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CAPÍTULO 2: MIRA SCHENDEL

2.4. Questionamentos

[...] o médico tomou-o por um braço e foi instalá-lo por trás de um aparelho que alguém com imaginação poderia ver como um novo modelo de confessionário, em que os olhos tivessem substituído as palavras, com o confessor a olhar directamente para dentro da alma do pecador, [...]

José Saramago

Nas correspondências de Mira com os amigos, Geraldo Souza Dias117 percebe

a preocupação da artista, mesmo antes da vinda para o Brasil e a respeito de suas relações com o cristianismo, a prática de uma reflexão sobre a fé. Sua crítica ao modelo fechado de religião instituída pelo catolicismo estende–se ao positivismo e ao materialismo, que teriam contribuído para o distanciamento do homem daquilo que ela consideraria o essencial. Mira relata a leitura de Karl Jaspers118 e Emmanuel Mounier119. Geraldo Souza Dias explica

que Jaspers associa uma transcendência íntima à realidade pessoal, estabelecida através de uma linguagem radical, como uma transcendência inominável e inalcançável. Desse momento em que simultaneamente a linguagem se realiza e evanesce, sua transcendência se converte num inominável e inalcançável, como apontaria Jaspers, porque já penetra os domínios do imaginário. É o incessante e o interminável de um desaparecimento (da linguagem) que se presentifica na ausência por ela engendrada.

Na reflexão proposta por Dias sobre Karl Jaspers120, o modo para nos tornarmos nós

mesmos de forma integral, estaria na interlocução advinda da possibilidade do convívio e do diálogo entre os seres humanos e da busca dessa linguagem radical. A linha de pensamento de Jaspers sobre uma evolução íntima e transcendente, rumo a uma existência mais integralizada do ser, parece assemelhar-se em alguns aspectos com a teoria de Carl G. Jung relacionada ao

117 Cf. DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 119-123.

118 Karl Jaspers, pensador alemão que viveu grande parte de sua vida na suíça, influenciado em parte por Kierkegaard e Nietzsche, preocupou-se em estabelecer relações entre uma filosofia da existência e da razão.

119 Roland Bhartes diz que a revista francesa Esprit, fundada por Emmanuel Mounier em 1932, “[...] representa os pontos de vista de um catolicismo de vanguarda progressista, com base numa filosofia personalista.” BARTHES, Roland. O grau zero da escrita: seguido de ensaios críticos. São Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 23.

processo de evolução da subjetividade do indivíduo. O psicólogo suíço nomeou esse processo como “individuação”, que pode ser caracterizado pela transformação do “ego” originário do indivíduo em direção à uma consciência mais abrangente de si e do mundo, que Jung chamaria de “self ”.121

Dias122 relata que Mira Schendel leu parte da obra de Jung e isso contribuiu para seu interesse

pela arte e filosofia orientais, aprofundando os questionamentos existenciais e religiosos em seu trabalho. Uma de suas séries, inclusive, intitula–se Mandalas, uma forma arquetípica bastante explorada dentro da tipologia jungiana. Mais do que identificar uma ou outra corrente no trabalho da artista, a este estudo interessa perceber, por mais diversas que tenham sido suas leituras, um possível diálogo entre elas com seu trabalho escritural.

O período de disseminação dessas correntes acontece no pós-guerra, quando boa parte dos artistas e pensadores se deparam com um balanço negativo sobre vários fundamentos modernos: os espectros de Auschwitz e Hiroshima, produtos da modernidade e indiretamente do racionalismo que lhe abriram caminho, pairam no ar com o paradoxo de sistemas que justificaram, em função de uma (ideia de) humanidade, o massacre do humano. Em paralelo, assistia–se à continuidade de uma expansão tecnocrática sem precedentes, encabeçada por acontecimentos tenebrosos como a guerra fria e o início da escalada das ditaduras na América Latina e Europa do Leste. É o momento da modernidade em que, segundo Marshall Berman,123 atinge-se um

grau tal de progresso e racionalidade, numa escala de funcionamento tão abrangente, que esse mesmo progresso parece poder prosseguir autônoma e indefinidamente, atropelando a tudo e a todos, prescindindo inclusive do próprio homem. Confirmando este desamparo frente aos [des] caminhos tomados pela modernidade, Vilém Flusser na primeira parte de sua autobiografia,

Bodenlos124 (Sem chão), comenta que pouco depois de chegar ao Brasil, ainda nos anos de 1940,

percebe uma tendência nos intelectuais do período em se identificarem com correntes filosóficas que de alguma forma traziam um componente em diálogo com o “místico”. Nessa corrente, outro pensador que possui consonâncias com o grupo de autores lidos por Mira nesse período foi Emmanuel Mounier.

121 Cf. JUNG, Carl. O homem e seus símbolos 9. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1988 passim.

122 Cf. DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 151.

123 BERMAN, Marshal. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. passim. 124 Cf. FLUSSER, Vilém. Bodenlos: uma autobiografia filosófica. São Paulo: Annablume, 2007,

Segundo Dias125, o grande erro da atualidade para Mounier, estaria na percepção

distintiva e hierarquizadora entre homem e natureza, ou entre espírito e matéria, que relegaria o corpo e sua concretude ao polo inferior da natureza, enquanto que a alma ou a razão estariam assim – ainda sob influência do neo–platonismo, transmitido ao longo dos séculos dentro do cristianismo – num plano superior. Esse modelo justificaria o desprezo e todo tipo de violência do homem contra a natureza e, claro, contra si mesmo, já que ao alienar o homem da natureza, a sua parte corpórea também sofreria as consequências da objetivação e impessoalização.

Dias126 considera que, para Mounier seria necessário então uma espécie de

personalização do humano, que por meio de uma “relação íntima” e particular com a natureza e a divindade, se integraria a um grande corpo místico, que lhe proporcionaria ao mesmo tempo uma nova consciência e liberdade. Da conjugação entre essas influências e trechos de cartas de Mira, o autor127 destaca como o processo de criação da artista associava-se com suas questões existenciais,

colocando-se como fio condutor de seus pensamentos e, naturalmente, de seu trabalho.

125 Cf. DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 123. 126 Cf. DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 123. 127 Cf. DIAS, Geraldo Souza. Mira Schendel: Do espiritual à corporeidade. São Paulo: Cosac & Naify, 2009, p. 125-129.

FIGURA 036 - SEPARAÇÃO

Caixas subdivididas para arranjo e distribuição dos tipos, espaços e intervalos de chumbo de uma gráfica tradicional.

Frank S. Henry, ilustração de livro, 1917. (LUPTON, 2006, p. 12)

Conforme Mounier, a objetivação e a impessoalização de nosso modo de pensar alienam o homem do continuum que interliga tudo que existe, abstraindo-o da natureza e fragmentando este todo em unidades separadas. Esta condição de nossa cultura pode ser pensada através da metáfora das gavetas tipográficas: as palavras, estas unidades que, além de mediarem a noção do todo através das significações e conceitos que carregam consigo, podem ser, ainda, subdivididas e ordenadas em pequenas unidades abstratas, as letras alfabéticas.