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NA POESIA DE CASÉ LONTRA MARQUES

Alexandre Moraes UFES

Quantos pensamentos, quantas predições nesse pequeno fragmento de minha duração... É por isso que meu coração é arrebatado. O livro que está diante de meus olhos é ilegível, e minha alma, sobre essas linhas às quais meus olhos se apegam sem esperança, aguarda o choque.

Paul Valéry, Alfabeto

Quando escrevo, algo em mim — nas costelas, não no crânio — treme tanto que só a proximidade da loucura pode me acalmar; mas eu só escrevo porque este algo trepida (a palavra inofensiva se confunde com a morte). Por enquanto resisto.

Casé Lontra Marques, A densidade do céu sobre a demolição

“Começo”. Esta é a primeira palavra do primeiro livro do poeta flumi- nense Casé Lontra Marques, Mares inacabados, funcionando no conjunto da obra

já pulicada como um programa e uma espécie de plataforma de produção poética de sua já nem tão curta obra106.

Perguntar sobre o começo é questão fundamental a respeito da poesia de

Casé Lontra Marques — mas, para ser fiel ao poeta de que vou falar, deverei construir e ter um discurso organizado pela descontinuidade e, simultaneamente,

por um pensamento que se espalhe por sobre as palavras de modo a resistir ao

alcance confortável, embora nem sempre discreto, daquilo a que chamou Michel Foucault de “exclusão discursiva”.

106 A obra poética de Casé Lontra Marques até agosto de 2012 inclui os seguintes trabalhos já publicados: 1 - Mares inacabados (Vitória: Flor&Cultura, 2008); 2 - Campo de ampliação (São Paulo: Lumme Editor, 2009); 3 - A densidade do céu sobre a demolição (Rio de

Janeiro: Confraria do Vento, 2009); 4 - Saber o sol do esquecimento (Vitória: Aves de Água,

2010); 5 - Movo as mãos queimadas sob a água (Rio de Janeiro: Multifoco [Orpheu]:, 2011);

6 — Minutos antes da estiagem (Vitória: Aves de Água: 2012). No prelo: Indícios do dia (São

Se a obra de Casé inicia-se, como dissemos, com a publicação de Mares inacabados é também a partir deste livro que devemos pensar a noção de movimento

na obra do poeta. Já no primeiro poema deste primeiro livro, o poeta nos chama a atenção para nos falar a respeito de que o começo não poderá vir a dar-se dis-

tante ou fora dos eixos do “movimento”; diz o texto poético: “Começo de um movimento diferente (...).” O texto também estabelece de onde o sujeito lírico pretende algum tipo de “começo” e de que tipo de “movimento” se trata: o “mo- vimento diferente”, isto é, aquele de onde vai o eu lírico falar e colocar a escrita e, ainda, um tipo específico, como veremos, de fala poética que narra os embates do sujeito lírico falante diante de todos os “começos” existenciais.

Algumas perguntas nos saltam aos olhos: de que movimento trata o poeta, que diferença é esta assim afirmada e, mais ainda, diferença em relação a que e, sobretudo, de onde se começa para que se estabeleça este “movimento di- ferente”? Se um crítico já nos informava quando da publicação do primeiro livro do poeta que “o termo movimento sintetiza, e simultaneamente escande, arranjos

e tensões fundamentais (...)”107, verificamos que o “movimento” além de ser um

dado muito importante no arranjo poético dos textos de Casé nos deixa questões e, por outro lado, é ele, o movimento, que organiza, sintetiza e revitaliza a cada instante toda a poética do escritor.

Ainda nas primeiras palavras aqui ditas, havia eu inscrito a necessidade de começar e essa necessidade colocada de forma a tentar perseguir e compreen- der o discurso descontínuo organizado nos textos poéticos de Casé. O que significa,

então, tal afirmação logo no início de meu texto?

Vejamos e nos organizemos em torno de todas essas noções suscitadas pela fala poética de Casé. Começar só poderá ser de um ponto, mas todo o embate

encenado nos textos é exatamente em torno deste ponto, o começo; ou seja, começamos

quando não nos resta outra alternativa; começamos quando não nos é permitido continuar. Começar implica, de forma radical, desfazer-se de todas as formas que

nos foram legadas; de todo o conforto que as vozes, falas, tradições, organizações estruturais e até mesmo interdições nos colocam. Começar é ter de partir diretamen-

te para o desconforto, aliás, o próprio poeta sabe disto ao nos convidar a “manter o

desconforto diante de toda/ fronteira, sem contudo/recusar dispersão (...)”108. O

107 BRANDÃO, Luiz Alberto. Livro movente, vida movente. In: MARQUES, Casé Lontra. Mares inacabados. Vitória: Flor&Cultura, 2008, p. 7.

começar tem sua constituição numa recusa das formas discursivas que impelem ao

continuar e nunca ao começar, ou seja, começar significa antes de tudo distanciar-se

das impossibilidades de, como diria Michel Foucault, “não poder dizer tudo”109.

Falar do começo e do começar é explicitar uma recusa de todas essas formas

que estabelecem e codificam um “tudo a dizer” permitido; uma ordem e uma desordem para o que se quer dizer, ou seja, implicam sempre na continuação das formas e modos. Casé, em seu primeiro texto publicado, de seu primeiro livro, nos sinaliza claramente que recusa, refuta e distancia-se da ordem discursiva que exclui a possibilidade indefinida das falas e, sobretudo, aquela em que se colo- ca: a fala poética. Esse começar do sujeito lírico indica muito claramente que a

enunciação lírica compreende que é preciso estabelecer e sinalizar um começar para uma fala outra que não venha a reduzir os embates de percurso no mundo dos

discursos e seres discursivos ou não e, por outro lado, tentar pôr em movimento uma multiplicidade de falas e escritas — e isto explica as inúmeras vozes líricas presentes em sua poesia — que incluem também o sujeito lírico falante em outras e indefinidas possibilidades.

Em outras e sintéticas palavras: começar, na poesia de Casé, implica em

ter claramente estas noções e ainda indica que a escrita que leremos, o livro possivelmente “ilegível”, mas no qual e do qual poderemos viver indefinidas ex- periências, é também aquele que se aproxima da loucura, embora distancie-se da

clínica110, aproximando-se, sinuosamente das possibilidades de rompimento do

silêncio dos discursos de continuidade, ou seja, do movimento de reprodutibilida-

de, buscando esse outro, o “movimento diferente”.

Neste ponto surgem outros dados, são eles: desconforto, dispersão, dis- curso e continuidade/descontinuidade. Cada um destes termos implica, de certa maneira, uma forma ou variadas formas de movimento e de tensões na poesia de Casé. Vejamos alguns pontos.

O primeiro deles e já mencionado aqui: a origem. O começar, neste quadro

de ideias que estamos traçando, só poderá constituir, portanto, um processo de

desconforto, quer dizer, implica o movimento e é fruto do abandono, isto porque

falar da origem não é discutir um passado perdido, mas um presente efetivado 109 FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Aula inaugural no Collège de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970. Trad. Laura Fraga de Almeida Sampaio. São Paulo: Loyola, 1996, p. 12.

110 Cf. DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. Trad. Luiz Roberto Salinas. São Paulo: Pers-

e a efetivar a cada momento e que se dá na hora mais urgente do discurso. Os enunciados deste “movimento diferente”, por sua vez, só podem vir a dar-se no momento em que se toca a origem de um determinado movimento. Em outras pa-

lavras: começar quer dizer abandonar uma tradição discursiva (ou um pensamento

desta tradição), organizações estruturais e possibilidades subjetivas herdadas que nos impelem a um tipo de discurso, aquele do poder e, se nos impelem a um tipo de discurso, o poder, no excluem de muitos outros tipos discursivos e de muitas outras experiências subjetivas.

Ao reafirmar o começar no início de sua obra, o poeta nos fala do fato

existencial do desconforto da possibilidade de conferir ser ao mundo, da angústia,

e nos fala ainda das possibilidades de um movimento que vai conferir ser (ou nas palavras do texto: “paladar”) a este movimento inicial e inaugural. O poeta reafirma o começo de um movimento que será realmente diverso e diferente dos movimentos gerais herdados e legados por sucessivas falas, organizações e formas da tradição e dos discursos de poder e suas lutas. Se para todo começar é

preciso o desconforto, então, para a descontinuidade de um discurso é necessário que

não evitemos a dispersão. Se recusarmos a dispersão, evitamos esse novo movi-

mento inaugural, imemorial ou “arcaico”, no dizer do poeta. É a dispersão que refuta a tradição dos discursos de poder organizados, discursos estes organizados para que se fale e se escreva e, ainda, se crie um espaço literário desenvolto, mas “plácido”, conformado e formado no próprio desígnio da continuidade e não na descontinuidade. É neste espaço que o eu lírico quer inserir o seu canto, como podemos ver no texto a seguir:

CANTO DE DISPERSÃO (1)

Estamos numa fratura Entre

Múltiplas fronteiras; No vértice — insidioso — Do

Torvelinho soerguido:111

MARQUES, Casé Lontra. Composição II/Canto de dispersão. In: Saber o sol do esquecimen- to. Vitória: Aves de Água, 2010, p. 35. 111

No texto acima, Casé reafirma seus lugares de fala: trata-se da dispersão,

da distância estabelecida dos centros de produção da continuidade de um sentido e de uma razão que configura o poder. O lugar da dispersão é, também, o lugar da

fratura, da quebra, do abandono e, claro, dos lugares excessivos de passagem, de transformação e de novos fluxos, ou seja, lugares de fronteiras, “vértices” insi- diosos de torvelinhos que se erguem ao sujeito lírico falante. O poeta nos leva à fratura, à fronteira e, como poderemos concluir, à “demolição” desses sentidos de uma razão da continuidade, sabendo que provoca:

(II)

(um gesto de desordem: não apenas como ponto de partida; o exercício deste gesto — também o seu excesso — como percursos, como processo: sem qualquer consentimento, porque tem sido somente insustentável des- conhecer seus excessos)112

A “desordem” dos sistemas de racionalidade e seus discursos: Casé trata desta aventura, ou seja, deste movimento em busca de um discurso outro que se sabe

“um gesto de desordem” e, além de agregar o começar, efetiva o seu “excesso”, quer dizer, a sua necessidade de conhecimento e de novas sustentações. Este mes- mo sujeito lírico “oblíquo”113 é também aquele que não desconhece que poderia

estabelecer sua fala (seu canto) e sua movimentação subjetiva distante das fraturas, no conforto de um espaço de subjetividade confortável. Vejamos no texto poético:

Ainda poderia cantar, sem os silêncios Com

Os quais me construí. Ainda Poderia

Cantar, sem os ventos

Em que me reparti. Ainda poderia cantar, Sem

O rastro dos dias

De que sobrevivi. Ainda poderia

112 MARQUES, Casé Lontra. Composição II (II). In: Saber o sol do esquecimento. Vitória:

Aves de Água, 2010, p. 35.

113 Maria Esther Maciel ao analisar o trabalho do poeta nos fala de um sujeito lírico que se insinua “obliquamente”. In: MARQUES, Casé Lontra. Campo de ampliação. São Paulo:

Cantar, sem o sol semeado Pelas cidades

Que não vi ruir Ainda

Poderia cantar, sem os olhos Com que renasci

Ainda poderia cantar, Sem os ruídos Com

Que tantas vezes ensurdeci.114

O canto estabelece o lugar de sua aventura e não se arrepende mesmo sabendo que poderia renunciar ainda no momento do canto a esta dispersão, a

esta composição coberta de fraturas de um sujeito lírico repartido, “oblíquo”, cujo canto é repleto de “ruídos”. O sujeito lírico encontra-se determinado para o momento em que sobrevive nesta outra razão, nesta ruptura com a continuidade e reafirmando, ao longo da obra poética, um começar originário que “tateia à procura” e sabe “resistir” colocando-se no lugar “de onde ir- rompe o impulso (...)”.

O canto e seu sujeito são frutos deste deslocamento da subjetividade origi-

nal tanto da desordem dos discursos quanto da movimentação do sujeito lírico falante que faz sua enunciação no lugar de uma contraverdade. Um lugar onde o

sujeito lírico sabe e experimenta saber — o “sabor” contido originariamente no sentido do verbo saber e o correspondente “paladar” nos textos de Casé — que

este sujeito lírico e subjetivo “da desordem” jamais poderá partir para longe da angústia arcaica e original. No dizer do poeta: “a dor”; a angústia da qual a ruptura

parte para formar, assim, o canto e a possibilidade deste começar que reinaugura para sempre um sujeito lírico e mundos indefinidos.

A possibilidade da aventura da desordem e da desrazão ou contraverdade

— e também de estabelecimento de um “campo de ampliação” e propagação do sujeito — vem a dar-se, no dizer do poeta,

114 MARQUES, Casé Lontra. Composição II. In: Saber o sol do esquecimento. Vitória: Aves

(Porque a dor não permite que o corpo caia solitário; porque a dor persiste na arcada de uma dor ancestralmente adiada; porque a dor perfura o frio, recobre o calor que pressiona o crânio contra a memória de um ritmo mo- vediço; porque a dor paralisa o pânico; porque a dor — quando contínua — vivencia uma velocidade antes inativa; porque a dor, num território em torno da dor, num momento em torno da dor, dilata a artéria, não a quie- tude, que atravessa o estupor, como as tardes que atingem a cartilagem)115

A dor (ou a angústia) embasa tanto a origem (o começar) da aventura de uma

possibilidade do ser no mundo quanto a impossibilidade do fracasso, uma vez que a dor não permite que “o corpo caia solitário” e, então, vemos a possibilidade de rei- naugurar — quer dizer, de criar e viver discursos e experiências anteriores à ordem — esse “algo” que, de uma alguma forma, vive a exclusão subjetiva e discursiva, a interdição, mas que aponta, no dizer do poeta, a dor que persiste na arcada de uma dor ancestralmente adiada, ou seja, a angústia do começar da origem, que vivenciamos a

todo momento e impulsiona uma outra lógica do movimento e uma outra razão do existir como lugar de invenção do mundo, contudo sabendo que é nesta angústia (ou nesta dor) adiada em torno da qual se dá o movimento. É a própria angústia (ou dor) fundadora, a angústia ancestral e inconsciente que cria a possibilidade da “desordem”, da “fratura” e da ruptura com uma razão de continuidade que nos diz e impõe um foucaultiano “tudo a dizer” de exclusão e adia a dor originária de sustentação do ser no mundo e a transformação dos entes em ser116.

Uma digressão aqui se faz muito necessária. Não estou aqui, em momen- to algum, falando de nenhuma forma de “ruptura” a que aludiam muitos teóricos da modernidade, do tipo “romantismo-realismo-naturalismo-modernismo”, mas de uma dispersão do discurso e da subjetividade muito sutil e muito mais efetiva

quando se dá. Nem tampouco se trata aqui da superação dos processos de rup- tura inscritos na arte quando do advento da pós-modernidade — processos estes estudados, por exemplo, por Gianni Vattimo. Não falamos de forma alguma aqui de conceitos periodológicos, tampouco de conceitos filosóficos que embasam mudanças estruturais nas sociedades ocidentais.

115 MARQUES, Casé Lontra. Op.cit. (2010), p. 18.

116 Cf. HEIDEGGER, Martin. Que é metafísica. Tradução Ernildo Stein. São Paulo: Duas

Cidades, 1969.

HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Trad. Emmanuel Carneiro Leão, Gilvan Fo-

gel e Márcia Sá Cavalcanti. Pertrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2008.

Aqui, e para acompanharmos o que se vai lendo nos textos de Casé de um modo geral, a noção de dispersão está ligada às ideias de um começar da “desor-

dem”, ou seja, a origem de uma razão outra que não seja “secretamente investida”

pela razão de discursos de poder e, assim, o sujeito lírico falante pode enfrentar os embates de produção e experiência dos sentidos de discursos e de mundos de sentido e, portanto, não mais “adiar” a dor ou a angústia do começar.

Refutar a continuidade discursiva e subjetiva da experiência com o mundo, enfren-

tar a dispersão e o desconforto e, mais que isto, explicitar uma outra forma de razão na descontinuidade, como diria, uma vez mais, Foucault, seria vir ao encontro:

“de qualquer modo, de [uma razão] antes excluída”117.

O sujeito lírico — nunca poderemos esquecer que são diversas as falas e tipologias de sujeito lírico na poesia de Casé — nos textos do poeta não hesita em “Confrontar-se com o real”, nos indagando se esse confronto “faz trepidar o mundo duplicado que se enuncia como superação da realidade?”. Perguntando ainda uma vez mais: “seria a suspensão” dos processos de trepidação dos dis- cursos de real “um circuito de atrocidades”? “A ficção construída como recusa constitui tanto um afastamento quanto uma proteção contra a dúvida?”118.

As questões que o sujeito lírico levanta são fundamentais para a com- preensão de dados da obra de Casé. Vejamos estas últimas aqui colocadas. A confrontação com o real (“o mundo como dádiva”, no dizer de Heidegger ou o “áporo”, lembrando Drummond) faz trepidar, quer dizer, dá novos sentidos e

direções de experiência e sentido para o mundo que duplica-se ao enunciar-se como superação da realidade. Casé, contudo, não afirma, remete a questão a todos nós, aumentando, a cada vez, a voltagem do perguntar lírico: “a suspensão

da dúvida”, da desordem e dos discursos organizados e definidos fazem — nos indaga o poeta — aparecer um “circuito de atrocidades”?

Se olharmos em perspectiva a obra do poeta fluminense, veremos que sim e que “suspender” essa aventura de trepidação dos sentidos, é voltar ao es- paço da atrocidade ou seja, da impossibilidade ou imobilidade do ser, do passo e da densidade proposta de demolição dos sentidos dados e, também, a suspensão dessa aventura de trepidação e desordem causaria a impossibilidade do ser e da invenção do mundo apriorístico, a “dádiva” ou o “ente” que precisa ganhar sen- tido ao vir a ser pela aventura do sujeito lírico e que deverá alcançar novo sentido

117 FOUCAULT, Michel. Op. Cit., p. 11.

quando tocado pela trepidação proposta pelo(s) eu(s) lírico(s), sabendo esse su- jeito que “de encontro ao mundo/o corpo configura um abismo”119.

O que nos sinaliza Casé — e veremos isto em todos os seus livros publi- cados até aqui — é que esta “outra razão” — por exemplo, aquela da feminina voz lírica que nos aparece no texto sintomaticamente denominado “Incisão dentro da cegueira” — é a razão que faz o sujeito lírico procurar este outro “movimento”. Esta outra diferença e, ainda, este outro lugar para que o eu lírico, ou no dizer de um crítico,

esse “eu” que “longe de se expor em alto relevo é oblíquo e discreto”120 e, ainda,

desdobrado em vozes diversas e pluralizadas possa inventar a sua “incisão”, o corte, a descontinuidade na e da cegueira dominante de discursos de poder e de continuidade e não mais adiar “a dor” que sustenta o movimento de invenção do ser.

Neste contexto, o que vem a significar, no dizer de Casé, “ser poeta”? E, não esqueceremos quando da leitura dos textos, “ser poeta” para sempre, e, ainda,

começar sempre a “ser poeta”, pois nos diz esse eu lírico: “sou poeta na medida em

que me falsifico mais feliz; — a pele — essa que tantas vezes vi cicatrizar — a pele é a minha primeira página”121, sabendo que “também a pele enxerga — quando sangra,

sobretudo—; enxerga para além do tangível”122 e, ainda, quando nos afirma que “Sou

poeta na medida em que fabrico uma felicidade difícil mas pelo menos suportável”123.

“Ser poeta” é, para este sujeito lírico falante, a decorrência de uma resis- tência de um eu aos mundos dos discursos e aos seus embates sangrentos; “ser poeta” é, portanto, saber da proximidade com a loucura, mas qual loucura? Aquela dos discursos e saberes com os quais há que se confrontar para que nisto não venha a ter a “palavra inofensiva”, a “felicidade fácil” que “se confunde com a morte”. “Ser poeta”, para este sujeito lírico, é, sobretudo, mover as mãos queimadas procu- rando a água que talvez falsifique a olhos comprometidos com o poder um ser do mundo, mas traga, no combate, “uma felicidade difícil” (a possibilidade aberta) do

começar e de escrever e ter a escrita e sua cartografia em decorrência de um algo de 119 MARQUES, Casé Lontra. Incisão dentro da cegueira. In: A densidade do céu sobre a demolição. Rio de Janeiro: Confraria do Vento, 2009, p. 39.

120 MACIEL, Maria Esther. No prisma das palavras. In: Campo de ampliação. São Paulo:

Lumme, 2009, p.15.

121 MARQUES, Casé Lontra. Incisão dentro da cegueira. In: A densidade do céu sobre a demolição. Rio de Janeiro: Confraria do Vento, 2009, p. 30.

122 MARQUES, Casé Lontra. Incisão dentro da cegueira. In: A densidade do céu sobre a demolição. Rio de Janeiro: Confraria do Vento, 2009, p. 30.

123 MARQUES, Casé Lontra. Incisão dentro da cegueira. In: A densidade do céu sobre a demolição. Rio de Janeiro: Confraria do Vento, 2009, p. 30.

intensidade múltipla e duplicada, o mundo, que se desdobra no discurso que nos faz habitar e assim, ou somente assim, “poeticamente” dizer que “o homem habi- ta”, ou seja, produz, intensifica, retorna ao “arcaico” e reencontra outro discurso,