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CAPÍTULO II – Narrativa textual: dizer e contar através de palavras

2.2 As relações de amor e monstruosidade

2.2.1 Esmeralda e Quasimodo

A relação que une o sineiro Quasimodo e a cigana Esmeralda é marcada tanto no romance quanto na dança pela aliança dos contrários. O aspecto físico de ambos personagens fazem deles seres antitéticos: Esmeralda é concebida como a personificação da beleza, enquanto que Quasimodo é considerado um ser monstruoso devido à sua fealdade e a suas deformidades físicas.

Os vínculos afetivos que aproximam esse casal inusitado da narrativa hugoana foram inspirados, de acordo com Barreto, em conto que há séculos habita o imaginário popular: A Bela e a Fera. A estória da bela jovem e da fera que se apaixonam perdidamente tornou-se célebre em 1756, pelas mãos da escritora Jeanne-Marie Leprince de Beaumont. Entretanto, a trama desse conto teria sido inspirada em outra obra, l’Histoire de la princesse Zeineb et du roi Léopard, de Jean-Paul Bignon, escrita em 1712.

Todavia, conforme Barreto explica, a estória contada por Victor Hugo nutre-se de elementos trágicos, os quais não são apresentados no conto original. Em Notre-Dame

de Paris, a história entre a bela e a fera revela-se um amor impossível. Quasimodo

devota um amor puro por Esmeralda, enquanto que a jovem cigana demonstra apenas amizade e gratidão pelo sineiro.

Apesar da aparente oposição entre ambos, suas trajetórias se entrelaçam em diversos momentos da trama. Como explicitado anteriormente, Quasimodo e Esmeralda foram trocados um pelo outro quando ainda eram crianças e ambos crescem sem suas famílias. Já na fase adulta, seus destinos se cruzam e Esmeralda conquista o amor e a lealdade de Quasimodo. A origem comum e a forma como as vidas de ambos se interceptam em distintos instantes da trama revelam, de acordo com Barreto, uma laço de equivalência entre Quasimodo e Esmeralda, não obstante suas aparências.

50 “Quasimodo é, então, o substituto de Esmeralda; a bela e a fera funcionam como uma espécie de quase-gêmeos”57

O amor impossível que Quasimodo nutre por Esmeralda é de suma importância para a compreensão de sua personalidade dual, uma vez que é justamente por meio desse amor sublime que a bondade e a pureza de sua alma são colocadas em evidência. Sabemos que, apesar de sua feiura e de suas deformidades físicas, Quasimodo possui uma alma generosa, dotada de belos sentimentos. Entretanto, esses são encobertos tanto por seu corpo defeituoso quanto pelo sentimento de raiva e ruindade que aprendera com a sociedade que o humilhava e o rejeitava.

Antes de conhecer Esmeralda, Quasimodo nunca provara do amor para com outro ser humano. Suas relações se limitavam ao convívio com Claude Frollo, seu pai adotivo, por quem cultivava um misto de gratidão e obediência. Excluído pela sociedade que o maltratava em virtude de sua aparência grotesca, Quasimodo refugia-se em Notre- Dame e faz daquele espaço o seu universo. Sua grande paixão, até então, eram os quinze sinos da catedral. Embora eles tenham-no tornado surdo, Quasimodo os considerava como sua família, ele lhes falava, acariciava-os e os compreendia. De fato, eles eram a única coisa que ele ainda ouvia. Segundo Barreto, a reclusão de Quasimodo no ambiente da catedral torna-o um monstro solitário, cuja satisfação sexual realiza-se por meio da relação empreendida com um dos sinos – Marie, sua bem-amada.

Ele [Quasimodo] obterá a amizade e a gratidão de Esmeralda, mas o amor de Quasimodo não se realizará efetivamente. Ele continua um monstro virgem e suas relações sexuais parece se realizar sob uma forma fantasma, nas relações que ele mantém com o grande sino, „sua bem-amada‟, a qual ele chama de Marie, quando eles se unem na mesma hibridez monstruosa.58

Movido por seu amor sublime por Esmeralda, Quasimodo realiza uma série de atos na tentativa de salvar a jovem cigana da morte. Ao ser condenada pelo suposto assassinato de Phœbus, Esmeralda é regatada pelo corcunda que a leva para Notre- Dame, local de asilo. Embora reconheça a bondade do sineiro e seja grata por suas ações, Esmeralda não consegue corresponder aos sentimentos de Quasimodo, cultivando por ele uma simples amizade. Na realidade, além de ser apaixonada por Phœbus, Esmeralda empreende um grande esforço para esconder seu horror diante da figura disforme de Quasimodo, a qual lhe provoca medo. No entanto, a convivência

57 BARRETO, 2006. p. 97 58 BARRETO, 2006. p. 93

51 com esse personagem e os cuidados que ele lhe dedica despertam a compaixão da cigana, que se imbui de um sentimento de ternura e gratidão.

Por sua vez, Quasimodo tem ciência da impossibilidade de realização do amor que sente por Esmeralda. Ele tem conhecimento de seu aspecto grotesco e do horror que esse provoca nos demais, sobretudo na jovem cigana. De fato, a beleza resplandecente de Esmeralda perante a sua figura, faz com que Quasimodo veja sua feiura como nunca dantes.

Jamais vi minha feiura como agora. Quando eu me comparo com você, tenho muita piedade de mim, pobre monstro infeliz que sou! Devo lhe parecer uma besta, diga. –Você, um raio do sol, uma gota de orvalho, um canto de pássaro! – Eu, eu sou algo assustador, nem homem, nem animal, um sei lá o que mais duro, mais pisoteado nos pés e mais disforme que um pedregulho!59

Embora seu amor não seja correspondido, Quasimodo realiza todos os esforços possíveis para salvar a vida de Esmeralda. Em virtude desse amor puro e incondicional, ele não hesita, até mesmo, em atentar contra a vida de seu pai adotivo Claude Frollo ao final da trama. Impossibilitado por sua surdez de perceber o que se passava frente à Notre-Dame, Quasimodo crê que a multidão presente tentava invadir a catedral para capturar Esmeralda, acusada de assassinato e bruxaria. Em um ato de desespero, ele tenta impedir a tomada da catedral pelo povo que, efetivamente, buscava resgatar a jovem cigana. Ao se distrair nessa verdadeira batalha contra a multidão, Quasimodo possibilita que Frollo capture Esmeralda, entregando-a a seus executores.

Desesperado ao ver a morte da bela cigana e o riso demoníaco de contentamento do arquidiácono, Quasimodo empurra Claude Frollo das torres de Notre-Dame e desaparece em seguida. Cerca de dois anos depois dos acontecimentos, o esqueleto de Quasimodo é encontrado abraçado ao da jovem Esmeralda no cemitério de MontFaucon.

Assim, podemos perceber que, na narrativa hugoana, a relação entre Esmeralda e Quasimodo baseia-se no encontro entre duas alteridades, dois personagens antitéticos que de alguma forma se complementam. O amor incondicional que Quasimodo devota por Esmeralda é puro, não exige nada em troca. Tal amor espiritual, revela a enorme

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HUGO, 2009 p. 311

Texto fonte: Jamais je n'ai vu ma laideur comme à présent. Quand je me compare à vous, j'ai bien pitié de moi, pauvre malheureux monstre que je suis ! Je dois vous faire l'effet d'une bête, dites. − Vous, vous êtes un rayon de soleil, une goutte de rosée, un chant d'oiseau ! − Moi, je suis quelque chose d'affreux, ni homme, ni animal, un je ne sais quoi plus dur, plus foulé aux pieds et plus difforme qu'un caillou !

52 bondade presente na alma do sineiro, que até aquele momento escondia-se debaixo de seu corpo disforme. Embora Esmeralda não retribua o amor de Quasimodo da mesma forma, ela não deixa de demonstrar seu afeto e reconhecimento por ele. A compaixão e a gratidão que nutre pelo corcunda são, de fato, mais fortes que o sentimento de medo perante as deformidades físicas de Quasimodo.

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