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CAPÍTULO 1: PALAVRA

1.3. Palavras na arte – dos cubistas à contemporaneidade

1.3.1. Escritura

Quem escreve (quem pinta, esculpe, compõe música) sempre sabe o que está fazendo e quanto isso lhe custa. Sabe que deve resolver um problema. Pode acontecer que os dados iniciais sejam obscuros, pulsionais, obsessivos, não mais que uma vontade ou uma lembrança. Mas depois o problema resolve-se na escrivaninha, interrogando a matéria sobre a qual se trabalha – matéria que possui suas próprias leis naturais, mas que ao mesmo tempo traz consigo a lembrança da cultura de que está embebida (o eco da intertextualidade).

Umberto Eco

Este estudo inicia-se tentando abranger as definições de tessitura e como ela se constitui no plano da imagem e do texto. Enquanto na primeira ela pode ser encarada como o próprio plano, no segundo, a tessitura relaciona-se mais ao caráter estrutural do texto. As conclusões sobre esse termo acabam levando em conta a maneira como texto e imagem são percebidos, remetendo esta investigação às ideias de Vilém Flusser sobre texto e imagem como duas formas diferentes de comunicação. Seus conceitos de “pensamento histórico”, ligado à linearidade inerente à leitura de um texto, e “pensamento em superfície”, mais próximo do modo rizomático com que se lê uma imagem, sem dúvida, fazem sentido quando se aborda as relações entre palavra e imagem de forma hierárquica e mais dicotômica. Condição válida como o estudo sobre as relações entre a ilustração e o texto, entre o título e a obra ou, ainda sobre a ecfrase e todas as formas de descrição de imagens, sobre a tradução de textos em imagens, sobre o discurso da crítica a respeito da imagem, etc. Porém, no caso específico tratado nesta pesquisa, ou seja, quando o texto é tratado também como imagem, a relação hierárquica construída pela divisão entre a palavra e a imagem se enfraquece. Disso, o que parece estar um pouco à sombra dos conceitos flusserianos é que, como compreendido neste estudo, os limiares entre texto e imagem são muito mais tênues do que a separação dos dois tipos de pensamento (em linha e em superfície) propõe. Assim, a exclusividade de uma abordagem em linha ou em superfície encaixar-se-ia melhor, quando elaborada a partir de obras de arte e textos, declarada e exclusivamente, verbais ou visuais, estranhos à revolução principiada com Mallarmé e com as composições e colagens cubistas.

Ao romper a linearidade do texto escrito, espalhando os significantes no espaço da página, Mallarmé revelou uma estrutura (tessitura) que não tem apenas um sentido único de leitura, mas que é também visual, ao passo que Picasso e Braque recuperaram o caráter plástico da palavra e do texto em seus papiés collés. Desde então, com esse resgate de possibilidades, as palavras, na grande maioria dos trabalhos literários ou artísticos do ocidente, são perpassadas por seu caráter visual ou incidem dentro de uma estrutura em que a linearidade abriu espaço para simultaneísmos. Fica claro então, que ao longo do século XX, a palavra, além de portadora de sentido verbal, vem readquirido seu status visual e sua relação com a superfície, dentro de um contexto que tende para o pensamento a-histórico, já há algum tempo. Frente a esta constatação, a conceituação elaborada por Flusser sobre leitura em linha e leitura em superfície e seu desdobramento em pensamento histórico e pensamento a-histórico, tende a polarizar a palavra e a imagem em extremos, mesmo com a ressalva do próprio autor de que o processo a que este esquema remete é bem mais complexo.

Assim, depois de observar detalhadamente as noções sobre as relações entre palavra e imagem propostas por Flusser, concluo que suas teorias aplicam-se muito bem aos estudos do

design gráfico e à publicidade, por exemplo, onde a escrita tem um evidente caráter funcional mais

pronunciado. No entanto, nota-se que suas teorias não apreendem com tanta abrangência a escrita não instrumental, como a dos artistas ou poetas, onde o sentido, abarcado pela função poética do texto, já se dissemina tanto em termos de significações quanto visualmente. Curiosamente, apesar de ressaltar muito bem a importância da leitura da imagem e das superfícies, destacando sua presença e difusão em nossa civilização, Flusser se apoia na linearidade e objetividade do texto escrito para contrapô-lo à imagem.67 Esta percepção de escrita aproxima-se de correntes teóricas

que a tomam a partir da linguagem, ou seja, que atribuem um caráter unitário e funcional à escrita, identificando-a como um duplo da fala e subordinando-a à intenção do autor. A abordagem de Flusser respalda sua argumentação sobre a profusão de sentidos na leitura da imagem, mas tende a levar mais em conta o lado alfabético ou fonético da escrita e distanciá-la de sua condição tanto gráfico-visual quanto relacionada ao suporte.68

67 Flusser faz uma ressalva à sua teoria, explicando tratar-se de uma estruturação didática, com a intenção de facilitar a compreensão do assunto e que, na prática, as relações entre a visão linear e a visão em superfície são muito mais complexas. Além disso, de acordo com o autor, os meios para fazer ver e apreender com mais eficácia o que ele tenta explicar, ainda estariam para serem criados no futuro, quando o próprio pensamento em superfície tiver se desenvolvido melhor. Cf. FLUSSER, Vilém. O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação. São Paulo: Cosac Naify, 2007, p. 124.

68 A relação da escrita com o espaço que a circula e com suporte sobre o qual ela se inscreve, é abordada no terceiro capítulo desta dissertação, intitulado “Vazio”.

Logo, com o objetivo de avançar nesta análise das relações entre palavra e imagem na obra de Mira Schendel, proponho, lançar mão também das teorias sobre a “escritura” de Roland Barthes, já que tanto este autor quanto Anne Marie Christin69 ampliam mais a discussão,

abordando, profundamente, esta “palavra plural”70 tanto gráfica quanto semanticamente.

Para eles, restringir-se a uma concepção fonocêntrica e objetiva da escrita, significa acreditar que a história humana, o desenvolvimento do pensamento e o surgimento de nosso alfabeto foram conduzidos apenas pelo curso da razão. Além do que, significa engrossar a defesa do “mito cientificista de uma escrita linear, puramente informativa”71, como se representasse um

“progresso incontestável o de achatar o signo escrito (volumoso no pictograma e no ideograma) em um elemento puramente estocástico.”72 Em outras palavras, as tão fundamentais clareza,

objetividade e concisão informativas, inerentes à evolução do alfabeto e da escrita, como defendem os linguistas, não são fatos incontestáveis, intrínsecos a esse processo de evolução, mas valores atribuídos por nossa cultura.

Barthes considera a écriture (escritura), como outra modalidade de escrita, na qual as palavras não são usadas como instrumentos, mas postas em evidência como significantes:73

escritas de palavras trabalhadas em sua textura gráfica, ou escritas poéticas não-funcionais. Barthes trabalha este conceito ao longo de sua obra, modificando-o sob constantes deslocamentos evolutivos de significado em cada retomada, mas que de maneira sucinta aproxima-se do que se poderia tomar como uma forma de linguagem intransitiva, plural, que não objetiva prioritariamente a comunicação. Diferenciando-se do conceito de “escrevência”, que por seu caráter castrativo e totalitário, onde o discurso objetiva o fechamento e a delimitação de um sentido unívoco, na escritura “escreve-se talvez menos para materializar uma ideia do que para esgotar uma tarefa, que traz em si mesma sua própria felicidade.”74

69 Cf. ARBEX, Márcia (org.). Poéticas do visível: ensaios sobre a escrita e a imagem. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários, 2006, p. 23.

70 BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita – 1: A palavra plural. São Paulo: Escuta, 2001.

71 BARTHES, Roland. Le plaisir du texte précédé de Variations sur l’écriture. Paris : Seuil, 1994/2000, p.31. apud ARBEX, Márcia (org.). Poéticas do visível: ensaios sobre a escrita e a imagem. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários, 2006, p. 23.

72 BARTHES, Roland. Le plaisir du texte précédé de Variations sur l’écriture. Paris : Seuil, 1994/2000, p.31. apud ARBEX, Márcia (org.). Poéticas do visível: ensaios sobre a escrita e a imagem. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, Programa de Pós-Graduação em Letras: Estudos Literários, 2006, p. 23.

73 Cf. VENEROSO, Maria do Carmo de Freitas. Caligrafias e escrituras: dialogo e intertexto no processo escritural nas artes no século XX. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, 2000, p. 44.