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O ESPAÇO HIERÁRQUICO

No documento ALAN FABER DO NASCIMENTO (páginas 105-112)

EXPROPRIAÇÃO TURÍSTICA: A PRODUÇÃO DO ESPAÇO HOMOGÊNEO QUEBRADO E HIERÁRQUICO.

3.3 O ESPAÇO HIERÁRQUICO

Como em todos os ambientes de festa, pode-se dizer que o turista se distingue por um consumo sôfrego e emocionalmente intenso, na maioria das vezes, para o prazer, que realça a sua própria condição transitória. O tempo do indivíduo que viaja é rápido, curto e limitado. A sua estada exige a máxima satisfação emocional possível, livre dos condicionamentos e obrigações rotineiras: “o turista pode fazer o que lhe aprouver, vestir-se, comer, gastar, fazer as bagunças, pelo menos uma vez pode revelar-se de verdade. Pouco

importa o que os outros vão pensar, ele pagou” (KRIPPENDORF, 2003: 55).

O turismo, deste modo, serve à produção da subjetividade do usuário, e não do “usador”20, pois este é animado por relações ligadas às atividades

essenciais do dia-a-dia que demandam maior esforço (o uso do corpo, do espaço, do tempo, etc.).

“Com o mundo se movendo em alta velocidade e em constante aceleração, você não pode mais confiar na utilidade dessas estruturas de referência com base na suposta durabilidade. Logo se mostrariam muito desconfortáveis para acomodar todas as identidades novas, inexploradas e não-experimentadas que se encontram tentadoramente ao nosso alcance, cada qual oferecendo benefícios emocionantes, desconhecidos e promissores” (BAUMAN, 2005: 33).

20 De acordo com SEABRA (1996: 78), LEFEBVRE propõe conteúdos diferentes para usager (usuário) e “usager” (usador). De maneira simplificada, pode-se dizer que o primeiro está sempre relacionado à troca, enquanto o segundo ao uso.

96 Sob esta perspectiva, resulta que a relação mais intensa com o lugar, prometida pelos folhetos turísticos, sobretudo por aqueles das viagens alternativas e de ecoturismo, só pode ser possível com uma vivência mais profunda e cadenciada pelos ritmos mais lentos do costume e do uso21:

“ora é justamente a situação do morador que propicia - além da óbvia experiência - aquela identidade mais profunda, que não pode só decorrer de uma postura intelectual e ideológica de pretensos turistas politicamente corretos” (BENEVIDES e GARCIA, 2002:

70).

Problematizando esta condição do turista, PADILHA (2006b) observa que a atividade turística, assim como todos os produtos da indústria cultural, contempla, nos dias de hoje, os principais valores do usuário: o desejo de segurança, de afetividade e de estética, porém, sempre à custa da vida social e psíquica dos povos visitados. Aliás, lembra FONTENELLE (2002), tais valores, tão contraditórios quanto a ordem social à qual pertencem, só podem ser alcançados em espaços onde o consumidor sempre sabe para onde deve olhar, como comportar-se, o que vai experimentar e quanto vai pagar.

Os especialistas criaram esse mundo e o criaram de acordo com seu projeto inteiramente racionalizado (...) No mundo feito por especialistas a própria irracionalidade foi colonizada (...) Vendem um estilo de vida alternativo, num mundo no qual o controle e a responsabilidade são entregues aos especialistas, uma vez que a rendição é recompensada com o conforto de estar sempre no lado certo” (BAUMAN, 1999: 238).

DAVIS (2001) destacou, em a Ecologia do Medo, que os turistas estão

cada vez mais relutantes em aventurar-se nos perigos imaginados das grandes cidades, contudo, na classe média, há uma fome cada vez maior por espaços

21 Há autores, como LABATE (1997), que entendem que esta é uma interpretação redutora da complexidade do fenômeno turístico, pois existem diferentes tipos de turistas com distintas motivações de viagem, mantendo diversas relações com os povos que visitam. Na concepção de BINDÁ (1995), vale o mesmo, uma vez que o turismo pode proporcionar encontros mais profundos com a população e a realidade local. Outros compreendem que o ecoturismo, turismo de aventura e demais derivações são organizações turística aperfeiçoadas, portanto, merecem diferenciações.

públicos, por multidões, pela vida das ruas e por espetáculo. Em conseqüência, diz o autor, megacorporações de entretenimento, como MCA e a Disney -

cujas subsidiárias de filmes e discos disseminam incansavelmente imagens

sombrias da vida nas cidades” (DAVIS, 2001: 373) - capitalizaram essa

demanda, por meio da recriação de pedaços fundamentais da vida cotidiana dentro dos limites seguros de seus parques e praças temáticos, redes de fast- food, condomínios guetificados e shopping centers.

Há, portanto, uma outra conseqüência espacial, além da quebra e da homogeneidade, que sugere a fuga do cotidiano: a hierarquia. Hierarquiza, pois o turismo, para funcionar como terapia da sociedade (KRIPPENDORF, 2003), deve oferecer um mundo perfeito, controlado, asséptico e depurado a outro mundo cheio de mudanças, inseguranças, inconstâncias e descontentamentos que, paradoxalmente, ele próprio ajuda a gerar.

Assim sendo, a mesma modernidade que criou o turismo e o turista, investiu um e outro da capacidade de evasão do cotidiano e, sob forma dramatizada, da capacidade de suspensão da ordem social das coisas, ainda que feita de forma emocional, privada e temporária” (FORTUNA, 1995: 39).

Até agora, demonstrou-se que as áreas de mananciais em Ribeirão Pires, incluindo aí a represa, foram exploradas segundo o ABCdário do usuário,

devendo gerar fluxos monetários, desenvolvendo novos valores de uso22 e troca, novas formas de ocupação e valorização imobiliária, e, por conseguinte, aumentando o fluxo de turistas.

Os mananciais e a represa Billings são maravilhosos e propícios para esportes náuticos,

22 No capítulo II de o Capital,

O Processo de Troca, Marx trata, antes de tudo, de uma sociologia do fetiche: “Todas as mercadorias são não-valores-de-uso, para os proprietários, e valores-de-usos, para os não-proprietários, todas têm, portanto, de mudar de mãos, mas essa mudança de mãos constitui sua troca, e sua troca as relaciona umas com as outras como valores e realiza-as como valores. As mercadorias têm de realizar-se como valores, antes de poderem realizar-se como valores-de-uso. Por outro lado, têm de evidenciar que são valores-de-uso, antes de poderem realizar- se como valores” (MARX, 2006: 110). Ou seja, o valor-de-troca das mercadorias transfigura, criando uma moldura em que o valor-de-uso da mercadoria passa para o segundo plano, tornando-se cada vez mais encurtado para satisfazer as necessidades expansionistas do capital, transitoriedade de que o próprio turismo participa: “devidamente situado no tempo e no espaço, isto representa uma inovação radical, que abre horizontes anteriormente inimagináveis para o desenvolvimento econômico” (MÉSZÁROS apud PADILHA, 2006a: 139).

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aventuras radicais, caminhadas e trilhas ecológicas, tem tudo para entrar no calendário das atividades de aventura de São Paulo (...) as autoridades deveriam se espelhar em Avaré que investiu nas margens da represa com a construção de hotéis, condomínios fechados, atraindo turistas para a região” (Carlos, morador de São

Paulo, e praticante de esportes de aventura em Ribeirão Pires).

Tudo isso foi de grande valia econômica para alguns, mas houve um preço. Para a cidade, o preço a ser pago tem sido a redução das estratégias dos seus usadores: “o espaço social torna-se uma coleção de guetos, uma

espacialização de hierarquia de poder econômico e político” (OSEKI, 1996:

114).

A Prainha Thaiti23, apesar de ser um clube antigo, é um exemplo de como as tendências equalizadoras perseguidas pela administração municipal contrastaram com a situação socioeconômica de muitos ribeirãopirenses, pulverizando as diferentes possibilidades de obra, reapropiação e usos engendrados nesse espaço.

Se vocês forem lá, não vão querer voltar aqui (Parque Municipal). Nós não vamos lá, porque não dá para pegar um ônibus, parar no meio da estrada e chegar lá; não tem acesso”. (Neide, moradora da

Estância Noblesse).

Lá é fino, eu não vou para lá não, são mais turistas, pessoas de náutica, jet-ski”. (Ricardo, morador

da Estância Noblesse).

Aliás, o discurso “ecologista” justificou não só a ação e o controle sobre a população e as margens da Billings, mas carrega a semente de sua total

23 O clube está localizado às margens da represa Billings, na avenida Palmira,450, Bairro Palmira (rod. Índio Tibiriçá, km42). Com capacidade para 3.000 pessoas, funciona de terça-feira a domingo, das 8h30 às 17horas. Dispõe de local para festas de confraternização, marina avulsa e mensal, rampa para barcos e jet - skis, lanchonete e quiosques com churrasqueira, campo de futebol, proporciona passeios a barco, há local para pesca, área de banhista, playground e quadra de tênis.

hierarquização24. Isto porque áreas passíveis de ocupação de baixa

densidade, formadoras de enclaves de consumismo, poderão “privatizar”25

inclusive espaços públicos de lazer, como é o caso do Parque Milton Marinho de Moraes26, situado contíguo a um desses loteamentos residenciais, a

Chácara Santo Antônio.

Antes era aberto, a meninada brincava de esconde-esconde, (...) não faz muitos anos que eles fecharam o loteamento, dizem que foi por causa dos assaltos”. (Pedro, morador da Estância Noblesse).

Foto (22): Loteamento residencial Chácara Santo Antônio localizado nos limites do Parque Milton Marinho de Moraes.

24 Segundo GOMES (2002: 182), “o turismo ecologicamente sustentável fez com que áreas que antes da implantação do modelo eram de livre acesso e utilizadas pela população tradicional para sua sobrevivência (rios, lagoas e mangues) fossem privatizadas”.

25 No dia 29-7-2006, durante pesquisa de campo no Balneário Palmira, fomos abordados pelos seguranças do loteamento, solicitando nossa saída do local, em razão de dúvidas por parte dos moradores sobre o trabalho que estávamos realizando. Aqui, vale lembrar DAVIS (2001), em Ecologia do Medo, quando diz que estamos um degrau acima da sociedade disciplinar. O autor recupera o diagrama de Burgess, somando às determinantes “ecológicas”, como renda, valor da terra, classe social e raça, um novo fator decisivo: o Medo!

26 O Parque Milton Marinho de Moraes é uma Unidade de Conservação de Proteção Integral. As UCs de Proteção integral, também denominadas de uso indireto, pressupõem a manutenção dos ecossistemas naturais livres de alterações causadas por interferência humana, admitido apenas o uso indireto dos seus atributos naturais. Nestas áreas não se permitem o consumo, coleta, dano ou destruição dos recursos naturais implicando, portanto, a proteção integral da fauna e da flora. (Fonte: INSTITUTO SOCIOAMBIENTAL, 2002 - Billings 2000: Ameaças e perspectivas

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Foto (23): Cercas ao redor do loteamento Chácara Santo Antônio.

Afinal, a realidade da população não se confunde com a “sua vocação

turística”, de um lado, porque o fomento ao turismo não fez mais do que encobrir a contradição entre o uso que o lugar representa para os seus habitantes e o valor de troca pelo qual se interessam aqueles que sobre o solo procuram extrair sempre um benefício econômico, sobretudo na forma de uma renda exclusiva. Por outro lado, a venda dos potenciais paisagísticos das áreas de mananciais não fizeram mais do que produzir novas formas de expropriações do espaço pelo capital, materializando-se na forma de especulação imobiliária, segregação sócio-espacial e controle privado dos espaços. Parafraseando RODRIGUES (2004), nestas condições, a sustentabilidade almejada para as áreas de mananciais, diferentemente dos parasitas que destroem a sua base alimentar, assemelhou-se aos parasitas que mantêm pelo menos a possibilidade de continuar a se alimentar, não a destruindo, antes a conservando, sem, porém, deixarem de ser parasitas.

Enfim, as propostas apresentadas, tendo em vista o desenvolvimento e a

preservação dos mananciais, antes de apontarem para alternativas que promovessem efetivamente uma inter-relação entre justiça social, atividade econômica e equilíbrio ambiental, constituíram movimentos dependentes e direcionados para o mercado, cuja lógica se pauta essencialmente na (in)

sustentabilidade do capital: “todo este debate em torno da sustentabilidade é um debate sobre a preservação de uma ordem social específica e não um

debate acerca da preservação da natureza em si” (HARVEY apud COSTA

1999: 60).

No próximo capítulo, encerrando as reflexões sobre a sustentabilidade das políticas e projetos para o fomento do turismo em Ribeirão Pires, evidenciou-se uma outra contradição da ordem social capitalista, que no conteúdo do discurso oficial assume forma privilegiada, porém, agora, disfarçada por um suposto fortalecimento da relação capital-trabalho. Para tanto, fez-se uma análise do empreendedorismo na atividade turística e o seu impacto na vida dos que trabalham nas principais festas da cidade: A Festa do Pilar e o Festival do Chocolate.

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Capítulo 4

No documento ALAN FABER DO NASCIMENTO (páginas 105-112)