• Nenhum resultado encontrado

espaço doméstico é constituído pelas relações sociais (os direitos e os deveres mútuos) entre os membros da fam ília, nomeadamente entre o homem e a mulher e entre ambos (ou

lavíitirü ãf'£!i!£ü

espaço doméstico é constituído pelas relações sociais (os direitos e os deveres mútuos) entre os membros da fam ília, nomeadamente entre o homem e a mulher e entre ambos (ou

qualquer deles) e os filhos. N este espaço, a unidade de prática social são os sexos e as gerações, a forma institucional é o casamento, a fam ília e o parentesco, o mecanismo do poder é o patriarcado, a forma de juridicidade é o direito dom éstico (as normas partilhadas ou impostas que regulam as relações quotidianas no seio da fem ília) e o modo de racionalidade é a m axim ização do afecto.^

Ora, como podemos observar, a institucionalização desses espaços, especificamente do doméstico, outra coisa não é senão uma ordenação de lugares, de sentimentos e de sujeitos que desempenharão papéis específicos e onde o mando e a ordem têm lugar. Quando a circulação dos sujeitos nesses espaços ocorre de acordo com o que esperamos, a normalidade está estabelecida. Do contrário, e é o que os mundos familiares de O esplendor de Portugal e de Lavoura arcaica pontuam, qualquer inversão naquela ordem construída desestabiliza o espaço estrutural e exige uma acomodação dentro de um outro modelo.

Pela mesma razão, embora essa seja de natureza política, pensamos creditar ao capitalismo as atitudes das potências mundiais e dos países colonizadores que sujeitam as famílias ao degredo e a deslocamentos, os quais comprometem, por gerações, suas referências, suas identidades e suas vidas. A história dos deslocamentos dos povos pode constituir uma experiência rica de “transnacionalismo”, de questionamento das fronteiras, porém isso não se dá sem que inúmeras implicações de toda ordem sejam por esses mesmos povos vividas. Por questões dessa natureza, as famílias dos dois romances que focalizamos são originárias de povos errantes, peregrinos sem causa, enredados nas malhas do espaço estrutural mundial. O “espaço da mundialidade”, conforme Boaventura,

® SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modemidade. 6 ed. São Paulo: Cortez, 1999. p. 126.

constitui as relações econômicas internacionais e as relações entre Estados nacionais na medida em que eles integram o sistema mundial. Neste contexto, a imidade da prática social é a nação, a forma institucional são as agências, os acordos e os contratos internacionais, o mecanismo de poder é a troca desigual, a forma de juridicidade é o direito sistêmico (as normas muitas vezes não escritas e não expressas que regulam as relações desiguais entre Estados e entre empresas no plano internacional) e o modo de racionalidade é a maximização da eficácia.’

Temos, então, de atribuir os desencontros e os desamores familiares dos romances também a alguma coisa que está além do pessoal, qual seja, uma ordem familiar e uma ordem mundial que foram se constituindo ao longo da história. E que, como coisas construídas e históricas, podem ser entendidas como mutáveis e passíveis de transformação.

Assim, os desencantos e sofrimentos anunciados como “desordem”, digamos assim, sentida e observável nos enredos, podem ser vistos como sinalizadores de uma nova ordem. Até porque é salutar que relembremos, com Hilda Habichayn, que “O amor romântico [...]- como outras expressões humanas - é uma ‘invenção cultural’, é, portanto, um produto histórico.” E que, por essa razão, “é possível que atualmente seja substituído por outra forma de amor (por outra conceitualização e outra prática) que deve ainda ser definida e caracterizada com cuidado”.*

De outra feita, importa-nos enfatizar que a destituição do idílio familiar do lugar que ocupou na literatura de épocas anteriores, no nosso entendimento, traz, sub- repticiamente, no rastro da “destruição” bakhtiniana, um aceno de construção. Poderemos então passar da sensação de homeless que tomamos emprestada de Suely Rolnik, e que apontamos no início da discussão, para a sensação oposta, ou seja, a da necessidade de edificação do home, idéia essa dessa vez emprestada de Julia Kristeva. Evidentemente que

’ Id. ib., p. 126.

* Tradução nossa. No origiiial; “H amor románticG [...] - como otras expresiones humanas - es una ‘invención cultural’, es, por lo tanto, un producto histórico. [...] es posible que actualmente sea ya reemplazado por otra forma de amor (por otra conceptualización y otra práctica) que debe aún ser definida y caracterizada con cuidado”. (HABICHAYN, Hilda La mujer, los nifios y el poder. In: HOLANDA, Heloísa Buarque de; CAPELATO, Maria Helena Rolim (orgs.). Relações de gênero e diversidades culturais nas

esse novo home implica “um outro modo de ser, de desser”^ e que deverá ocupar o lugar anterior do modelo romântico e constituir-se em novo paradigma.

Ocorre que, enquanto vivenciamos essa fase de transição, a referência é o paradigma do amor romântico, aplicado a contexto histórico já bastante diferenciado daquele em que se deu a cristalização da referência amorosa ocidental. De sorte que talvez possamos atribuir a essa condição de “limbo” em que nos encontramos, a essa incompatibilidade entre o paradigma amoroso e a vida real, tanto os desamores quanto o suposto aceno de desejo amoroso na família.

Assim, transportando o cronotopo do estatuto ficcional para o histórico, podemos dizer que há uma falta de sintonia entre o cronotopo real*“ vivencial e o cronotopo real em que se origina nosso modelo amoroso familiar. O tempo e o espaço em que nos movemos estão ensejando vivências e relacionamentos incompatíveis com o ideário amoroso do século XVIII.

A literatura não está indiferente a essa problemática. Ao contrário, mostra-se bastante sensível a esse particular. As vozes romanescas sinalizam, de diferentes formas, esses anseios. O amor na família parece ser, apesar de todos os embates, ainda absolutamente necessário: “vou contribuir para preservar nossa união, quero merecer de coração sincero, pai, todo o teu amor”.*^ E a referência idíUco-familiar parece, a despeito de todos os reveses da guerra e da evidência da morte, persistir na memória, comprovando que aquele ideário ainda não se destituiu, que em seu lugar ainda outro não se pôs:

[...] o vôo dos pássaros, asas de feltro, gritos, o mar lá embaixo, o Mussulo, os coqueiros, descíamos à praia, os meus pais e eu, o meu pai de temo creme e panamá, a minha mãe de sombrinha aberta cor-de-rosas, eu com um chapéu de palha que se atava sob o queixo, trazíamos o ahnoço num cesto tapado por um guardanapo que se estendia na areia com as marmitas em cima [...] a minha mãe nunca tirava as luvas nem se descalçava, sentada num banquinho a soprar com o leque os calores que o meu pai soprava com o jornal, os

KRISTEVA, Julia. Histórias de amor. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p. 420.

Ao discorrer sobre a produção cultural que se dá num mundo “real, inacabado e histórico”, Bakhtin usa a expressão “cronotopo real” do qual se originam os “cronotopos refletidos e criados do mundo representado na obra (no texto)”. (BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: teoria do romance. 2 ed. São Paulo: UNESP / Hucitec, 1990. p. 358).

pássaros sobre nós eram os pássaros das fossas da Corimba, de asas poeirentas de saija

De maneira que acreditamos ter respondido a outro de nossos questionamentos sobre a existência/ausência do sentimento amoroso no universo familiar, e, preocupação mais extrema, se ainda existe lugar para afetos naquela instituição.

Temos clareza da complexidade da questão, mas não nos privamos da oportunidade de pontuá-la pela via da evidência do desejo do sentimento amoroso no universo familiar, como coisa dada no mundo literário. Que nuance tem esse amor e em que tipo de família ele tem maior possibilidade de acontecer é uma outra questão.

Se nosso ideário amoroso fosse outro, descabível se tomaria a literatura render um irônico louvor a Deus (“FINIS LAUS DEO”^^), à maneira loboantunesina, ou optar pela perspectiva maktubiana (“não questionando jamais sobre [os] desígnios insondáveis”^'*), uma vez que o amor e as relações humanas são problemáticas culturais discutíveis. E, quem sabe, mais facilmente se concretizasse o desejo do sentimento amoroso no universo familiar.

Portanto, repetimos a hipótese que levantamos no início deste estudo, de que o ser humano está buscando - e a literatura evidencia isso - o que mais deseja; amar e ser amado, seja qual for o teto que o cubra.*^

Está, dessa forma, aberta a discussão, estão expostos os sentimentos, está em questão o amor, ou melhor, o desamor.

Voz de Isilda, momentos antes da morte. (ANTUNES, p. 381).

Epígrafe final do romance (ANTUNES, p. 381). Expressão latina equivalente à “Ao final, o louvor a Deus”.

NASSAR, p. 196.

fm

“Em ‘O Esplendor de Portugal’, Lobo Antunes transforma a raiva em escrita poderosa. [...] Todo grande escritor tem uma percepção aguda do que o cerca, e que resulta no mal-estar cujo desdobramento mais positivo é a literatura e o mais negativo, o rancor e o isolamento.”'®

“Cresce o interesse pela cultura do povo árabe [...] não podemos deixar de mencionar a produção do árabe de segunda g^ação de milenaridade e modernidade, como é o caso, por exemplo, de conhecidos autores bastante valorizados pela crítica IrasUeira, tais como Radwan Nassar ( Lavoura Arcaica)”.*’

CARVALHO, Bernardo. Vozes de um mundo hipócrita. Folha de São Paulo, 16 jan. 2000. Mais, n. 414, p. 18. ^ HANANL\, Aida Ramezá. A produção cultural do imigrante árabe no Brasil. In: HOLANDA, Heloísa Busque de; CAPELATO, Maria Helena Rolim (orgs.). Relações de gênero e diversidades culturais nas Américas. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura; São Paulo: EDUSP, 1999. p. 461.

K.2r-ir*;/icrü3 Dionoíiríii r.us