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CAPÍTULO 2: MIRA SCHENDEL

3.4. O pensamento da tela

3.4.1 Vazio: atuação do invisível no visível

[...] a vertigem da página branca, do parágrafo ou do exergo vazio subsiste apesar de todos os artifícios de escrita que tentam enegrecer a página, preencher os espaços a priori.

Antoine Compagnon

As interpretações dadas sobre o branco nas culturas do Ocidente e do Oriente diferem em vários pontos. Enquanto no Oriente o branco é compreendido como um processo ativo e gerador, no Ocidente ele usualmente representa uma falta, um nada. Leitura que também é atribuída ao espaço vazio, o lugar perdido e indefinido do intervalo entre as figuras. Um dos motivos (e para Anne-Marie Christin, o motivo) desta diferença de julgamento estaria na forma com que estas culturas concebem a escrita.272

271 BARTHES, Roland. O grau zero da escrita: seguido de novos ensaios críticos. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 64

No Oriente os caracteres da escrita ideográfica chinesa, provenientes da observação celeste e do registro pelos adivinhos em cascos de tartaruga, admitem uma ampla flutuação de sentido, sendo capazes de receber vários valores dependendo de sua localização. Tanto o suporte do ideograma chinês quanto os sinais que lhe são contíguos influem na variação de sentido deste sinal.273 Diferente da

escrita ideográfica, que preserva a importância do espaço vazio plenamente no próprio ato de leitura como reforço aos sinais da escrita, o nosso alfabeto é estruturado a partir de uma divisão abstrata da língua sem nenhuma atribuição de valor ao espaço vazio. O sistema alfabético foi o primeiro, após um período em torno de três mil anos de existência do ideograma e do sistema hieroglífico, a desfazer os vínculos com o visível inicial da escrita – e logo, também com o espaço.274

O alfabeto ocidental deriva de uma estrutura gráfica precedente, a escrita grega (Fig. 097) que se constitui num dos desdobramentos do sistema alfabético criado pelos fenícios (Fig. 098) em meados do segundo milênio a.C. Conforme estudiosos, este sistema corresponde à apropriação e adaptação de alguns sinais da escrita hieroglífica egípcia por mercadores nômades hicsos e hebreus e a posterior transmutação desses sinais em figuras de seres e animais familiares de fácil memorização e que tinham os mesmos nomes nas diversas línguas semíticas.275

273 Cf. CHRISTIN, Anne-Marie. Poétique du blanc: vide e intervale dans la civilization de l’alphabet. Paris: VRIN, 2009, p. 42.

274 Cf. CHRISTIN, Anne-Marie. Poétique du blanc: vide e intervale dans la civilization de l’alphabet. Paris: VRIN, 2009, p. 42.. 275 MANDEL, Ladislas. Escritas, espelho dos homens e das sociedades. São Paulo: Edições Rosari, 2006, p. 42

FIGURA 097 - HELENOS

Detalhe da escrita em uma estela funerária com nomes de soldados gregos mortos em batalha no ano de 459 a.C. Museu do Louvre, Paris

Os fenícios adotaram este alfabeto e o simplificaram ainda mais, transformando-o num sistema acrofônico, em que bastava nomear as figuras desse conjunto de sinais e reter seu primeiro som – daí a denominação acro, relativa ao significado de topo, de alto e de primeiro - para se ter acesso à letra correspondente. Da decomposição das articulações dos diferentes idiomas falados e sua acomodação mais ou menos adaptada às suas pouco mais de duas dezenas de sinais, o sistema alfabético admitiu a mesma escrita para todas as línguas reduzidas em fonemas, “[...]fixando definitivamente assim as relações entre a palavra falada e sua figuração gráfica.”276

Relações baseadas numa compilação da língua que tem como objetivo a transcrição fonética fixa em detrimento de possíveis interações visuais flutuantes entre esses sinais gráficos e desses com o espaço: “[...]saber ler refere-se, estritamente neste sistema, a decodificar.”277

276 MANDEL, Ladislas. Escritas, espelho dos homens e das sociedades. São Paulo: Edições Rosari, 2006, p. 43.

277 CHRISTIN, Anne-Marie. Poétique du blanc: vide e intervale dans la civilization de l’alphabet. Paris: VRIN, 2009, p. 10. FIGURA 098 - FENÍCIOS

Placa de pedra encontrada em Gezer, entre Tel-Aviv e a fronteira egípcia.

Escrita em uma das línguas dos fenícios, esta placa mostra um calendário do séc. X a.C. Museu de Istambul, Istambul

Todavia, segundo Anne-Marie Christin, o alfabeto apresenta uma inadequação endêmica em relação aos sons das línguas e suas nuances, sendo portanto insuficiente para a definição de uma linguagem genuinamente oral, pois a letra de nosso alfabeto não é resultante de uma análise fonética rigorosa.278 A letra surgiu de uma condição visual da escrita que a precedeu:

a estrutura gráfica do alfabeto fenício, a qual dava suporte concreto à leitura deste alfabeto. O esquema fonético atual adequou esta estruturação de forma mais ou menos adaptada à acomodação das línguas.279 Assim, a escrita ocidental, por sua constituição híbrida, ao mesmo tempo em que

abstrai veementemente sua parte visual, o faz de maneira instável. Do mesmo modo que nossa civilização do alfabeto identifica, por definição, o branco e o vazio à ausência, à falta e ao não nomeado, recusando-se a enxergar-lhes como parte das formas visíveis.

Por conta da fragilidade dessa posição de rejeição do branco, do vazio e da visualidade alfabética, abrem-se possibilidades dentro desta mesma escrita – e desta civilização – para se explorar e manejar o vazio e o intervalo de modo a fazer-lhes emergir significativamente. Quando a norma é a letra, não há reconhecimento aplicável previsto fora do nome que ela anseia fixar, mesmo que tacitamente. Então ler ou olhar o branco, sem associá-lo à tragédia de uma perda ou de uma falta, equivale a transgredir o sistema de forças que se resguarda nessa invisibilidade presumida do vazio: a razão.

278 CHRISTIN, Anne-Marie. Poétique du blanc: vide e intervale dans la civilization de l’alphabet. Paris: VRIN, 2009, p. 10. 279 CHRISTIN, Anne-Marie. Poétique du blanc: vide e intervale dans la civilization de l’alphabet. Paris: VRIN, 2009, p. 10.

FIGURA 099 - FERRAMENTAS PARA UMA BOA ESCRITA E essa “boa” escrita pressupõe uma “bela” escrita não apenas no sentido caligráfico do termo, mas que também obedeça às expectativas alicerçadas pela cultura. Uma escrita que apazigua o leitor, completando todos os “buracos” do sentido, como a “escrita de prazer” barthesiana. Bem diferente, seria a écriture, praticada por Mira, Mallarmé ou Artaud, que tira o leitor de sua posição de conforto, uma vez que não se propõe a corresponder-lhe com fechamento de sentido, mas, ao contrário, explora o vazio como fonte geradora de novos significados.

Prancha da enciclopédia da Grande Enciclopédia, Diderot e d’Alembert, metade do séc. XVIII (MANDEL, 2006, p. 158)

Não foram senão os artistas e os poetas os primeiros a terem a ousadia de enxergar o vazio em nossa civilização, estes artífices a quem Platão sempre guardara severa desconfiança, rebaixados à condição de desonestos ilusionistas da polis grega. Foi preciso que os artistas levassem o alfabeto à redescoberta do branco e do vazio, para que estes fossem explorados de diversas maneiras originais. O artista plástico francês Jean Dubuffet expõe claramente o ostracismo do branco no contexto alfabético de nossa civilização e explica como “[...]para o olhar não há intervalos”280,

diferentemente do vocabulário, ao qual não há nada além do nomeável. Ou melhor, para a visão os intervalos não são nulos, constituindo-se como meio potencial onde o olhar e a imaginação se projetam completando (recriando?) as formas:

[...] há um condicionamento cultural que induz a olhar o entre os objetos como vazio. [...] O continuum das coisas foi decomposto pela cultura em vinte mil noções cujo inventário corresponde às vinte mil palavras do dicionário. É desse contexto de vocabulário que se utiliza o pensamento. Ele é pobre, arbitrário. A escrita não tem outra alternativa, enquanto que a pintura pode libertar-se: a sua língua de sinais não é dependente e, neste continuum, ela pode fixar ao infinito os pontos que se encontram em todos os intervalos entre os conceitos que foram nomeados. [...] É missão da pintura ultrapassar convenções, restituir o contínuo, sobrevoar e introduzir pontos de contato ou de apoio mutáveis a todo momento, que criam, para o pensamento, todo

tipo de novas trajetórias.281

Estas novas trajetórias indicam claramente a possibilidade representada pelo “pensamento da tela” ou “pensamento em superfície”, onde o sentido não mais transcorre linearmente segmentado pela escrita, mas difunde-se em inúmeras direções. Pensamento que redesenha flexivelmente os conceitos, levando em conta a imaginação e a memória associativa, tal qual os antigos adivinhos chineses e astrólogos que observavam os intervalos entre os corpos celestes, fazendo surgir novas formas significativas destes espaços. No Tao há uma passagem sobre o vazio e o invisível:

280 DUBUFFET, Jean. Batons rompus. Paris, Minuit, 1986, p. 26 e 27, apud: CHRISTIN, Anne-Marie. Poétique du blanc: vide e intervale dans la civilization de l’alphabet. Paris: VRIN, 2009, p. 11 e 12.

281 DUBUFFET, Jean. Batons rompus. Paris, Minuit, 1986, p. 26 e 27, apud: CHRISTIN, Anne-Marie. Poétique du blanc: vide e intervale dans la civilization de l’alphabet. Paris: VRIN, 2009, p. 11 e 12.

A atuação do invisível no visível282

Trinta raios convergentes no centro Tem uma roda,

Mas somente os vácuos entre os raios É que facultam seu movimento.

O oleiro faz um vaso, modelando a argila, Mas é o oco do vaso que lhe dá utilidade. Paredes são massas com portas e janelas, Mas somente o vazio entre as massas Lhes dá utilidade -

Assim são as coisas físicas, Que parecem ser o principal, Mas o seu valor está no invisível

Este aforismo sugere o modo pelo qual a cultura oriental visa a compreensão do vazio: pela integração daquilo que não é como sendo parte do que é. Em outras palavras, é graças ao vazio que o envolve que aquilo que é visível e nomeável tem a possibilidade de existir como tal. Mais que um espaço de separação entre os termos, o vazio permite que se estabeleçam inúmeros feixes de relações significativas e mutáveis entre as coisas, de maneira que conceitos e formas pré- existentes possam ser ultrapassados rumo a um estado de mutável e constante devir: o fora.

282 ROHDEN, Huberto. Lao-Tse: Tao Te King. São Paulo: Fundação Alvorada, 1979, p. 46

FIGURA 100 - TRANSPARÊNCIA E OPACIDADE EM UM MESMO CONTINUUM

Mira Schendel, Sem título (Objetos gráficos), 1967 datilografia s/ papel entre placas de acrílico transparente, 100 x 100 x 1 cm

col. Ada Schendel, São Paulo (PEREZ-ORAMAS, 2009, p. 130)