de minha própria identida- de, e parece muito fácil mover-se de uma pessoa a outra [...], isto ajuda a produzir um tipo de polifonia em minha poesia que eu sinto ser um meio para alcançar maior naturalidade (apud PERLOFF, 1993, p. 63).

No texto do norte-americano, o tom parece-me amainado, como se a violência de ruptura do manifesto não fosse mais necessária. O eu-lírico afirma existir a partir do outro em vários de seus poemas, inclusive neste, em prosa:

Em você eu me desintegro, e exteriormente sou um único fragmento, um enigma para si mesmo. Mas precisamos aprender a viver nos outros, não importa quão abortivo ou hostil seja a interpretação fria e parcelada que tenham de nós: eles nos criam (“O novo espírito”, Three poems, 1972).

Ou ainda, neste outro trecho de poema que se assemelha a uma declara- ção de princípios:

A ascensão do capitalismo é paralela ao avanço do romantismo E o indivíduo domina até o final do século passado.

Em nosso tempo, as práticas de massa procuraram submergir a personalidade Ignorando-a, o que levou-a, em vez disso, a ampliar-se em todas as direções

Longe da tensão permanente que costumava ser sua noção de “lar”. (“Definição do azul”, The Double Dream of Spring, 1970)

Mas o que se mostrava até aqui bem resolvido é no fundo um tenso desafio para o sujeito sempre por vir: “Eu é um lugar onde tenho que chegar / Antes do cair da noite...” (A Wave, 1984).

2) Em relação à composição, Ashbery pratica ora formas rígidas, como a sestina e o pantum — como, explica, alguém que desce uma ladeira de bicicleta tendo concebido um mecanismo de pará-la a intervalos regulares, para que um ritmo exter- no se imponha, e obrigue o autor a sujeitar-se a uma percepção de tempo alheia a si, abandonando portanto o comando e obrigando-se a uma consciência diferente num exercício de abertura —, ora, pelo contrário, experimenta uma velocidade sem freios em que as cenas se desfazem por vezes no meio, e se passa rapidamente para outro assunto, às vezes começando algo no meio, tal como uma conversa que vem e vai com intercalações de todos os descartes, minudências e reflexões gerais.

O fato de o autor dispor-se a ser menos “autoritário” e dar voz a múl- tiplas perspectivas se reflete nos tipos de colagem, justaposição, alusões, inter- ferências, montagem de fragmentos de ordem diversa que se sobrepõem e que necessitam da intervenção do leitor para adquirirem um ou mais sentidos. Sem pretender à totalização, precisa-se ser um pouco cúmplice do autor, fazer parte do jogo, conversar com o texto para que os desvios e elipses formem um orga- nismo movente de significados: “a estória”, observa Ashbery, “se torna extraor- dinariamente clara por um momento como se uma mudança no vento tivesse, de repente, nos permitido ouvir uma conversa que estivesse acontecendo num lugar há alguma distância” ou ainda: “a estória [...] é um modelo geral, tamanho único, que cada leitor pode adaptar para caber em seu próprio conjunto de particulares. O poema é um hino à possibilidade [...]” (apud PERLOFF, 1993, p. 252).

É na verdade difícil e muitas vezes falha essa tentativa (que reencontra- mos em outros poetas norte-americanos como Lin Hejinian e Jorie Graham) de dar a impressão de colar-se à experiência de muito perto, atendo-se à complexi- dade da observação, à possibilidade de escalar a montanha dos inúmeros parti- culares, ao mesmo tempo em que a reflexão imaginativa organiza, cria, compõe. Averiguamos, nesses poetas citados, e em alguns brasileiros também, que tal pro- cedimento pode decair num hermetismo contingente, arbitrário — quando então se perde o movimento para a significação. A crítica que faz Jameson (1996) a esse

estado de coisas não pode ser generalizada, mas contém verdade:

a obra de arte, que não é mais unificada ou orgânica, mas é agora um saco de gatos ou um quarto de despejo de subsistemas desconexos, matérias- -primas aleatórias e impulsos de todo tipo. Em outras palavras, o que an- tes era uma obra de arte agora se transformou em um texto, cuja leitura procede por diferenciação, em vez de proceder por unificação. Teorias da diferença têm, no entanto, procurado enfatizar a disjunção até o ponto em que os materiais do texto, inclusive as palavras e as sentenças, tendem a se desintegrar em uma passividade inerte e aleatória, em um conjunto de elementos que se apartam uns dos outros (op. cit., p. 57).

Ashbery radicaliza a dúvida na credibilidade de uma versão sobre as ou- tras. Por isso, suas asserções são instáveis e se transformam “no processo de serem propostas”, o que Marjorie Perloff caracteriza como indecidibilidade ou indeterminação — mas que resulta às vezes num maneirismo do absurdo contí-