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Desamores na ficção contemporânea: a destruição do idílio familiar /

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Academic year: 2021

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üdenfOiçüüdüKjiio raiiiíiür

Dissertação apresentada como requisito à obtenção do grau de Mestre.

Curso de Pós-Graduação em Literatura, Universidade Federal de Santa Catarina. Orientadora: Dra. Simone Pereira Schmidt.

Florianópolis 2000

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a destruição do idílio familiar

iVIaria Salete Daros de Souza

Esta dissertação foi julgada adequada para a obtenção do título

MESTRE EM LITERATURA

Área de concentração em Teoria Literária e aprovada na sua forma final pelo Curso de Pós-Graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina.

Profa. Dra. OdíFla Carreirãó Ortiga ( U P ^ ) SUPLENTE

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A todos que me aproximaram da literatura, em especial minha mãe Malvina e meu marido Tomaz.

... e com o desejo de que essa seiva chegue a meus filhos Candice e Tiago.

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Em cada contorno do caminho andado visualizo alguém para agradecer. Nomes e rostos se acumulam: amigos (os que já tinha e os que ganhei), funcionários, professores (desta e de outras instituições) e familiares.

De certa forma, todos concorreram para que ouvindo-os eu pudesse silenciar e refletir, e silenciando-os eu pudesse fazer soar em mim as vozes que se evidenciaram.

De sorte que, elejo minha orientadora professora Dra. Simone Pereira Schmidt para, através dela, agradecer colaborações, trocas, competência, conhecimento, trabalho, apoio e carinho que tantos dividiram comigo.

Este estudo é, portanto, um pouco de tudo isso: parceria e polifonia.

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O esplendor de Portugal de Antônio Lobo Antunes e Lavoura arcaica de Raduan Nassar

constituem o corpus desta análise que tem como objeto de estudo o desamor e o desfazer-se das relações no universo familiar. Entendida como uma tendência da ficção contemporânea, interessa-nos investigar, à luz do cronotopo idílico familiar bakhtiniano, especialmente de sua destruição, de que forma as narrativas dialogam com a complexa fragilidade dos laços familiares nos romances.

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O esplendor de Portugal by Antônio Lobo Antunes and Lavoura arcaica by Raduan Nassar

are the corpus of this analysis which subject is lack of love and the ruin of the family afFairs. Seeing it as a tendency of the contemporary fiction, our hitent is, according to Bakhtin's defmition o f the family idyll chronotope, specially its destruction, investigate how the novels discuss the complex fragility of the family relationships.

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Capítulo 1 - 0 esplendor de Portugal

E por falar em {O esplen)dor de Portugal...17

A casa da Baixa do Cassanje... 22

Cartografia dos menores... 34

A migração do Cassanje... 38

Os exilados da casa da Ajuda... 43

A voz da guerra ••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••• As moradas em tempo de guerra: cartografia da degradação... 63

O curso do tempo e a finitude da vida...66

Capítulo 2 -Lavoura arcaica Os imigrantes do passado em Lavoura arcaica...75

Tradição patriarcal e banimento ••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••••• 80 Casa vivida e casa sonhada: a geografia do exílio...95

O eterno retomo ao ninho: o signo da volta no romance...106

Sexualidade incestuosa e tradição do sacrifício...115

Capítulo 3 - Ao olhar os dois romances, o que ainda é possível dizer Aguçando a análise; os dois romances em foco...136

As veias da ancestralidade... 140

A transgressão: traço de transformação e de d o r____ _____________...— 150

Últimos pensares... 166

Posfácio... 172

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Malsucedido, ao que tudo indica, é o destino inelutável do amor na virada do milênio, seja nas relações amorosas eróticas, seja nas vicissitudes do romance familiar. Amantes, cônjuges e namorados, tanto quanto pais, mães, filhos, sobrinhos, tios, avós: todos parecem condoidamente atinados com as impossibilidades do coração.'

Ao eleger a problemática das relações familiares na ficção contemporânea como objeto de estudo, estamos elegendo o cronotopo idílico familiar como categoria teórica, e, a partir dele, concentrando especial interesse na destruição do idílio familiar. De certa forma, estamos propondo um estudo sobre o desamor.

Se pode parecer insólita a proposta de um estudo sobre esse tema, pensá-lo no ambiente familiar, lugar entendido culturalmente, no mundo ocidental, como espaço de construção e de alicerçamento das relações, também pode sugerir um paradoxo. Afinal, não é isso que o ser humano busca. Em todas as tentativas de aproximação e de relacionamentos desejamos intensamente o amor. E especialmente o desejamos na instituição familiar burguesa moderna, por nela residirem os mitos do amor materno e paterno e das afetividades filial e fraternal.

No entanto, as relações humanas, normalmente conflituosas, evidenciam mais escancaradamente suas contradições e exacerbam seus desafetos no ambiente faniiliar, por nele estreitarem-se os laços e a proximidade.

Falar da destruição das relações familiares é falar do amor por outro viés, por aquele que nomeia Um outro afeto que toma o lugar do primeiro, ou falar da ausência

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que nos apegamos quando nos apaixonamos ou ao desejo dele recorremos quando nos sentimos vazios desse sentimento.

Portanto, falar de desamor significa entendê-lo como negação e como ausência amorosa; situação que submete os sujeitos à privação do amor. Significa beber na afirmação de Simmel;

O contrário do amor é a ausência do amor, isto é, a indiferença. Para que, em seu lugar, o ódio se instale, é preciso que haja motivos positivos novos, que se ligam efetivamente ao amor de maneira algo secundária - por exemplo, estar preso um ao outro, sofrer por ter-se enganado ou deixado enganar, a dor das possibilidades perdidas de amor, etc.^

Havendo qualquer outro sentimento, não poderemos, então, caracterizar a experiência como de desamor.

A literatura, através de suas especifícidades e através de diferentes tendências e gêneros, tem representado as relações amorosas. O idílio é uma dessas formas de representação, assim como o é a sua destruição. Se pensamos e falamos também sobre a destruição do idílio é porque entendemos que alguma vez e em algum momento o idílio existiu.

Conforme diz Arthur Nestrovski, "ao contrário do que se aprendeu lendo tantas histórias de amor, amor não é comum. A falta de amor é. Palavra de cautela para os abençoados: amor é raro".^ Pelas mesmas razões, não é rara a destruição dos laços amorosos e do idílio familiar na literatura. E, se a própria literatura criou o idílio como uma vivência fantasiosa do imaginário artístico, talvez comò forma de, através da arte, mascarar os conflitos humanos e tomar a vida mais amena, o enfoque da destruição do idílio no contexto das relações familiares no romance contemporâneo pode ser especulado com um olhar semelhante. Aquele que reconhece e evidencia os conflitos como tentativa de entendimento e de investigação do ser humano e de suas vivências no mundo familiar.

^ SIMMEL, Georg. Filosofia do amor. São Paulo: Martins Fontes, 1993. p. 213. ^ NESTROVSKI, op. cit, p. 24.

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ausência amorosa como um dado marcante nas relações pessoais e familiares das obras que elegemos para o presente estudo. Talvez seriamos mais precisos se disséssemos que as personagens dos romances escolhidos demonstram um forte desejo amoroso, colocam-se veementemente em busca de afeto, o que caracteriza a ausência dele.

Ao analisar a destruição do idilio como tema principal da literatura do final do século XVIII e primeira metade do século XIX, estendendo-se para a segunda metade deste último, Mikhail Bakhtin afirma que, na linha clássica básica de elaboração desse tema, a destruição do idilio não é um fato bruto que se afasta das circunstâncias históricas, mas existe uma certa sublimação e humanização das pessoas e das relações.

A esse pequeno mundo condenado a perecer se opõe um mimdo vasto, mas abstrato, onde as pessoas estão separadas, são egoisticamente fechadas e gananciosamente práticas, onde o trabalho é diversificado e mecanizado, onde os objetos não dependem do trabalho pessoal. É preciso construir esse mundo vasto sobre uma base nova, tomá-lo familiar, humanizá-lo. É preciso encontrar imia nova relação com a natureza, não com a pequena natureza do recanto familiar, mas com a vasta natureza do mundo imenso, com todos os fenômenos do sistema solar, com as riquezas retiradas das entranhas da terra, com a diversidade geográfica dos países e dos continentes. No lugar da coletividade idílica limitada é indispensável encontrar uma outra, capaz de abranger toda a humanidade.'^

A interpretação bakhtiniana da destruição do idilio familiar nos romances da época citada, parece, a nosso ver, coincidir ou aproximar-se do que estamos apontando como justificativa para a investigação que estamos propondo. Ou seja, desde então, ou quem sabe, desde sempre, há explicitações dos conflitos humanos na literatura. E há, também, a expressão menos idealizada desses conflitos, na contemporaneidade, através da destruição dos laços e das relações, especialmente na familia. ^

No entanto, parece haver, no bojo do desfazer-se dessas relações, uma extemalização veemente de apelo à reconstrução dos laços, quer seja no microcosmo familiar, quer seja no macrocosmo universal. Ao negar a fantasia idilica estaria a literatura valendo-se do imaginário oposto: o do arrasamento dos sentimentos, o da aniquilação das relações no mundo da familia. E, então, desse terreno árido, quem sabe, poderá erguer-se nova compreensão, novos sentimentos, um outro modelo de relação familiar que melhor

BAKHTIN, Mikbail. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. 2 ed. São Paulo; UNESP / Hucitec, 1990. p. 340.

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Mergulhado em insatisfatórios laços familiares que ele próprio criou, poderá o ser humano desejar construir uma outra proposta. O estranhamento causado pelo deslocamento total dos elos da estrutura familiar poderá atiçar, através do entendimento da problemática das relações, a busca de uma alternativa que melhor corresponda ao que mais desejamos: amar e ser amado, seja qual for o teto que nos cubra.

As transformações e alterações da ordem social têm causado, desde sempre, um mal-estar generalizado que se intensificou com a modernidade e tomou proporções surpreendentes no mundo pós-modemo. Para Sérgio Paulo Rouanet, o mal-estar “é inerente a qualquer tipo de civilização, em qualquer estágio evolutivo. Mas podemos presumir que ele se revista de formas específicas conforme o período histórico”.^ Causado por renúncias impostas pelo mundo exterior, gera fhistração, culpa e sofrimento. O perfil contemporâneo assumido pelo mal-estar na civilização pode ser chamado, segundo o autor, de mal-estar moderno, ou mal-estar na modernidade, e manifesta-se sob a forma de um grande ressentimento contra a civilização.

O estudo que Marshall Berman faz da modernidade, na perspectiva marxista, sugere que as energias e ansiedades da vida moderna brotam das pressões da moderna vida econômica,

de sua incansável e insaciável demanda de crescimento e progresso; sua expansão dos desejos humanos para além das fronteiras locais, nacionais e morais; sua pressão sobre as pessoas no sentido de explorarem não só aos outros seres humanos mas a si mesmas; a volubilidade e a interminável metamorfose de todos os valores no vórtice do mercado mundial.®

Dessa forma, a vida moderna estaria repleta de impulsos e de potencialidades contraditórias que geram uma incerteza sobre o que é válido e estabelecido. Desestabilizada nossa identidade e esfacelada nossa subjetividade, promovemos a invasão

^ ROUANET, Sérgio Paulo. Mal-estar na modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p. 96. ® BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. a aventura da modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1986. p. 117.

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sentimentos, desaconchego, falta de familiaridade nas relações; desassossego, nomeado

homeless por Suely Rolnik em seu texto Subjetividade cmtropofágica^

O que estamos propondo é que a destruição do idílio familiar pode ser vista na literatura como investida do ser humano no sentido de aliviar esse desassossego e de promover o amor. O estranhamento causado pelo desmoronamento das relações familiares na cultura pode significar um olhar para dentro de si, uma visualização que poderá melhor promover, no distanciamento, a identificação e as razões do rompimento dos vínculos. Esse olhar talvez focalize o amor pela instância da razão. O deslocamento do sentimento amoroso, da sua instância afetiva para a instância racional, poderá promover, mesmo que momentaneamente, atitudes novas. Se a falta de amor tanto nos incomoda e dele não podemos prescindir, haveremos de encontrar formas de preservá-lo, seja na instituição familiar, seja em outras relações.

A literatura transita bem nesse universo; colhe vivências no campo real para devolvê-las transmudadas em sonhos ou em sofi'imentos que alimentarão novos desejos, novos comportamentos e outros tantos sentimentos amorosos.

É esta a investigação que nos interessa; o processo da destruição das relações amorosas no corpo da família em romances contemporâneos. Como construção histórica e social a família tem todo um percurso que precisa ser considerado e relativizado. Da mesma forma, os conceitos e comportamentos que se estabeleceram em seu entorno podem e devem ser vistos à luz das ideologias, das culturas e das instituições hegemônicas que as alimentaram.

Seguindo o percurso histórico da origem e evolução da família, é inegável que, guardadas algumas particularidades, essa forma de socialização é conhecida desde muito por todos os povos e agrupamentos, e que, embora histórica e culturalmente diferenciados, neles a família se mantém de maneira mais ou menos duradoura. A evolução da organização familiar parece estar intimamente ligada à propriedade privada.

^ ROLNIK, Suely. Subjetividade antropofágica. In:--- .Arte contemporânea-, um e/entre outro/s. São Paulo: Fundação Bienal, 1998. p. 1-2.

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adquiriu demasiada importância enquanto não acarretou conseqüências notáveis em matéria de propriedade. ®

Esse mesmo interesse teria criado a necessidade imediata da fidelidade da mulher e, pela mesma perspectiva, o casamento monogâmico decorre de circunstâncias econômicas e sociais, assim como casamento e família, entendidos em qualquer uma de suas variantes históricas e culturais, decorrem de interesses diversos, sejam eles sexuais, econômicos ou religiosos.

A história do casamento e da família burguesa ocidental, que nos interessa particularmente, mostra o quanto a construção desses laços, até sua solidificação no século XVIII, está permeada por esses interesses. De acordo com Philippe Ariès, a estabilidade do casamento remonta aos primeiros séculos de nossa era. Sendo de origem pagã, a tendência à estabilidade no casamento e a mudança das mentalidades teriam sido assimiladas pela Igreja e transformadas em moral cristã. No período compreendido entre os séculos IX e XII, "o casamento ocidental foi implantado, tal como o praticamos hoje, sob formas laicizadas, tomadas mais leves pela possibilidade do divórcio, mas fixadas pelo direito".^

O período pós-Revolução Francesa conferiu importância para a discussão das relações entre o público e o privado. Se o privado se estabeleceu com vigor no século XVIII, é no final daquele século que se procuram definir as relações entre o Estado e a sociedade civil, entre o coletivo e o individual. Nessa discussão sai fortalecida a família, considerada como célula de base e instância reguladora da organização social. Hegel entende que "A família é a garantia da moralidade. Funda-se sobre o casamento monogâmico, estabelecido por acordo mútuo; as paixões são contingentes, e até perigosas; o melhor casamento é o casamento ‘arranjado’ ao qual se sucede a afeição, e não vice- versa".*”

*SM M EL,p.32.

® ARIÈS, Philippe. O casamento indissolúvel. In: AREÈS, Philippe; BÉHN, André (orgs.). Sexualidades

ocidentais. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 164.

HEGEL, apud PERROT, Michelle. In: ARIES, Philippe; DUBY, Georges (coords.). História da vida

privada. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. v. 4. Da Revolução Francesa à primeira Guerra, (cap. 2:

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também no século XVin, quando a ideologia do amor romântico deu suporte à passagem do sistema tradicional ou familiar para o sistema moderno ou individualista, sobre cujo modelo concentraremos nossa análise. Desde então, entende-se que

Ninguém é neutro em relação a um assunto como “a femília”. Nós todos crescemos em

fam ílias e temos fortes sentimentos em relação às pessoas às quais estamos relacionados e às instituições que nos ligam a elas. É na femília que experimentamos nossas primeiras emoções e ambivalências: amor e ódio, prazer e dor, dar e receber. A femília é onde as pessoas se tocam, fisicamente e na totalidade do seu ser. É onde aprendemos a ter esperança, a sofrer desapontamento, a confiar, e a ser pmdentes. Acima de tudo, a femília é onde as pessoas dão o impulso inicial na vida, onde elas experienciam um profimdo convívio e aonde elas esperam poder retomar quando necessitarem. A expectativa é, de fato, a chave: as pessoas contam com a família para estar “juntos” para o melhor ou o pior, na doença e na saúde, etc., como o juramento matrimonial estabelece.

Pensada na perspectiva da categoria cronotópica bakhtiniana, a família constitui o núcleo temático dos romances familiares e dos romances de gerações. No entanto, neles o aspecto idílico já sofre modificação radical e empobrecimento restando somente o que pode ser reinterpretado e conservado sobre a base da família burguesa.

Naturalmente, a família do romance familiar já não é a família idílica. Ela está desligada do local ümitado e feudal, do ambiente natural e imutável que a alimenta, das montanhas natais, dos campos, do rio, da floresta. A unidade de lugar do idíUo se limita, na melhor das hipóteses, à casa urbana, femiliar e ancestral, à parte imóvel da propriedade capitalista.'^

Portanto, essa reinterpretação de que fala Bakhtin, esse arranjamento idílico dentro do romance já indica a desconstrução do cronotopo idílico familiar.

” BRIDENTHAL, Renate. The family; the view from a room of her own. In: THORNE, Barrie; YALOM, Marilyn (orgs.). Rethinlàng the family. some feminist questions. NewYork/London: Longtnan, 1982. p. 225. Tradução nossa. No original: “No one is neuíral about a subject like ‘the family’. We have all been raised in families and have strong feelings about the people we are related to and the institution that binds üs to them. Here is where we experienced our first emotions and ambivalences: love and hate, joy and pain, giving and taking. Family is where people touch, physically and in their total being. Here we leamed to hope, to sufFer disappointment, ,to trust, and to be wary. Above all, family is where people get their start in life, where they experienced the most sharing and where they expect to be able to retum in need. Expectation is, in fact, the key: People expect famihes to provide ‘togethemess’ for better or worse, in sickness and in health, etc., as the marriage vow sets it up.”

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Segundo o autor, o romance familiar inicia com a obra Tom Jones^ de Henry Fielding, a quai é uma variante clássica do romance familiar, cujo paradigma é o refugio, a construção das relações humanas e as vizinhanças antigas: amor, banquetes, procriação, velhice. Podemos dizer, no entanto, que naquele momento já há empobrecimento do cronotopo idílico familiar, quer seja pelo aspecto espacial, quer seja pela ausência de tempo folclórico ou mesmo pelo significado temático do cronotopo, uma vez que essa variante consiste em representar o microcosmo familiar no desfecho do romance, quando se reconstrói o núcleo da família com características idílicas. Narrando as peripécias de um “enjeitado” de paternidade desconhecida, o romance é uma crítica aos costumes e desigualdades do século XVIII inglês e teria sido, quando de sua publicação, em 1749, considerado uma obra de “estímulo à licenciosidade e á libertinagem”.*^

Em Goethe (Fausto e Anos de peregrinação de Wilhelm Meisíer), as transformações são acentuadas pelo novo paradigma de sociedade, onde não há lugar para laços idílicos. A destruição da concepção e da psicologia idílicas são ainda mais acentuadas na literatura de Stendhal, Balzac, Flaubert e nos romances de geração de Thomas Mann e outros. Neles,

A destruição é apresentada sobre o fiindo do centro capitalista de um idealismo ou de um romantismo provincianos dos personagens, que não são de modo algum idealizados; também o mundo capitalista não é idealizado: revela-se a sua inumanidade, a destruição no seu interior de todos os princípios morais (constituídos em estágios anteriores da evolução), a desagregação (sob influência do dinheiro) de todas as relações humanas de outrora - amor, família, amizade, a degeneração do trabalho criativo do sábio, do artista, etc. 0 homem positivo do mundo idílico toma-se cômico, lamentável e supérfluo, ou ele perece, ou transforma-se num abutre egoísta.

Nesse sentido, é possível associar a perspectiva bakhtiniana do declínio do cronotopo idílico familiar no romance ao estabelecimento do capitalismo industrial nos séculos XVIII e XIX. A partir de então, ao microcosmo idílico se opõe um mundo capitalista, um macrocosmo que valoriza o trabalho mecanizado e onde as relações humanas são apresentadas de forma individualista. No novo paradigma familiar e social.

FIELDING, Henry. TomJones. v. 2. Rio de Janeiro; Globo, 1987. p. 511. BAKHTIN, op. cit, p. 341.

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relacionado às transformações históricas, ou não há lugar para laços idílicos ou eles apresentam-se fragilizados.

Falar do idílio apenas como forma nostálgica de vivência humana, idealização de um passado distante, cuja referência básica é a Idade do Ouro, parece não ser nenhuma impropriedade. Teócrito e Virgílio, criadores do idílio, apresentam em seus textos evidências de “elaboração e artifício”.^’ Isso nos faz pensar que o idílio pode ser considerado como outros constructos, como outras utopias e ideologias amorosas, tais como o amor platônico, o amor cristão, o amor cortês e o amor romântico. E que, concordando com Jurandir Freire Costa, “A figura idealizada do amor tem uma longa história, profundamente enraizada no pensamento ocidental”.*^ E, como tal, tem na literatura a grande fonte do mito amoroso, haja vista o lugar atribuído pelos especialistas a

O banquete, de Platão, às Confissões de Santo Agostinho, à poesia lírica do século e à literatura romântica do século XVIII.

Por outro lado, as desilusões e os sofrimentos do sujeito amoroso, bem como as redefinições conceituais a que somos submetidos, comprovam que nada se sustenta diante de uma análise mais criteriosa. Ou seja, nem mesmo a condição ficcional isenta o amor, seja qual for o ideário que em tomo dele se teça, de ameaça.

Essa especulação nos leva a crer que, grosso modo, idílio e destruição/declínio são inseparáveis desde sempre. O que os diferencia é o nível em que isso se dá e as implicações que decorrem de cada momento histórico.

WILLIAMS, Raymond. O campo e a cidade: na história e na literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 2 9 e3 1 .

COSTA, Jurandir Freire. Sem fraude nem favor: estudos sobre o amor romântico. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. p. 36.

De acordo com Macfarlane, como ideologia, os conceitos de amor cortês e de amor romântico podem ter sido propagados pela literatura. Assim, os poetas medievais teriam dado uma grande contribuição ao cantar o amor cortês (“paixão absorvente, constantemente firustrada, presa fácil do ciúme e alimentada por suas próprias diBculdades”). (MACFARLANE, AlaiL História do casamento e do amor. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 335). Igualmente, a literatura do século X V i n foi responsabilizada pelas idéias que divulgava: “Assim como a TV e as novelas românticas de hoje reforçam e difimdem noções acerca da necessidade do amor e de sua inelutável natureza, não resta dúvida de que no passado a poesia, as peças teatrais, as canções, as pinturas, a Hteratura popular e as baladas faziam o mesmo”. (Op. cit, p. 135).

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Com efeito, Christopher Lasch fala da "percepção da vida como um conflito"'* ao se referir aos antagonismos dos sexos como característica universal já das culturas primevas. Essa percepção da vida como um conflito de opostos, no entanto, não é exclusiva do antagonismo dos sexos. Os estudos bakhtinianos revelam serem, do ponto de vista ideológico, efetivamente antagônicas e conflituosas as compreensões de mundo vigentes na Idade Média, por exemplo. A visão dialética do cosmos, de origem popular, que entendia o mundo e o homem como um processo, era absolutamente incompatível com o pensamento oficial do mundo medieval. Os festejos, os ritos e os espetáculos cômicos levados especialmente em praças públicas expressam esse pensamento popular em oposição ao reconhecidamente oficial, gerando o que Bakhtin chama de “dualidade do mundo”.’®

Bakhtin destaca ainda que a dualidade na percepção do mundo e da vida humana já existia expressa no folclore das civilizações primitivas. A história posterior de todos os povos também confirma a existência de conflitos de toda natureza. Se assim é, história, literatura e crítica literária confirmam a suposição de que a idealização dos relacionamentos é uma construção ideológica e ficcional. A vulnerabilidade própria das relações promove a desestabilização desse estado relacionai desejável, o idílio.

Nossa investigação será feita à luz da cronotopia bakhtiniana, ou seja, a destruição das relações familiares na ficção contemporânea será entendida como uma construção literária produzida na unidade temporal e espacial. A idéia de cronotopo aproxima o tempo e o espaço como uma só e mesma categoria, dentro da qual o universo romanesco se desenrola. Assim, o conceito de unidade cronotópica será nossa referência básica para o entendimento do gênero romanesco e da desestabilização amorosa nas relações familiares.

Em arte e em literatura, todas as definições espaço-temporais são inseparáveis umas das outras e são sempre tingidas de um matiz emocional. É evidente que uma reflexão abstrata pode interpretar o tempo e o espaço separadamente e afastar-se do seu momento de valor emocional. Mas a contemplação artística viva (ela é, naturalmente, também interpretada por completo, mas não abstrata) não divide nada e não se afesta de nada. Ela abraça o cronotopo em toda a sua integridade e plenitude. A arte e a literatura estão impregnadas

LASCH, Christopher (org. por Elisabeth Lasch-Quinn). A mulher e a vida cotidiana: amor, casamento e feminismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. p. 52.

BAKHTIN, Mildiail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. 3 ed São Paulo: Hucitec; Brasília: Universidade de Brasília, 1993. p. 5-6.

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por valores cronotópicos de diversos graus e dimensões. Cada momento, cada elemento destacado de uma obra de arte são estes valores.^

A "integridade" e a "plenitude" desses valores cronotópicos estão relacionados com o significado "temático" do cronotopo e, por sua vez, com a imidade artística da obra literária. O cronotopo é o "centro organizador dos acontecimentos temáticos" no romance. Nele o enredo se tece, articula-se; a trama dos feitos e das emoções sustenta-se na unidade espaço-temporal. O tempo da vida e de determinado tipo de vida dá-se num espaço ou em outro espaço com durações relativas. Essas escolhas caracterizam a temática, sua evolução e concretização no corpo da obra vista como unidade de representação. Pela importância e significado do cronotopo artístico, pelo quanto ele aponta de sinais temporais no espaço e pelo quanto o espaço reveste-se de sentido quando é situado no tempo é que optamos por fundamentar nosso estudo sobre a destruição das relações familiares no romance contemporâneo à luz da cronotopia bakhtiniana.

Para tanto, elegemos um corpus constituído pelos romances: O esplendor de

Portugal (1997), de Antônio Lobo Antunes, e Lavoura arcaica (1975), de Raduan Nassar.

Ambos, um português e outro brasileiro, parecem-nos intensamente e com contundência representar os desamores na família como uma tendência ou como um tema literário da contemporaneidade. Essas obras respondem à intenção de examinar as relações afetivas no mundo familiar desestabilizado por conflitos de toda natureza, sujeito ao que Nestrovski chamou de “varredura dos afetos” e “compondo afinal um panorama estranho dessa nossa estranha era do amor”.^' De sorte que nos fazem indagar se ainda existe lugar para afetos ou que tipo de sentimentos transitam no núcleo familiar entendido à luz do conceito familiar burguês no mundo contemporâneo.

Concentramos interesse na prosa contemporânea de Língua Portuguesa pelo fato de ela responder, mais especialmente, às vivências dos povos de origem portuguesa e, portanto, à nossa vivência, à nossa identidade e às implicações político-culturais de colonizadores /colonizados, imigrantes /imigrados que somos. Enfim, por apontar, no universo dos romances, os percursos, as (des)(a)venturas, os deslocamentos, os lugares, os

^°BAKHTIN, 1990. p. 349. NESTROVSKI, p. 24.

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não-lugares, que dizem respeito a esses povos. E, como tal, podemos discutir as construções e as desconstruções amorosas que se fazem e que se fizeram nos relacionamentos, vistos mais alargadamente, o que pode bem significar uma amostra de uma problemática recorrente nas diferentes civilizações.

Ou seja, as migrações, as acomodações e transformações das famílias dos romances podem representar, através da cultura de Língua Portuguesa, uma questão que, a despeito de dizer muito sobre esses povos, outra coisa não é senão uma problemática do ser humano.

Assim, a família de Lavoura arcaica, sediada no Brasil rural, fala ao mesmo tempo de um não-lugar e rememora tradições mediterrâneas. O núcleo familiar de O

esplendor de Portugal, sediado em Angola, não pode deixar de olhar os continentes

europeu e afncano e, através deles, as disputas pela economia e hegemonia internacionais. Se o contexto de Lavoura arcaica, de tempo mítico, o diferencia da obra de Lobo Antunes, por outro lado, sua predominante atemporalidade reveste-se de uma idéia contraditória de perpetuação e de desestabilização das relações familiares. Acompanhar o percurso daquela família de imigrantes árabes significa (des)construir a saga de um clã fortemente enraizado em princípios não tão sólidos quanto aparentam. O tempo proposto é cíclico, de retomada, de volta representada pelo retomo do filho que se evadira, tentativa vã de reconstruir o que não se sustenta mais.

Por outro viés, o de tempo histórico fortemente marcado, O esplendor de Portugal investiga também a desestabilização das relações familiares de imigrantes portugueses estabelecidos em Angola e mergulhados na crise da Guerra Civil. O que é cíclico na saga desta família é a fragilização de sua estrutura, de seus valores e das relações. Os rompimentos acelerados pela guerra têm raízes na ancestralidade familiar e o curso que se segue não deixa nada para ser construído. Arrasados pela guerra e arrasados no amor, só restam ruínas na construção da família onde nada mais parece ser possível edificar.

Se os universos familiares e as situações narrativas são um tanto diversas, os elementos mais significativos para nosso estudo estão postos com evidência em um e em outro romance: a ordem familiar que se deseja e o rompimento dessa ordem são, nos dois textos ficcionais, com muito sofrimento, fortemente marcados.

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De sorte que, pensar um tema em Língua Portuguesa, com autores de Língua Portuguesa, significa ampliar um pouco mais a visão para além da nossa porta. E isso requer também aportar na Península Ibérica para, a partir daí, seguir o Mediterrâneo, ou navegar o Atlântico e ganhar a África e o mundo. E quando estivermos no recolhimento das portas fechadas de cada família romanesca, significa não perdermos conhecimentos que possam nos ajudar a compreender as relações, os laços e os desenlaces dos universos familiares.

A análise dos romances deu-se pela investigação de pontos em comum e pela visualização de divergências, sempre ponderando a similitude do processo de fi-agilização das relações humanas no mundo familiar. Na investigação, interessou-nos fiandamentalmente seguir o curso da problemática amorosa na família como um processo recorrente e representativo de uma tendência do mundo contemporâneo.

Justificamos a escolha dos nomes de Raduan Nassar e de Antônio Lobo Antunes pelo significado e atualidade desses escritores na cultura de Língua Portuguesa, bem como pela reconhecida qualidade de suas produções.

Assim, acreditamos que, se a destruição do idílio familiar for uma alternativa literária em substituição ao idílio a que a literatura reservou lugar considerável, conforme mostra sua história, significativo se toma nosso estudo e, quem sabe, poderemos alimentar expectativas de alguma construção futura mais alentadora para as relações amorosas no Ocidente.

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E por falar em (O esplen)dor de P ortugal...

À procura duma explicação do mundo e de si própria, a literatura ancorou-se na história e entre verdade e ficção foi expondo e valorando experiências que, de certa forma, legitimaram presentes angustiados e numa linguagem mais ou menos críptica e metafórica, a literatura, em vários gêneros foi tentando apaziguar os medos que o desconhecimento gera e as situações de crise precipitam.

Em certa medida envenenou a história.

Pôde assim avançar por territórios insuspeitos e insuspeitados, porque possuía a desculpa da ficção e por esse longo caminho podia demorar-se sobre o sentido oculto das palavras, sobre a significação dos sinais, concedendo às personagens e aos seus signos uma importância, que a história, enquanto disciplina, não podia fazer.

A verdade profunda poderia continuar escondida, envolta nessa matéria M gil e viscosa com que se constrói a ficção.’

O desencanto e a languidez perpassam os relacionamentos amorosos e familiares em O esplendor de Portugal. É uma dor cansada, a do desamor. Reticente, constante desam(d)or.

Não há como falar do desamor no universo loboantunesino sem escutar o lamento das personagens, sem sentir a presença de uma dor incomodamente estabelecida, desconfortável e destrutivamente acomodada nos seres e nas suas vidas. Imagens desse desencanto, as vozes narrativas são lamentos pelo amor, pela família, pela África, por si

‘ TAVARES, Ana Paula. O sangue de buganvília. Praia-Mndelo; Instituto Camões / Centro Cultural Português, 1998. p. 70.

As epígrafes do presente capítulo são todas do livro O sangue de buganvília. Ana Paula Tavares nasceu em Lubango (Huíla) em 1952. E mestra em Literaturas Africanas e membro da União dos Escritores Angolanos. Poeta e cronista, docente da Universidade Católica de Lisboa, publicou, além de O sangue de buganvília (crônicas). Ritos de passagem (poesias, 1985) e O lago da lua (1999).

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próprias e por todas as perdas; são vozes que “se choram”. Lamentos pungentes e, de certa forma, conformados com a dor da ausência amorosa.

O que legitima o desamor é a ausência de sentimentos, e a dor da ausência parece, a nosso ver, ser a tônica máxima das relações em 0 esplendor de Portugal. Personagens unidas por laços frouxos e lânguidos, de uma fragilidade mórbida que os mantém próximos e ao mesmo tempo extremamente afastados. Tão afastados e decompostos quanto a fragmentada narrativa da qual o romance se compõe. Decomposição, desconstrução, destruição das relações. Negação do amor, desamor. Vazio amoroso num universo convulso, abundante de seres, de culturas, de etnias e de interesses políticos diversos.

Por esse motivo as vivências das personagens são de absoluta solidão e desamparo. Primeiramente sob o mesmo teto e, depois, no interior de diferentes casas, as personagens vivem um exílio duplamente significativo. Um primeiro, de caráter existencial, que se dá por conta dos sentimentos e das relações, e um segundo, de razão política e histórica, que os condena à condição de despatriados.

Cercada pelos campos de algodão e de girassóis, em Angola, servida pelos que habitam a senzala vizinha à casa, a família, que não tem sobrenome, constitui um microcosmo que não se sustenta nem política nem amorosamente. Lá dentro da casa tudo é falso porque provisório, até que o desamor os destrua, até que a morte os separe, até que a guerra os desintegre, a eles e à África.

Pelas vozes memorialísticas de Isilda, de Carlos, de Rui e de Clarisse (as mais presentes na narrativa) retomamos, na ancestralidade, e reconstruímos a história da família colonizadora na África: o pai Eduardo, a mãe Eunice^, o padrinho e Isilda. A família amplia-se posteriormente com Amadeu, os filhos Clarisse, Rui, Carlos e sua companheira Lena, os vizinhos e aparentados, os escravos, enfim, um universo humano tomado pela guerra e pela ausência do amor, onde as plantações de algodão e de girassóis circundam a casa exilada por dentro e por fora.

Se a casa, assim como a cidade e a nação, é um lugar “identitário, relacionai e histórico [...] que enraíza e identifica, fortalecendo os sentimentos de pertencimento a algo

^ O nome Eunice aparece pela primeira vez na segunda parte da obra, citado pelo marido Eduardo, na voz memorialística de Isilda, à página 153. Até entâo era nomeada apenas como “mãe”.

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que lhe é extemo e anterior, a cultura, as tradições”^, convém investigar em que medida essas instâncias espaço-temporais do romance concorrem para a construção ou para a destruição das referências familiares, históricas e políticas. Entendidos também como lugares da memória e tendo, mais contemporaneamente, que conviver com uma nova relação com o espaço em função dos deslocamentos rápidos, das alterações na configuração espacial, com os processos de migração, multiplicam-se os não-lugares, espaços provisórios que ensejam a circulação, a não-permanência.

Não é essa exatamente a problemática dos não-lugares em Lobo Antunes. Ou seja, a provisoriedade e a insustentabilidade das relações dão-se por conta da fragilização do espaço nacional em função do fim do período de colonização portuguesa na Afiica e da conseqüente tentativa de construção da nação e da identidade nacionais angolanas. A instabilidade e o não-lugar devem ser visualizados, nesse caso, pela transitoriedade do momento histórico vivido pelas personagens a partir do interior das casas que habitam. Interiores esses que vão sendo aos poucos “minados”, desfeitos, desconstruídos e totalmente arrasados.

A tentativa de construção de uma nova identidade, de uma nova nação africana, perpassa os ensaios de habitação em novas casas, em outras moradias onde as personagens tentam edificar, manter ou reconstruir a família. Nesse sentido é que as casas de O

esplendor de Portugal ganham significação, por formarem um uníssono com a realidade

histórica da colonização portuguesa em Angola, por espelharem, no seu interior, o mundo extemo, por sentirem com ele o desfazer-se das referências identitárias e por precisarem pagar com o sofrimento e com as vidas dos que as habitam o refazer das paredes que ruíam e do chão que já não tinham. Assim, entendemos com Jorge Fernandes da Siveira que a casa é “uma construção discursiva que pensa o modo português de fixação na terra natal”."* Ou seja, pensa a história portuguesa de fixação em outras “casas”, outras terras, e pensa

^ GOMES, Renato Cordeiro. Cidade e identidade nacional na narrativa brasileira contemporânea. In: ANDRADE, Ana Luiza; CAMARGO, Maria Lucia de Barros; ANTELO, Raúl (orgs.). Leituras do ciclo. Florianópolis; ABRALIC; Chapecó; Grifos, 1999. p. 223.

SILVEIRA, Jorge Fernandes da. Casa, cidade e nação: lugar ou impossibilidade? In: ANDRADE, Ana Luiza; CAMARGO, Maria Lucia de Barros; ANTELO, Raúl (orgs.). Op. cit., p. 234.

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principalmente o retomo à casa materna, quando as colônias africanas independentes^ promovem o embarque dos filhos indesejados que Portugal condenara ao degredo.

Portugal, então, precisou “reencontrar-se consigo mesmo, conscientizar-se da perda de sua dimensão imperial, preservar a identidade nacional, voltar às suas próprias raízes, navegar pelo seu mar interior'”^ para que pudesse se reterritorializar, ao mesmo tempo em que precisou assimilar um novo processo de desterritorialização com o ingresso na comunidade européia. Ora, no universo romanesco de O esplendor de Portugal, as personagens vindas de Angola, desembarcadas em Lisboa, têm de trabalhar, além desse processo de assimilação, a perda da pátria africana e da família, o que significa lidar com a perda das referências primeiras da casa e do amor.

Nesta análise estamos considerando o universo romanesco como um espaço de interlocução entre o literário e o histórico, uma instância onde as vozes nada veladas das personagens colocam as nações em diálogo. Portugal e Angola se dizem e se pensam nas vozes narrativas do romance, através delas ecoam as vozes dos seus povos, dos que nem sempre falam, mas que agora comparecem com o seu testemunho.

São quatro os principais narradores em O esplendor de Portugal. Carlos, Isilda, Rui e Clarisse, vozes narrativas que se alternam na articulação do enredo e fazem, através de um recurso memorialístico insistentemente recortado por outras tantas lembranças e falas, uma tessitura complexa e estilisticamente estilhaçada de resultado artístico-literário surpreendente. Ambientado em dois locus específicos. Angola e Portugal, o romance tem

^ De acordo com Boaventura de Sousa Santos, “o colapso da relação colonial ocorre no âmbito de transformações profundas, de sentido progressista, em Portugal, as quais, entretanto, são afetadas pela rebelião das colônias ao mesmo tempo que se repercutem nestas de modo diferenciado e muito paia além da independência. [...] No caso de Áfhca, a situação foi paralela em alguns dos seus traços e muito diferente noutros. A independência dos cinco países de língua oficial portuguesa ocorreu no âmbito de outra grande transformação progressista na sociedade portuguesa, a revolução do 25 de Abril de 1974. Neste caso, a simbiose entre os dois processos foi ainda maior na medida em que a guerra colonial, a luta tenaz dos movimentos de libertação contra o colonialismo, os adeptos que estes foram conquistando entre as elites culturais, políticas e militares portuguesas e o isolamento internacional a que sujeitaram o Estado Novo foram decisivos para a eclosão do golpe militar que abriu o passo à revolução democrática. Ao contrário do que aconteceu com a revolução liberal, a revolução de Abril, apesar de alguma hesitação inicial, adoptou como uma das suas principais bandeiras a descolonização. Com isto pôde potenciar com o seu próprio conteúdo progressista o conteúdo progressista das lutas de libertação e o próprio conteúdo da independência. (SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modemidade. 6 ed. São Paulo: Cortez, 1999. p. 149-150).

® FARIA, Ângela Beatriz. A perda da iluminada casa portuguesa no firmamento neo-europeu. In: SILVEIRA, Jorge Fernandes da (org.). Escrever a casa portuguesa. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1999. p. 410.

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como ponto de partida (e de chegada), através do qual tece e reconstrói a história familiar, uma noite de Natal (24 de dezembro de 1995).

Os narradores Carlos, Rui e Clarisse alternam suas narrativas (datadas sempre de 24 de dezembro de 1995) com Isilda, nas três partes que compõem o romance. A primeira delas cabe a Carlos, a segunda a Rui e a terceira e última a Clarisse. A perspectiva desses narradores é sempre a partir da referida noite de Natal, enquanto a de Isilda percorre diferentes datas das décadas de 70, 80 e 90, sendo a primeira delas 24 de julho de 1978 e a última também 24 de dezembro de 1995, única vez em que faz uso da mesma data que os filhos para, a partir dela, compor o último capítulo e fechar a narrativa.

Cada uma das três partes inicia datada com a noite de Natal, o que eqüivale a dizer, apresenta primeiramente a perspectiva de um dos narradores que, de certa forma, dialogará com Isilda. A partir de então, altemam-se as vozes basicamente aos pares assim constituídos: T parte, Carlos e Isilda, T parte. Rui e Isilda e 3“ parte, Clarisse e Isilda. Esse enredo polifônico é ainda enriquecido por outras vozes menores, entremeando as vozes principais, cedidas a Eduardo, a Amadeu, a Eunice, a Lena, ao comandante da polícia, a Damião, a Maria da Boa Morte e a outros. Dessa forma ainda falam o padrinho de Isilda, o dentista doutor Salema, Luís Filipe, enfim, todos os que compõem o universo do romance.

São as memórias desses narradores que nos conduzem pela história dessa família nomeada apenas pelos prenomes. Contraditoriamente à idéia de ancestralidade familiar (porque há outra, que chamaremos de ancestralidade histórica, ligada à questão da colonização, da guerra, da exploração e da escravidão), presente nas três gerações que se sucedem, a família não tem sobrenome. Esse detalhe se reveste de significação quando, percorrendo o universo da casa e das relações que ali se estabelecem, o encontramos absolutamente desarticulado, desesperançado do ponto de vista do amor e da família, se tomarmos como referência a estrutura familiar burguesa ocidental.^ De forma que

’ Originária das discussões em tomo das questões do público e do privado do século XVIII, quando se constrói o muro da vida privada e o culto à intimidade, a familia ganha consistência ao ser considerada a célula de base e instância reguladora da organização social. Desde então, e com a valorização da esfera privada e dos papéis femininos no século XIX, construiu-se um ideário de familia no mundo ocidental a quem cabem inúmeras funções. “Elemento essencial da produção, ela assegura o llmcionamento econômico e a transmissão dos patrimônios. Como célula reprodutora, ela produz as crianças e proporciona-lhes uma primeira forma de socialização. Garantía da espécie, ela zela por sua pureza e saúde. Cadinho da consciência nacional, ela transmite os valores simbólicos e a memória fundadora. É a criadora da cidadania e da civilidade. A ‘boa família’ é o fundamento do Estado e, principalmente para os republicanos (cf Jules Simon,

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entendemos ser pertinente falar do exílio familiar que vivem as personagens e sustentar nossa reflexão na “destruição do idilio familiar” bakhtiniano, entendendo também que estamos considerando, primeiramente, a obra em questão como um romance familiar.*

A casa da Baixa do Cassanje

À força de voz e no meio da língua íundamos o nosso lugar no mundo e inventamos a utopia quando a terra gela a frio intenso.

Assim também nos habituamos à dor e à tragédia quando as palavras que a anunciam são palavras da família, são as mesmas de nomear a alegria e os tempos festivos. E, no caso das nossas terras, a tragédia é tanta e tão variada e tão freqüente, que cada problema se cola à nossa pele: amigos que já não vamos rever, lugares da infância preenchidos de bombas, cidades que se esconderam (recuso-me a aceitar que desapareceram) como uma ferida de estimação a aguardar um tempo para ser tratada. Porque isto das dores e dos tempos também tem as suas hierarquias, ângulos e perspectivas.®

Os exilados da casa da Baixa do Cassanje constituem um primeiro núcleo familiar formado pelo pai Eduardo, pela mãe, por Isilda, pela avó e pelo padrinho desta (personagens quase ausentes, as duas últimas). Somam-se a esses os criados Damião,

Le devoir [O dever], 1878), existe uma continuidade entre o amor à família e à pátria, instâncias maternais

que se confundem, e o sentimento de humanidade.” (PERROT, Michelle. Funções da família. In: ARIÈS, Philippe ; DUBY, Georges (coords). História da vida privada. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. v. 4: da Revolução Francesa à Primeira Guerra. Cap. 2 “Os atores”, p. 105).

® De acordo com Bakhtin, “O aspecto idílico no romance familiar e no romance de gerações sofre imia modificação radical em virtude do seu profundo empobrecimento. Do tempo folclórico e das vizinhanças antigas resta aqui somente o que pode ser reinterpretado e conservado sobre a base da família burguesa e dinástica. Entretanto, a hgação entre romance fainiliar e idilio se manifesta mmia série inteira de aspectos capitais; é ela que determina o núcleo mais importante desse romance: a familia.”(BAKHTIN, Mikhail.

Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. 2 ed. São Paulo: UNESP / Hucitec, 1990. p. 338-

339).

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Fernando, Josélia, Maria da Boa Morte, habitantes da senzala que circundava a casa, e todos os cipaios e trabalhadores da terra, constituindo uma grande propriedade rural. Visualizamos a casa senhorial e de modos aristocráticos através da reconstrução memorialística de Isilda, em diferentes momentos, ao longo do romance:

[... ] o meu pai com aquela expressão que não era um sorriso mas parecia um sorriso - Vês como te fica bem Isilda?

Barbeava-se e vestia tem o e gravata para jantar na fezenda sob as centenas de lâmpadas do lustre refletidas nos talheres e nos pratos, a minha mãe chiquíssim a, eu de laço à cintura e lá fora, em lugar de uma cidade, Londres por exem plo, o restolho do algodão, o cheiro da terra entrava pelas janelas abertas de vento a palpitar nas cortinas, o Damião avançava com a sopa numa majestade de rei m ago, senhoras decotadas de unhas escarlates, lábios escarlates [...] cavalheiros de smoking fumavam charuto, as luzes apagadas para a sobremesa, atritos de linho, atritos de pulseiras, saquitos de vidrilhos, saltos que bicavam o soalho numa pressa de cristal [...] minha mãe para o meu pai, entre dentes

- Não tiraste os olhos da francesa Eduardo

Ao relatar o amor entre Eduardo e Eunice, entre este e a francesa, sua amante, e ao anunciar o relacionamento amoroso de Isilda que se avizinha, a narrativa acena com o desfazer-se desses amores, com o surgimento e a morte deles (no caso de Isilda, um amor natimorto), enfim, com a destruição já bastante presente do idílio amoroso e familiar. De sorte que a casa da Baixa do Cassanje constitui o grande cronotopo que, se apresenta alguns sinais de idílio, apresenta sobretudo a desconstrução das relações amorosas e familiares de forma contundente e proporcionalmente desastrosa á medida que a narrativa avança.

Podemos dizer que a noção de família recuperada pela narradora Isilda repousa na ancestralidade e excede as gerações. Se a narrativa centraliza o foco naquele tronco familiar menor, ou seja, no núcleo familiar que Isilda constitui com os pais e mais tarde com Amadeu, por outro lado há um envolvimento, ou melhor, uma culpa de referência ancestral que se perde no tempo. E que, sobretudo, extrapola o conceito de família e se associa a uma ancestralidade mais ampla; aquela da colonização, repleta de historicidade. Isilda rememora vozes vindas da erva das campas “que contavam uma história sem sentido de gente e bichos e assassínios e guerra como se segredassem sem parar a nossa culpa, nos acusassem.

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repetindo mentiras, que a minha família e a família antes da minha tinha chegado como salteadores e destruído a África”. “ A idéia é insistentemente retroativa:

[...] no tempo do meu pai enterravam lado a lado os pretos e os brancos do mesmo modo que antes do meu pai, na época do primeiro dono do girassol e do algodão, sepultaram os brancos que passeavam a cavalo e davam ordens e os pretos que trabalhavam as lavras neste século e no anterior e no anterior ainda

Perde-se no tempo a referência que é extensiva a missionários, cultivadores, enfermeiros e é de uma culpabilidade latente que a personagem não entendia por medo de entender. Se essas vozes segredavam a Isilda a culpa colonial, a voz do pai Eduardo tapava- lhe as orelhas e inutilmente tentava silenciá-las: “Não escutes, não ouças mentiras e injustiças”.

Assim como não há nenhuma referência sólida e tranqüilizadora na ancestralidade, tampouco na vivência de sua geração Isilda encontra laços afetivos valiosos. O desamor entre os pais, primeiramente, a artificialidade da casa e das festas, e o sentimento de culpa ancestral nos fazem entender que Isilda vivia, no interior da casa, com os pais, um exílio afetivo, um desamor que outro não é senão o do idílio familiar destruído.

Para Bakhtin, a desconstrução do idílio familiar ocorre quando “no pequeno mundo da família irrompe uma força de origem estranha, que o ameaça de destruição”. E essa força estranha muito provavelmente está relacionada, no romance de Lobo Antunes, às desilusões amorosas, à complexidade das relações humanas e familiares e às guerras Colonial e Civil no continente africano.*'*

” Id. ib., p. 74. Ib., p. 74.

13BAKHTIN, 1990, p. 339.

Bakhtin atribui ao mundo capitalista a origem da força que ameaça de destruição o mundo da família. (Id. ib., p. 340).

Em relação à Guerra Civil no continente africano, são recentes os dados de 1 milhão de pessoas mortas em 25 anos de combate, em Angola, país cujo crescimento é de -7,8% nos últimos vinte anos (SIMONETTI, Eliana. África em chamas. Veja. São Paulo: Abril, n. 15,12 abr. 2000. p. 66-68).

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Por outro lado, há uma recorrência idílico-saudosista entremeando a narrativa de Isilda, cuja voz resgata instantes e momentos da infância, de vivência lírica, de proximidade com a paisagem e com a senzala^ ^

[...] a trepadeira nas colunas, as pálpebras das flores do algodão que pestanejavam ao vento enquanto lun perfume açucarado como a tinta das cartas antigas me embalsamava de temura, dois dedos com anéis me experimentavam a saia

- Que bem te fica esse vestido filha

eu me sentia contente, nova, bonita como quando me arranjava para sair com ela aos bailes do Ferroviário, toda de branco, luvas brancas, sapatos brancos, uma gardênia branca no decote, o governador levantava-me o nariz com o polegar

- O que tu cresceste menina

e tinha a certeza de nunca ser velha nem com mgas nem com cabelos grisalhos nem doente e a orquestra tocaria no palco até o fim dos tempos.’®

Há uma insistência rememorativa em relação ao cotidiano da casa senhorial e patriarcal de onde Isilda resgata as festas, os hábitos, as vivências, a paisagem, as relações.

Se são freqüentes esses recortes, por outro lado percebemos uma preocupação em associar a eles elementos contraditórios, como se pode ver no excerto seguinte que mostra, em rápido panorama, outras vivências afi-icanas no entorno da família:

[...] os cetins e as sedas dos bailes de Malanje, de Luanda, de quando fomos ao Luso ao casamento da sobrinha do bispo, uma vila com uma dúzia de criaturas e uma dúzia de meias perdidas entre chanas num planalto de areias, o avião da Marinha trouxe o bolo de Nova Lisboa, eu a beijar o anel macio do bispo e o bispo

- O demônio fez-te de propósito para me tentar moça

as chanas iluminadas de fogos ou candeias despolidas, um cinturão de quimbos ainda mais pobres que no norte, crianças de cabelo pálido e barriga dilatada, uma fila de Cadillacs com cortininhas de cassa diante da missão, freiras espanholas escanzeladas como galgos a espreitarem dos claustros, sargentos de que Lisboa se não lembrava consumidos pela amibiase numa esplanada de canas [...] .’^

Para Bakhtin, a vida idílica e seus eventos são inseparáveis do espaço “onde viveram os pais e os avós, e onde viverão os filhos e os netos. [...] Na maioria dos casos, no idíUo, o conjunto da vida ^ s gerações (em geral, da vida das pessoas) é determinado essencialmente pela unidade de lugar, pela ligação secular das gerações ao lugar único, do qual essa vida, em todos os seus acontecimentos, é inseparável. [...] Outra particularidade do idílio é a sua estrita limitação às poucas realidades básicas da vida. O amor, o nascimento, a morte, o casamento, o trabalho, a comida, e a beúda, as idades - esses são os fatos reais básicos da vida idílica. [...] Finalmente, a terceira particularidade do idílio, estreitamente ligada á primeira, é a fiisão da vida humana com a vida da natureza, a unidade de seu ritmo, a linguagem comiun para evocar os fenômenos e os acontecimentos respectivos.” (1990, p. 333-334).

ANTUNES, p. 102.

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Há também evidências de que o mundo saudoso da infância e da adolescência e o cotidiano da casa tinham qualquer coisa de estranho. Um rompimento que já se anunciava na relação amorosa dos pais da personagem, por exemplo:

[...] (lembro-me do cheiro das azáleas pisadas, do tabaco barato e daquele mais distante de barro amassado e de raizes da água, do perfume da francesa no pulôver do meu pai quando voltava a assobiar do convento e da minha mãe abraçando-me a fezer-me chorar - Pego na miúda e vou-me embora Eduardo juro que pego na miúda e nunca mais nos vês um perfume ácido e doce e quente que perturbava os cravos nas jarras)

Percebemos em cada relato uma indicação em duas direções; aquela que aponta e que reconstrói, na imagem saudosa, as vivências idealizadas e, concomitantemente, reconhece o desfazer-se da felicidade, mostrando que as alegrias que Isilda vivera na infancia e na adolescência eram feitas desses dois mundos, o desejável e o possível, o idílico e o real, uma espécie de iniciação às vivências fiituras. Como luz que esmaece, há passagens de um estágio a outro, ou de um cronotopo a outro, o da infância (parcialmente idílico e idealizado), o da vida adulta (de idílio destruído) e o da guerra (absolutamente destruído):

[...] o mundo inteiro a girar, não apenas as paredes, o teto apainelado, os convidados, a mesa do bufete, a cidade, as palmeiras, a Áfnca, a Joséha, a Maria da Boa Morte, o estrado de bordão da cozinha, tudo, o mundo rodopiava juntamente com os óculos do governador ora transparentes ora opacos em equilíbrio nas insígnias de metal do colarinho - Muito chique sim senhores muito chique

o alferes a convocar-me da ombreira - Camarada

a minha mãe a deixar de sorrir, a ir embora, a música caiada, o governador falecido há séculos, o Ferroviário destruído pela guerra civil, o universo de repente estreito o motor da eletricidade sem gas-oil

Se na infância Isilda convive com a infidelidade paterna e com o sofnmento da mãe, igualmente na família^ que constitui posteriormente com Amadeu Isilda sente-se só.

18Ib„ p. 105.

‘®Ib.,p. 104.

Ao analisar o pensamento de Rousseau, Jurandir Freire Costa sintetiza, no nosso entender, a construção do ideário da família ocidental burguesa: “Ele [Rousseau] imagina a drenagem da sexualidade para a construção

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sem amor e “sem um homem que a defenda”, conforme relata. Reconhece que no lugar deste o que tem é “uma garrafa de uísque e um pijama com alguns ossos dentro”. Sua solidão e desamparo estão simbolizados, sobretudo, no momento em que, com Amadeu a seu lado na varanda, grávida de Clarisse, atira a ahança de casamento entre as folhagens do jardim. Não tem significado nenhum para ela aquela união e revela-se “arrependida de não ter ouvido os [meus] pais e ficado no quarto de solteira com a mobília cor-de-rosa de solteira, a vida de solteira, o corpo dos quinze anos em equilíbrio entre duas luas”[...].^^

De acordo com Denis de Rougemont, “o casamento tem realmente por base uma idéia individual da felicidade, idéia que se supõe, na melhor das hipóteses, comum aos dois cônjuges”^^, e que talvez possamos supor desejável e extensiva aos demais membros da família o que, obviamente, dificulta ainda mais ascender a esse estágio de felicidade.

Falar do casamento de Isilda e de Amadeu em O esplendor de Portugal significa desconstruir todos os conceitos que envolvem essa instituição no mundo ocidental^^ e em

da sociedade justa como a harmoniosa conjunção entre sexo, amor e casamento, na unidade da família conjugal. Homens e mulheres se inclinam naturalmente uns para os outros e trata-se de tirar partido dessa inclinação para criar filhos, organizar a famíHa e criar, em seu interior, o sentimento de cidadania. Ou seja, o que Platão tomava como o ‘Eros vulgar ou pandêmico’, isto é, o Eros voltado para a procriação; o que os padres da Igreja consideravam lun desprezível mal menor, isto é, o casamento como modo de atenuar a lascívia que corrompia as almas; o que os poetas e pensadores do amor cortês desprezavam como desnecessário para a existência da experiência amorosa, pois bem, o casamento e a família serão, para Rousseau, o lugar do apogeu do amor.” (COSTA, Jurandir Freire. Sem fraude nem favor, estudos sobre o amor romântico. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. p. 68).

ANTUNES, p. 149.

ROUGEMONT, Denis de. O amor e o ocidente. Rio de Janeiro: Guanabara, 1988. p. 196.

Para fazer um contraponto, referimos que, se existe um ideário individual de felicidade, a personagem Carlos, por outro lado, defende a idéia individual de infelicidade e diz: “não é possível ser infeliz a dois porque a infelicidade é solitária”. (ANTUNES, p. 88).

Rougemont considera difícil e insolúvel o problema da felicidade do ser humano na modernidade, considerando que a felicidade, “apregoam incessantemente os anúncios, depende disto, exige aquilo - e isto e mais aquilo, sempre alguma coisa que é preciso adquirir, em geral com dinheiro. Como resultado, essa propaganda nos deixa obcecados pela idéia de uma felicidade fácil, ao mesmo tempo em que nos toma incapazes de atingi-la. [...] Basear o casamento neste tipo de ‘felicidade’ pressupõe luna capacidade de tédio quase mórbida - ou então uma intenção secreta de trapacear. Talvez essa intenção ou essa esperança expliquem, em parte, a facilidade com que as pessoas ainda se casam ‘sem acreditar’ no casamento. O sonho da paixão possível age como uma distração permanente que anestesia as revoltas do tédio. [...] Eis o dilema que 0 conceito moderno de felicidade introduz em nossas vidas: o tédio resignado ou a paixão. O que de todas as maneiras resulta na ruína do casamento enquanto instituição social definida pela estabilidade.” (ROUGEMONT, p. 196-197).

^ Em relação às concepções orientais do amor, divergentes do modelo familiar e da concepção de amor no

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