• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO II – Narrativa textual: dizer e contar através de palavras

2.1 A construção dos personagens

2.1.1 Quasimodo

Abandonado com aproximadamente quatro anos de idade devido às suas deformidades físicas, Quasimodo fora encontrado pelo padre Claude Frollo no primeiro domingo após a Páscoa. Movido pela compaixão e pela piedade que aquele ser lhe despertara, Frollo decide adotá-lo, levando-o consigo para Notre-Dame. Com efeito, aquela era a segunda vez que o padre tomava uma criança aos seus cuidados. Aos 19 anos, após a morte repentina de seus pais devido a uma peste na cidade de Paris, Frollo torna-se responsável por seu irmão caçula Jehan, o qual lhe revela um amor até então desconhecido. Os cuidados com este irmão conduzem Frollo a realizar a adoção de Quasimodo, pois de acordo com ele, tal atitude funcionaria como uma espécie de depósito no céu, um investimento em boas ações para amenizar os pecados que um dia o irmão viesse a cometer. Assim, Frollo recolhe aquele ser disforme rejeitado tanto pela família quanto pela sociedade e batiza-o de Quasimodo.

A escolha desse nome não é feita ao acaso. De acordo com a tradição cristã, o primeiro domingo após a Páscoa é designado como “domingo de Quasimodo” ou simplesmente, Quasimodo. Essa denominação provém das primeiras palavras proferidas – em latim - durante a missa celebrada neste dia: Quasimodo genti infantes. Conforme Barreto explica, essa expressão entoada durante a entrada dos responsáveis pela celebração significava“ criança recém-nascida”, ou ainda, “aquele que ainda tem muito a descobrir”35

. Consequentemente, o nome atribuído a Quasimodo poderia ser interpretado como uma menção ao dia em que fora encontrado por Claude Frollo. Todavia, segundo afirma Barreto, pode-se inferir, ainda, um segundo significado para o nome do personagem. “Quasimodo é um quasi modo. Em latim quasi quer dizer quase e

modo, de modus, significa forma, maneira, medida. Logo, a ideia deste nome nos remete

a algo incompleto, ou seja, um quase homem”36

Portanto, o nome escolhido por Victor Hugo para este personagem traz em sua essência uma ambiguidade, podendo remeter tanto ao dia em que o sineiro de Notre- Dame fora encontrado, quanto à incompletude de Quasimodo.

Ainda de acordo com Barreto, “Quasimodo é apresentado como um caso teratológico, tendo em vista o carácter hibrido e berrante de sua monstruosidade, a

35 BARRETO. 2006, p. 89 36 Idem, p. 89

38 mistura de formas humanas e animais que o compõe.”37·

Desde o seu nascimento, Quasimodo é comparado a um animal. Suas deformações físicas despertavam, ao mesmo tempo, horror e fascínio nos demais. No livro IV, por exemplo, Hugo descreve o diálogo empreendido entre quatro senhoras da sociedade, as quais observavam o pequeno ser disforme na armação de leito chumbada no adro da Catedral, onde se lia “crianças enjeitadas”. As quatro respeitosas senhoras observam atônitas Quasimodo, enquanto discutiam a respeito de sua natureza. “Isso não é uma criança”38

, dizia Agnès.“É uma macaco deficiente”39

, retrucava Gauchère.

É importante ressaltar que durante a Idade Média, período em que se desenvolve a trama, a monstruosidade estava diretamente associada às más-formações físicas. Tudo aquilo que apresentava um desvio em relação ao considerado o padrão estético estabelecido, era categorizado como um monstro físico. Com Quasimodo não foi diferente. Durante toda a narrativa, são empregadas diversas metáforas e adjetivos que o associam ao monstro e ao mal.

Essas comparações a um ser bestial e monstruoso são ratificadas pela própria descrição inicial realizada por Victor Hugo no momento em que o personagem é eleito Papa dos Loucos.

Não tentaremos dar ao leitor uma ideia deste nariz tetraedro, desta boca em forma de ferradura, deste pequeno olho esquerdo obstruído por uma sobrancelha ruiva em tufos, ao passo que o olho direito desaparecia inteiramente sobre uma enorme verruga, destes dentes desordenados, gastos aqui e ali, como as seteiras de uma fortaleza, deste lábio caloso sobre o qual um desses dentes estendia-se como a defesa de um elefante; deste queixo bifurcado, e, sobretudo da fisionomia distribuída sobre tudo isso, desta mistura de malícia, espanto e tristeza. Que sonhemos, se possível, esse conjunto.”40

Zarolho, coxo e corcunda: eis a primeira descrição de Quasimodo. No entanto, essas não eram suas únicas deficiências. Após ser adotado, Quasimodo é levado para a catedral de Notre-Dame, onde é criado por Claude Frollo. O padre lhe ensina a ler e a escrever, e Quasimodo torna-se o sineiro da catedral. No entanto, seu ofício provoca-lhe 37 BARRETO, 2006. p. 90 38 HUGO, 2009. p. 236 39 Idem, p. 236 40 Idem, p. 47 e 48

Texto fonte: Nous n'essaierons pas de donner au lecteur une idée de ce nez tétraèdre, de cette bouche en fer à cheval, de ce petit œil gauche obstrué d'un sourcil roux en broussailles tandis que l'œil droit disparaissait entièrement sous une énorme verrue, de ces dents désordonnées, ébréchées çà et là, comme les créneaux d'une forteresse, de cette lèvre calleuse sur laquelle une de ces dents empiétait comme la défense d'un éléphant, de ce menton fourchu, et surtout de la physionomie répandue sur tout cela, de ce mélange de malice, d'étonnement et de tristesse. Qu'on rêve, si l'on peut, cet ensemble

39 o rompimento dos tímpanos, tornando-o surdo. Tal surdez faz com que Quasimodo desenvolva uma dificuldade em comunicar-se com os demais, sendo capaz de emitir apenas sons guturais de difícil compreensão. Esses problemas em se expressar, aliados a suas más-formações congênitas, fazem de Quasimodo um ser melancólico e solitário.

Esse sentimento de exclusão é ratificado pelo tratamento da sociedade para com ele. Dos homens, Quasimodo conheceu apenas a raiva, o ódio e o desprezo. Quando estes lhe dirigiam a palavra, era apenas para maldizê-lo. Essas constantes agressões fazem com que Quasimodo aprenda a odiar a sociedade que o maltratava e o humilhava. Conforme Hugo afirma “ele odiava o povo por se sentir odiado.”41

O menosprezo enfrentado por Quasimodo provoca o seu isolamento em Notre- Dame. Esse espaço era para ele mais do que uma simples moradia, era seu universo, seu abrigo, seu esconderijo, algo sem o qual ele não sobreviveria. O confinamento desse personagem durante anos a fio nesse local, faz com que Quasimodo torne-se parte integrante desta “vasta sinfonia de pedra”42. A catedral fazia parte de Quasimodo – “ a áspera catedral era sua carapaça”43

-, e Quasimodo fazia parte da catedral.

É assim que, pouco a pouco, desenvolvendo-se sempre no sentido da catedral, vivendo nela, dormindo nela, saindo dela quase nunca, sofrendo a toda hora sua pressão misteriosa, ele chegou a parecer com ela, a incrustar-se com ela, por assim dizer, a fazer parte integral dela.44

Era em meio às estátuas e às gárgulas de Notre-Dame que Quasimodo se sentia reconfortado. Esses seres de pedra eram os únicos que não o menosprezavam, pois eram iguais a ele em relação à feiura e, consequentemente, à monstruosidade.

Embora Quasimodo seja denominado como monstro em virtude de sua aparência horrenda, percebemos, no decorrer da narrativa, que este ser disforme é, na verdade, dotado de sensibilidade e inteligência, características que se tornam visíveis, principalmente, por meio de seu amor e devoção por Esmeralda. De fato, as atitudes de Quasimodo ao longo da trama revelam que o sineiro possuía uma alma boa e generosa, a qual jazia presa em seu corpo defeituoso. Essa dualidade em sua essência permite ao leitor depreender quem, efetivamente, são os reais monstros da narrativa hugoana, visto

41 HUGO, 2009. p. 145 42Idem, p. 156 43 Idem, p.247 44 Idem, p. 247

Texto fonte: C'est ainsi que peu à peu, se développant toujours dans le sens de la cathédrale, y vivant, y dormant, n'en sortant presque jamais, en subissant à toute heure la pression mystérieuse, il arriva à lui ressembler, à s'y incruster, pour ainsi dire, à en faire partie intégrante.

40 que, por baixo da carapaça feia e deformada de Quasimodo, era possível entrever a beleza e a sensibilidade existentes em seu espírito.

Ao recriar a obra de Hugo para a dança, Roland Petit procura ressaltar essa dualidade presente em Quasimodo. No entanto, segundo afirma o coreógrafo, seu “Quasimodo não é um monstro, ele está mais para um sujeito complexado, pois ele sofreu um acidente. Ele é um ser rejeitado por sua diferença.”45

Pode-se notar que, efetivamente, Roland Petit concentra sua narrativa naquilo que ele considera o mais importante do romance hugoano: a rejeição e a humilhação sofridas por Quasimodo. Isso fica evidente em diversas sequências46 de sua coreografia. A título de exemplo, podemos citar o primeiro quadro do balé, em que o sineiro de Notre-Dame é eleito Papa dos Loucos. Apesar de ser evidente a deformidade do corpo de Quasimodo ao surgir em cena, ele não é apresentado ao público como um ser monstruoso que aterroriza a todos. A expressão de medo e ternura no rosto do bailarino aliada aos seus movimentos desajeitados, porém delicados, revelam desde o primeiro momento a ambiguidade deste personagem.

No momento da aparição de Quasimodo em cena é interessante notar que o corpo de baile permanece imóvel em um primeiro momento, como que fascinados pelo sineiro. Todavia, logo em seguida, eles o cercam, com gestos pantomímicos, apontando- lhe o dedo e rindo de sua horrenda figura. Quasimodo logo se torna agressivo. Essa sequência ratifica a prerrogativa hugoana de que o mau comportamento de Quasimodo ocorre em virtude do escárnio e das humilhações que ele sofre da sociedade.

45 FIETTE,2007, p. 24

46 Ao escrever o livreto de Notre-Dame de Paris, Roland Petit divide o balé em dois atos e treze quadros.

41

Documentos relacionados